15 Dezembro 2023
"Enquanto a transição ecológica, principalmente a transição energética, é universalmente percebida como uma exigência que não pode mais ser adiada, o Sul do mundo é empurrado de volta para os braços dos combustíveis fósseis em nome da dívida", escreve o ativista italiano Francesco Gesualdi, coordenador do Centro Nuovo Modello di Sviluppo, de Vecchiano (Pisa), na Itália, e um dos fundadores, junto com o Pe. Alex Zanotelli, da Rede Lilliput, em artigo publicado por Avvenire, 12-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enquanto a transição ecológica, principalmente a transição energética, é universalmente percebida como uma exigência que não pode mais ser adiada, o Sul do mundo é empurrado de volta para os braços dos combustíveis fósseis em nome da dívida. É o que denuncia a organização inglesa Debt Justice no seu relatório “A armadilha da dívida dos combustíveis fósseis”. De 2010 a 2021 a dívida pública dos países do Sul do mundo quase duplicou o seu peso no PIB, passando de 35% para 60% do produto interno bruto. Uma dívida que aumentou não só em relação aos credores internos, mas também estrangeiros. De 2010 a 2021 a parte da dívida pública para com credores estrangeiros aumentou dez pontos percentuais, de 19% para 29% do produto interno bruto. A conclusão é que de 2011 a 2023 os valores desembolsados pelo Sul do mundo para o pagamento da dívida externa aumentaram 150%, atingindo picos nunca antes alcançados. A situação poderá tornar-se ainda pior tendo em conta que as taxas de juros estão aumentando e que a guerra na Ucrânia está empurrando para cima os preços dos alimentos e da energia. Com efeitos gravíssimos para as populações. As Nações Unidas estimam que 3,3 bilhões as pessoas vivem em países que gastam mais com os juros da dívida do que com saúde e educação.
E uma vez que muitas dessas quantias devem ser pagas em dólares ou euros porque são devidas a credores estrangeiros, o problema de cada país não é apenas aumentar as suas receitas fiscais, mas também aumentar as receitas de exportação. Alguns países, agora com um bom aparato industrial, podem tentar impulsionar as exportações de bens manufaturados, mas os menos industrializados não têm outra escolha senão aumentar as exportações de recursos naturais, incluindo carvão, gás e petróleo.
De acordo com uma pesquisa realizada pelo New Climate Institute, aproximadamente metade dos 76 países menos desenvolvidos têm combustíveis fósseis no subsolo e estão planejando extrair mais para atender seus compromissos financeiros. Além disso, entre os credores do Sul do mundo há também estados e empresas que para se protegerem contra o risco de calote nos pagamentos previram a possibilidade de serem pagos diretamente em espécie através da entrega de petróleo ou transferência de propriedade de poços detidos pelos governos devedores. Um exemplo é a Glencore, multinacional suíça ativa na produção e comércio de uma variedade de minerais, incluindo petróleo. Em 2013 emprestou dois bilhões de dólares ao governo do Chade, exigindo como condição também a de se tornar o comprador exclusivo do petróleo extraído dos poços de propriedade governo e obter coparticipação nos dois principais poços de petróleo do país.
O absurdo é que muitos países, para terem mais receitas do gás ou do petróleo para colocar a serviço da dívida, primeiro têm que se endividar para abrir novas jazidas. Está acontecendo com a Argentina, que descobriu na Patagônia a existência de jazidas de gás que pode ser explorado com as novas tecnologias de “fraturamento”. Várias empresas estrangeiras se candidataram para fazer a extração, mas apenas em troca de contribuições públicas a fundo perdido. Entre 2016 e 2018, o Estado argentino gastou 3,6 bilhões de dólares em contribuições para empresas de extração, que em muitos casos cobriram mais de 50% dos seus investimentos.
Dinheiro público que contribuiu para o agravamento da dívida externa da Argentina. O mesmo poderíamos dizer para a Uganda que em 2021 obteve um empréstimo de um bilhão de dólares de Fundo Monetário Internacional a ser utilizado principalmente para a construção de um gasoduto útil para transportar gás de Uganda para as costas da Tanzânia. Apesar das múltiplas declarações de governos e instituições do Norte de não querer mais financiar a extração de combustíveis fósseis, muitos continuam a conceder empréstimos para a abertura de novos locais de produção no Sul do mundo. De acordo com a Debt Justice, entre 2020 e 2022 o sistema dos bancos multilaterais, do qual o Banco Mundial é o líder, concedeu um total de 10 bilhões de dólares em empréstimos destinados à extração de combustíveis fósseis.
A história nos dirá se foi um negócio para o Sul do mundo endividar-se para aumentar a produção de combustíveis fósseis. Mas até o momento podemos dizer que é um péssimo negócio de um ponto de vista ambiental porque as maiores emissões de dióxido de carbono resultantes irão piorar um quadro já grave. Vale lembrar que as enchentes ocorridas no Paquistão no verão de 2022 devastaram a existência de 33 milhões de pessoas, matando quase duas mil.
Na África Subsaariana, por sua vez, todos os anos vemos um aumento no número de pessoas passando fome por falta de chuvas. Segundo as agências mais respeitadas, até 2030 os países do Sul do mundo deveriam investir cerca de seis trilhões de dólares para financiar a transição energética e, ao mesmo tempo, construir as obras necessárias para reduzir o impacto das mudanças climáticas.
Mas devido à dívida, esse objetivo está longe de ser alcançado. Os países do Sul do mundo gastam cinco vezes mais no serviço da dívida do que dedicam às despesas relacionadas com as mudanças climáticas. E embora sejam valores pequenos, totalmente insuficientes para atender às necessidades relacionadas às mudanças climáticas, também contribuirão para aumentar a dívida do Sul do mundo porque a palavra “doação” parece ter desaparecido do vocabulário internacional.
Na abertura da COP28, foi anunciada como um grande sucesso a criação de um fundo à disposição dos países mais vulneráveis para compensar os danos causados pelas mudanças climáticas. Mas no presente momento as contribuições prometidas não chegam a um bilhão de dólares. Quanto aos fundos, já operacionais, para obras de mitigação e adaptação, que arrecadaram 73 bilhões de dólares em 2021, destinam-se principalmente a empréstimos. Em 2021, apenas 27% das contribuições arrecadadas foram oferecidas a fundo perdido. Sem a redescoberta de uma nova solidariedade, a situação tornar-se-á cada vez mais grave.
Para todos. É por isso que a conclusão da Debt Justice é que para libertar o Sul do mundo do abraço mortal com os combustíveis fósseis e ao mesmo tempo permitir-lhe enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas, devemos cancelar a sua dívida e apoiá-lo com somas a fundo perdido. Pode parecer de bom coração, mas, na realidade, é apenas justiça. É o pagamento pelos danos causados em cinco séculos de mau desenvolvimento.
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A dívida é inimiga da transição: armadilha fóssil para os países pobres. Artigo de Francesco Gesualdi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU