07 Dezembro 2023
"Se parássemos diante do 'fato' nu e cru - mais uma vez uma mulher foi morta por um homem que ela conhecia, em quem confiava - talvez as tantas ilhas ficassem sem combustível e conseguiríamos finalmente ter um verdadeiro discurso público, um debate partilhado, no qual juntos nos questionarmos se tal desfecho poderia ter sido evitado e, em caso afirmativo, o que podemos fazer para evitar que volte a acontecer", escreve Peter Ciaccio, pastor na Igreja Valdense de Palermo, em artigo publicado por Riforma, revista semanal das igrejas Evangélicas Batistas Metodistas e Valdenses, 08-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Parece que o feminicídio em relação ao patriarcado finalmente tenha se tornado parte do discurso público. Porém, existe algo que podemos chamar de “discurso público”? A impressão é que se trata mais de um arquipélago de discursos privados: ilhas cada vez mais numerosas e menores, portanto dotadas de forte identidade, mas fracas e insignificantes nos fatos. O interlocutor buscado é cada vez mais uma pessoa que tenha o mesmo ponto de vista, a tal ponto que no final o outro não tem mais razão ser, se não em função instrumental de opinião, reivindicada como pessoal, mas assumida como absoluta. A ilha tende a reduzir-se gradativamente até coincidir apenas com o indivíduo. Talvez sempre tenha sido um pouco assim, mas a presença cotidiana das redes sociais nas nossas vidas faz com que as várias ilhas tomem consciência do que de diferente é dito nas outras.
Diante dessa descoberta a reação não é abrir uma discussão, mas vociferar mais alto e reforçar a própria identidade. Para gritar a posição pessoal não há necessidade de profundidade. Assim, superficialidade e violência se aliam. Encontramo-nos, portanto, diante de uma espiral viciosa a ser quebrada, porque a ausência de um discurso público digno deste nome não significa que finalmente todos podem dizer tudo, mas que quem for mais forte, mais esperto e poderoso hegemonizará o arquipélago. É a tão temida lei da selva.
A superficialidade muitas vezes é rica de palavras: longas postagens no Facebook, com a pretensão de serem escritos corsários à conquista do mundo, ou grandes manchetes berradas nos jornais de referência, brandidas como fossem tantas "Jolly Roger". Porém, essa superficialidade também afetou a comunicação mais mainstream: os programas de aprofundamentos político, os jornais de maior prestígio, os lugares institucionais da política. Agora que finalmente se fala extensivamente sobre patriarcado e sua mais trágica consequência, surge a dúvida de que, talvez, teria sido melhor não falar sobre isso, dada a desolação do discurso público.
Obviamente não pode ser assim: é sempre melhor falar.
As pessoas, de fato, nunca são totalmente estúpidas; Abraham Lincoln dizia que: “Você pode enganar todo mundo por algum tempo e alguns para sempre, mas não pode enganar todo mundo o tempo todo." Então, é melhor falar a respeito. Ao mesmo tempo, seria bom contribuir para um salto de qualidade do discurso público. Isso vale, em especial, para as igrejas filhas da Reforma, que fizeram da palavra seu estandarte. Precisamente a reflexão sobre a centralidade e o poder performativo da Palavra de Deus contida nas Escrituras levou as igrejas protestantes a compreender, muito antes de Nanni Moretti, que “as palavras [humanas] são importantes: quem fala mal, pensa e vive mal."
Assim, a palavra humana se confronta com a Palavra de Deus contida nas Escrituras. Pensemos, então, em como é contada a Paixão de Cristo: precisaríamos mesmo de mais detalhes sobre as torturas sofridas por Jesus? Não, porque a vertigem da lista detalhada nos desviaria do que é o “fato”. Em vez disso, nas redes sociais e na imprensa os detalhes de um feminicídio parecem ser infinitos. Pensa-se erroneamente que quanto mais detalhes houver, mais se contribui para o debate público, quando é exatamente o contrário. O detalhe no nível de instrução alimenta a ilha que culpabiliza a escola. Aquele sobre os sentimentos do carrasco alimenta a ilha que culpabiliza o feminismo. Aquele sobre a situação econômica alimenta, dependendo, a ilha antiburguesa ou a ilha pauperofóbica.
Se parássemos diante do "fato" nu e cru - mais uma vez uma mulher foi morta por um homem que ela conhecia, em quem confiava - talvez as tantas ilhas ficassem sem combustível e conseguiríamos finalmente ter um verdadeiro discurso público, um debate partilhado, no qual juntos nos questionarmos se tal desfecho poderia ter sido evitado e, em caso afirmativo, o que podemos fazer para evitar que volte a acontecer.
Em 1623, na meditação nº. 17, o poeta e pregador anglicano John Donne escreveu estas palavras que poderiam ser úteis hoje: “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.”
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Cada morte nos diminui: é necessária uma nova ética das palavras. Artigo de Peter Ciaccio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU