09 Janeiro 2024
"A subordinação das mulheres não é mais justificada por referências antropológicas, nem por textos bíblicos e até mesmo se abandona o apelo à misteriosa vontade de Cristo. Em vez disso, invoca-se a voz da Razão. Essa mentalidade teologiza uma práxis através de uma sacralização indevida dos modelos sociais".
A opinião é da teóloga italiana Selene Zorzi, professora do Instituto Teológico Marchigiano e ex-professora do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, da Pontifícia Universidade Lateranense e do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Ancona, do qual foi vice-diretora. É membro da Coordenação das Teólogas Italianas (CTI).
O artigo foi publicado por Rocca, n. 1, 01-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
As razões para excluir as mulheres das ordens sagradas tornar-se-ão cada vez mais veementes quanto mais emergir no curso da história a subjetividade coletiva das mulheres e seu cada vez mais determinante protagonismo. Foi estudado que a elaboração da demonologia e a consequente caça às bruxas devem ser incluídas no processo da assunção por parte das mulheres de funções e papéis cada vez mais emergentes, também em relação à mediação com o sobrenatural, ou seja, para aquelas funções que haviam se tornado cada vez mais prerrogativa e exclusividade do ministério ordenado.
Em época moderna, o argumento baseado nos papéis sociais tornar-se-á central. O raciocínio será: visto que a situação social se apresenta assim, essa é também a natureza das coisas e, portanto, o seu destino.
Traduzindo: as mulheres têm um papel social submisso e subordinado, essa é a sua natureza; é preciso aceitar esse seu destino na igreja e na sociedade.
Os argumentos de desvalorização da mulher que os teólogos continuarão a repetir com certa uniformidade para manter as mulheres fora dos papéis eclesiais, sociais e políticos tornam-se de tipo psicológico. As mulheres têm volubilidade, fraqueza mental, inconstância, escassa razão e denotam demasiada loquacidade: esses elementos são obstáculos à ordenação.
O status feminino equivale a uma loucura, “insania naturalis” (Juan Maldonado † 1583). As mulheres são mais propensas a serem seduzidos; de fato, Eva foi seduzida porque mais fácil de seduzir do que Adão. A feminilidade é um estado de irregularidade, implica um defeito de corpo e denota incapacidade: a feminilidade é uma imperfeição por meio da qual o diabo espalhou o veneno sobre a humanidade.
As passagens bíblicas usadas para justificar a submissão das mulheres continuam a ser as mesmas tradicionais, porém, com alguns desvios de interpretação em alguns (em particular 1Cor 14,34; 1Tm 2,11s): o ensinamento é considerado uma atividade superior, por isso é adequado para os clérigos, mas não para as mulheres, cuja posição natural é considerada subordinada. Os textos de 1Tm 2,11-15 e 1Cor 14,34, que originalmente se referiam ao ensinamento e à tomada de palavra pública, começam a ser considerados inclusivos das funções cultuais.
A Ordem Sagrada implicaria para as mulheres uma condição de superioridade, portanto elas devem ser excluídas. 1Tm proibiria o ensinamento “no templo”. 2Tm (trocado incorretamente com 1Tm) demonstraria a inabilidades das mulheres de ensinar e falar, bem como a sua própria subordinação por direito divino (Vincenzo Fillucci, † 1622).
O dossiê se transforma: novos textos bíblicos serão incorporados para apoiar a subordinação eclesial, social e política das mulheres e outros ficarão em segundo plano. A subordinação feminina é agora justificada com o texto de Gn 3,16 ("... ele te dominará"), texto que demonstraria o estado de dependência da mulher do homem, não só por direito natural, mas também por direito divino. Gn 3 demonstraria que as mulheres são, por lei de natureza, submissas ao homem.
Ser mulher impediria ser superior aos outros e ensinar. Se de fato as mulheres fossem excluídas apenas por direito eclesiástica da Ordem, sua ordenação seria hipoteticamente válida, ainda que ilícita.
Para Franciscus Sylvius († 1672) a condição feminina não pode indicar um estado de excelência (como convém à Ordem Sagrada), pois o seu estado de submissão não depende apenas das consequências do pecado original, mas também do seu estado de natureza e de origem. Gal 3,28 (“não há homem nem mulher!”) é rejeitado ou desvalorizado porque não falaria do estado histórico, mas dos efeitos da justificação. 1Cor 11,7-15 (“O homem não deve cobrir-se a cabeça... Ou não vos ensina a mesma natureza que é desonra para o homem ter cabelo crescido? Mas ter a mulher cabelo crescido lhe é honroso") é usado para justificar a impossibilidade da ordenação das mulheres com base no fato de que os clérigos devem ter a tonsura.
Também é acrescentado ao dossiê o texto de Ef 5,22 (“Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso próprio marido, como ao Senhor”) para apoiar a exclusão do sacerdócio. Se uma mulher não pode dominar no casamento, muito menos pode fazer isso na Igreja assumindo papéis de superioridade e governo. As mulheres não podem sequer governar outras mulheres, mas só podem ser governadas por homens.
Em apoio à exclusão das mulheres do sacerdócio, aparece também o texto de At 1,21 que lista os critérios para a escolha dos “Doze”: de fato usa expressamente o termo androi (homens) e não antropoi (seres humanos).
A ideia de que o ministério ordenado comporte uma eminentia gradus, uma superioridade sobre os outros, exclui as mulheres "por natureza" (posição de Tomás de Aquino retomada por Jean-Baptiste Gonet, † 1681; F. Marchini, † 1636; Charles-Reneì Billuart, † 1757).
A força do conceito de “tradição ininterrupta” cresce no que diz respeito à convicção de que jamais nenhuma mulher nem no Antigo Testamento nem na história da Igreja teria assumido um cargo ministerial enquanto diminui a necessidade de comprovação dos textos bíblicos. Começa então uma reescrita da história: fala-se que as mulheres nunca foram ordenadas, com consequentes acrobacias argumentativas para motivar a presença nos textos e na documentação histórica de termos como presbyterae, diaconissae, sacerdotae, episcopae, viúvas, virgens e as próprias abadessas: afirma-se que era apenas uma função, não um grau, portanto as mulheres nunca foram ordenadas validamente (em alguns casos, também é feita referência à Papa Joana para desacreditar a ideia).
O sexo feminino é considerado impedimento em si, uma vez que a sexualidade feminina indica submissão por natureza. Tal sexo é inadequado para o governo e, portanto, para os cargos hierárquicos. As mulheres não podem assumir qualquer papel de governo nem de orientação espiritual sobre os homens e nem mesmo sobre as mulheres; até mesmo as abadessas têm jurisdição apenas sobre o foro interno.
A posição de Boaventura de que apenas um homem poderia significar o Cristo mediador, é retomada com o acréscimo de uma referência incorreta a 2Tm (em vez de 1Tm) ou a 1Cor 14,34-35 (“ As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar").
A argumentação se amplia nos séculos seguintes: a mulher não pode representar Cristo, que assumiu o sexo masculino através do qual o gênero humano foi renovado.
A essa insistência sobre a sexualidade masculina de Cristo acrescenta-se uma nova argumentação que afirma que, visto que todo ordenado poderia tornar-se bispo e o bispo é um sinal do Cristo esposo, uma mulher não pode assumir tal papel.
A partir do século XVII também são chamados em causa os hereges, como os montanistas quintilianos, peputianos, catafrígios e colíridianos, para demonstrar que as mulheres não podem, de fato, ser ordenadas – explica-se – esses movimentos foram declarados heréticos – com o acréscimo de “mulherengos” – precisamente porque permitiram que as mulheres tivessem acesso ao altar. Entre as novas justificativas para a incapacidade da mulher aceder à Ordem Sagrada são enumerados motivos de “conveniência de natureza” (François Hallier, † 1659): uma mulher não pode exercer funções públicas por razões de "decoro" (Martin Lutero, † 1546), de “pudor natural” (Honoré de Tournely, † 1729); a verecúndia do sexo as exclui da Ordem.
Os autores do século XVIII viram-se obrigados a ter que motivar a exclusão das mulheres dos papéis de governo que, entretanto, o direito hereditário começava a permitir na sociedade. Apela-se então ao direito divino e se impede às mulheres ter acesso a outras funções públicas (falar, ensinar, celebrar publicamente, oferecer o sacrifício, ajudar assistir aquele que o oferece, batizar, absolver) por estarem ligados à Ordem.
Surge uma discussão sobre os graus menores da Ordem Sagrada: as mulheres são excluídas por motivos de conveniência.
Parece agora ser suficiente a força do argumento da tradição: as mulheres nunca foram ordenadas e, portanto, não o podem ser.
A subordinação das mulheres não é mais justificada por referências antropológicas, nem por textos bíblicos e até mesmo se abandona o apelo à misteriosa vontade de Cristo. Em vez disso, invoca-se a voz da Razão. Essa mentalidade teologiza uma práxis através de uma sacralização indevida dos modelos sociais.
Nesse debate, Antoine Boucat († 1730) para frisar a necessidade de o ordenado ser de sexo masculino, modifica ainda mais o dossiê tradicional de textos bíblicos: insere textos inéditos como Jo 20; Lucas 22; Ef 4; Hb 5; elimina Gal 3,28 e At 2 (que fala da profecia como carisma para homens e mulheres, embora não se trate de um ministério). Matthias Joseph Scheeben († 1888) continua a defender a concepção tradicional da incapacidade da mulher por direito divino e Hermann Schell († 1906) repete que a mulher foi criada para o homem, a serviço da natureza, isto é, para a procriação. Embora os textos bíblicos como 1Cor 14; 1Tm 2 originalmente não se referissem ao sacerdócio, agora se entende a sua referência a “in ecclesia” para excluir as mulheres de toda função na igreja.
Novo também resulta a inclusão no dossiê do texto de Ef 5.22 (“mulheres, sujeitai-vos a vosso próprio marido") com base numa nova argumentação, que não tinha sido patrística, ou seja, aquela da característica esponsal que hoje é atribuída à Ordem. Depois do século XVII até mesmo Gn 3 é citado com menos frequência, com base na crença de uma subordinação de natureza da mulher que nem precisa mais ser justificada com base bíblica.
Essas argumentações e esses textos bíblicos são os mesmos que foram apresentados no final do século XIX para impedir às mulheres o direito de votar. Foi quando a ativista sufragista Elizabeth Cady Stanton organizou uma força-tarefa de 26 mulheres intelectuais, culturalmente dotadas, que quiseram abordar a interpretação da Bíblia e analisar aqueles textos que pareciam negativos em relação às mulheres (falamos sobre isso em Rocca 16/17 2022). O seu trabalho exegético demonstrou que o dossiê de textos chamados em causa para excluir as mulheres em nível eclesial e social não remontavam à vontade de Deus, mas apenas a um desejo masculino de mantê-las dominadas. A Bíblia da Mulher (1895-98) é considerada a pedra angular da exegese feminista. O trabalho dessas mulheres demonstrou que a Bíblia não pode ser utilizada para discriminar as mulheres, para mantê-las fora da esfera do divino e fora dos direitos sociais, como o direito de voto. Desde então, a longa marcha da mulher como sujeito coletivo não terminou de explorar o campo exegético e teológico, encontrando novos significados para a vida das mulheres, das Igrejas e da sociedade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Não há ordenação sem representação!” ou as razões inaceitáveis para a exclusão das mulheres do ministério. Artigo de Selene Zorzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU