A cerimônia de Adeus: reflexões sobre “O quarto do filho”, de Nanni Moretti. Artigo de Faustino Teixeira

Cena de “O quarto do filho”. (Foto: Reprodução)

27 Junho 2022

 

"Com sua singela arte, Nanni Moretti consegue proporcionar aos espectadores um momento de travessia, quando saem da escuridão para captar silenciosamente a dinâmica de reconciliação com a vida. É um filme difícil, que toca com traços realistas o drama da barreira da morte, mas que ao mesmo tempo deixa uma mensagem de esperança, que convoca todos ao exercício cotidiano de dedicar-se com afinco aos laços de amizade, nunca esquecendo da importância de repetir diuturnamente as palavra de amor. Não há porque desviar o olhar para promessas desencarnadas, mas viver com atenção e carinho os singelos momentos do aqui e do agora".

 

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do canal Paz e Bem.

 

Eis o artigo.

 

Na quarta feira, 22 de junho de 2022, tivemos um novo encontro no Filmes em Perspectiva, iniciativa do Canal Paz e Bem e do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O debate, com as presenças de Mauro Lopes e Faustino Teixeira, foi em torno do filme de Nanni Moretti, O quarto do filho (La stanza del figlio), de 2001. O filme foi vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2001 e também do Prêmio David de Donatello.

 

 

O filme tem a direção e roteiro de Nanni Moretti, que também integra o elenco, no papel do psicanalista Giovanni Sermonti. Junto como Moretti, temos a presença de Laura Morante, no papel de Paola, mulher de Giovanni. Compondo o quadro dos integrantes, as presenças de Giuseppe Sanfelice, no papel do filho Andrea e Jasmini Tranca, representando a filha Irene. Temos ainda a participação de Sofia Vigliar, no papel de Ariana, amiga de Andrea, com quem teve um breve encontro romântico no verão precedente.

 

Merecem destaque a fotografia, a cargo de Giuseppe Lance e a linda trilha sonora de Nicola Piovani, que também foi responsável pela função em outro belo filme de Nanni Moretti, em 1993, Caro Diario.

 

Como bibliografia para acessar o mundo cinematográfico de Nanni Moretti, aconselho as seguintes obras: Ewa Mazierska & Laura Rascaroli. Il cinema di Nanni Moretti. Sogni & diari (Gremese, 2006); Roberto De Gaetano. Nanni Moretti. Lo smarrimento del presente (Pellegrini, 2015); Paolo Di Paolo & Giorgio Biferali. A Roma con Nanni Moretti (Bompiani, 2016); Flavio De Bernardinis. Nanni Moretti (Il Castoro, 2005).

 

O diretor Nanni Moretti nasceu em 19 de agosto de 1953 na cidade de Brunico, que se localiza na região do Trentino Alto Ágide, província de Bolzano. Todo o período de sua formação passou em Roma, onde também cursou o Liceo Classico. O seu primeiro trabalho, em 1973, foi um filme super 8, com uma câmera que comprou ao vender sua coleção de selos. O título do trabalho, La sconfita, abordou em chave cômica a crise de um militante de 1968.

 

Depois vieram outros trabalhos, entre os quais destaca-se Ecce Bombo, lançado em Roma em 1978, que foi seu primeiro filme com produção profissional, com inesperado sucesso de público. Na sequência veio Sogni d'oro, seu primeiro filme girado em 35 mm, que foi agraciado com Leão de Ouro no Festival de Veneza, mas que não teve a mesma repercussão do anterior. Outros títulos se seguiram, e destaco alguns: La messa è finita (1985 – Urso de Prata do Festival de Berlim, em 1986); Caro diario (1993 – prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, em 1994); Aprile (1998); Mia madre, 2015 – que também aborda o tema da morte -, e Habemus Papam (2011).

 

Dos filmes citados, dois têm um traço biográfico bem definido, como Caro Diario e Aprile, ambos com a presença de Nanni Moretti como ator principal. No caso do segundo, realizado em 1998, foi um filme que o diretor dedicou ao seu filho Pietro, que tinha nascido em abril de 1996. Vale registrar que esse filme foi lançado num momento particularmente importante da política italiana, com a vitória da coalização de centro-esquerda, liderada por Romano Prodi. Moretti, situado à esquerda, sempre abordou essa temática em seus filmes, acentuando o seu papel crítico sobretudo depois da vitória de Silvio Berlusconi, em 1994, que foi por três vezes primeiro ministro da Itália, colocando no cenário político um partido direitista: Forza Italia.

 

A ideia da filmagem do Quarto do filho já era anterior, tendo sido concebida pelo diretor por ocasião da morte de seu pai, o historiador Luigi Moretti, em agosto de 1991. Nanni Moretti preferiu realizar o trabalho posteriormente, para evitar situar um filme com traço fúnebre na sequência do nascimento de seu filho, em 1996. A realização foi postergada para mais adiante, com o filme lançado em 2001.

 

O Quarto do filho apresenta um roteiro simples, entorno da história de uma família de Ancona, cidade situada numa província da Itália Central. Tudo transcorre de forma serena na família do psicanalista Giovanni, casado com Paola, e seus dois filhos: Andrea (16 anos) e Irene (18 anos). O psicanalista transcorre sua pacata vida entre a família e seu consultório, situado na sua casa. O filme registra cenas da vida familiar, uma das quais de beleza singular, quando juntos estão em passeio num carro e o pai, Giovanni, se põe a cantar alegre, e aos poucos a canção vem partilhada pelos filhos e a esposa. Outras sequências mostram a regularidade da vida familiar, tecida por carinho e boa comunicação entre todos.

 

A história da família vem abalada com um acontecimento inusitado e chocante, que foi a morte de Andrea num acidente durante um mergulho submarino com um amigo. O traço perturbador do acontecimento se dá em razão de Giovanni ter cancelado um encontro com Andrea por causa da solicitação de um cliente para um atendimento de emergência no final de semana, justamente no dia em que o pai tinha marcado para fazer um programa com o filho.

 

Tudo ocorreu numa manhã de domingo. A família foi impactada pela dor do acontecimento, com consequências duras para todos, interferindo brutalmente na dinâmica das relações no núcleo familiar, até então harmonioso. Em trecho do encarte do filme, temos uma síntese do que ocorreu: “Tutto sbeccato, tutto rovinato in questa casa, tutto rotto...” (Tudo lascado, tudo arruinado nessa casa, tudo sulcado, rompido, rasgado).

 

Numa das cenas mais pesadas do filme, está a família junto ao caixão de Andrea, imersos em tristeza abissal, naquela difícil cerimônia de adeus. Em cena alongada, cada um deles, em momentos distintos, achega-se ao corpo de Andrea, para o beijo de despedida, para a palavra sussurrada diante dele, num adeus que atravessa a alma de quem está assistindo. A câmara acompanha lentamente o selamento do caixão.

 

O acidente interfere na relação entre Giovanni e Paola, os pais de Andrea. Giovanni vem tomado por uma reação de dor inconformada. Ele ao mesmo tempo sente uma culpa irreparável, por ter desmarcado o encontro com o filho, que talvez teria salvado o menino do acidente. E igualmente por um sentimento de negação do quadro ocorrido, expresso por exemplo numa das cenas do filme, quando ele em casa tenta voltar desesperadamente com o controle remoto, uma música que estava sendo tocada em seu aparelho de som. E nos cômodos ao lado, os olhares perplexos de sua mulher e filha, incapazes de ser uma presença de apoio naquele momento de dor. Com reações de agressividade marcadas, Giovanni conflitua com a mulher, que reage dizendo que ele, Giovanni, estava preocupado unicamente em buscar aliviar sua dor, em vez de lidar com o acontecimento de uma outra forma.

 

Isso era impossível para Giovanni naquele momento. O pai vaga desvairado pelos mesmos lugares em que Andrea passava momentos de seu cotidiano, como no parque de diversões, na pista de corrida, na loja de música. Tenta escrever uma carta para a amiga de Andrea, sem sucesso. A redação vem interrompida pela incapacidade de expressão.

 

Em conversa com seu supervisor, Giovanni vem aconselhado a dar um tempo nos seus atendimentos terapêuticos. Ele o faz, mas talvez tenha voltado um pouco antes, encontrando-se ainda despreparado para o trabalho que implica num distanciamento psicológico fundamental com respeito aos pacientes. Ele voltara sem ter ainda ajeitado o seu equilíbrio interior. Nas sessões ele se sente distanciado, esvaziado e em casos concretos não consegue escamotear sua dor e choro, mesmo diante dos pacientes. Pensa em abandonar tudo, e o relata aos pacientes que em alguns casos reagem negativamente, e até com violência.

 

Sua mulher, Paola, vive a dor de forma diversa, num choro surdo e dolorido na cama do casal, incapaz de qualquer reação de avivamento. Passa também a cultuar o quarto do filho, mantendo tudo intacto, e cada coisa em seu lugar, como se fosse um espaço “sagrado” a ser preservado a todo custo: as roupas do filho, seus objetos, seus moveis e suas músicas. Ali naquele espaço ela talvez pudesse desvelar aspectos desconhecidos da vida do filho querido. É como se pudesse resguardar sua presença simbólica ali. Era o caminho encontrado por ela para “negar” a perda indescritível.

 

Ao ver a cena, lembrei-me de uma passagem de um livro de Cissa Guimarães [1], onde ela entrevistou Gilberto Gil, que perdeu um filho num acidente de carro. E Gil comenta:

 

“O Pedrão se foi em 1990. Os anos passam e basicamente o que fica depois de tanto tempo é o afeto e o amor que tínhamos um pelo outro. Eu, como pai, e ele, como filho, no mais é a memória. É um recanto da memória que você escolhe como altar e ali a deposita. Outras memórias você nem deposita num canto especial, mas, no caso de um filho que se foi, essa memória fica tipo nicho. Essa memória são as lembranças, as fotografias etc.” [2].

 

Veio-me também à memória a linda canção de Chico Buarque, Pedaço de mim, na linda interpretação de Chico com Zizi Possi [3]. Na letra, as palavras fortes:

 

“Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar (...).

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”.

 

 

Retomando o filme, outra expressão de dor vem expressa nas reações da filha, Irene, que rebate ao acontecimento com nuances particulares. A jovem de apenas dezoito anos acaba exercendo um papel difícil para a sua tenra idade, de buscar acolher, com seus parcos recursos, à dor dos pais destruídos pela perda. Em aparência, ela consegue manifestar a calma possível para ser uma presença de amor naquele momento, mas era algo delicado para ela, e sua dor interior manifesta-se em situações como a do rompimento com o namorado e nos gestos de raiva e violência manifestados nos treinamentos de basquete. Não havia como ocultar a dor que corroía seu mundo interior.

 

Por insistência dos amigos de Andréa, a família – sem traços de religiosidade -, acolhe o pedido em favor de uma missa de sétimo dia. Durante a celebração, vemos cenas de desgosto visíveis na face do pai, no descontentamento manifesto em troca de olhares com a mulher na igreja. As palavras do padre na cerimônia não agradavam a ele. Em seus comentários, o padre falou:

 

“Não somos nós que estabelecemos os encontros da vida. Mas é natural que aqueles que permanecem, sobretudo os pais, a família... eles perguntam por que! A resposta é uma só: Deus marcou aquele encontro. Mesmo não tendo revelado a nós o porque. Não podemos senão enfrentar com , com grande fé, aquilo que nos parece incompreensível. No evangelho está escrito: 'Vigiai, portanto, porque não sabeis em que dia vem o Senhor. Compreendei isto: se o dono da casa soubesse em que vigília viria o ladrão, vigiaria e não permitiria que a sua casa fosse arrombada'” (Mt 24,42-43).

 

O diretor consegue com delicadeza e eficiência transmitir com fidelidade para o expectador o que é a dor de uma perda tão importante: a morte de um jovem antes do tempo, que rompe com a barreira da natureza, onde em geral é o velho que morre primeiro. Nas lentes de Moretti, o espectador acompanha os pequenos detalhes psicológicos nas feições dos personagens, explorando com perspicácia os distúrbios que acompanham a tristeza nesse rompimento do ciclo da vida.

 

Recorrendo a Freud, em seu clássico artigo sobre o luto e a melancolia, de 1917 [4], encontramos pistas importantes para entender o processo de luto que envolveu a dinâmica da família Sermonti. Para Freud o luto é “a perda de algo amado”. Não implica uma “condição patológica”, desde que consiga ser superado após certo período de tempo. Dentre seus traços encontramos um “desânimo profundo e penoso” e uma “inibição” das atividades. Quando ele ocorre se dá também uma “perda de interesse pelo mundo externo a não ser que se trate de circunstâncias ligadas ao objeto perdido”. A superação do luto é realizada “pouco a pouco, e com grande gasto de energia” [5]. A sina da realidade revela que “o objeto amado não existe mais”.

 

Faz-se necessário todo um trabalho gradual, paciente, que prossegue “exigindo que toda a libido seja retirada de seus apegos a esse objeto”. O trabalho de luto envolve, assim, “o processo psíquico de desinvestimento libidinal no objeto perdido e a reinserção do sujeito no circuito desejante da vida” [6]. Pode-se também recorrer aos trabalhos da estudiosa Elizabeth Kubler-Ross (1926-2004), que fala nos cinco estágios que envolvem a elaboração do luto: a negação; a raiva; a negociação/barganha; a depressão; a aceitação.

 

Ainda em torno ao trabalho do luto, veio-me à mente uma cena muito bonita do filme Drive My Car, de Ryusuke Hamaguchi. Já perto do final, um dos personagens que segue viagem junto com sua motorista, e a viagem comum os aproxima, dirige-se à companheira, numa paisagem envolvida pela neve, e diz: “Aqueles que sobrevivem continuam pensando nos mortos. De uma forma ou de outra. Isso vai continuar. Você e eu temos que continuar vivendo... Temos que continuar vivendo. Tudo vai ficar bem” [7].

 

A dor da família, no filme, vem amenizada por uma circunstância imprevista, quando a mãe, Paola, ao chegar em casa, observa que entre as correspondências na caixa de entrada de seu prédio, há uma carta dirigida a Andrea. Era a carta de uma amiga do filho, que com ele vivera um breve romance no verão anterior. A garota se chamava Arianna. Sua entrada em cena provoca uma mexida na família. Os pais de Andréa buscam fazer contato telefônico com ela, e em certo momento, ao conseguir falar com a moça, a mãe não dá conta de manter a conversação, tocada de emoção. Giovanni, por sua vez, tenta escrever uma carta para Arianna, e não consegue realizar o intento.

 

Ocorre que um certo dia, inesperadamente, a garota toca a campainha da casa e vem recebida por Giovanni, que se encontra sozinho no apartamento. Os dois conversam brevemente, até a chegada de Paola. A emoção do encontro deles com Arianna é grande. Ela estava de passagem pela cidade, junto com um amigo. Os dois viajavam de carona e ela resolveu se encontrar com a família de Andrea. No breve e intenso encontro, eles conversaram sobre o ocorrido. Em momento singular do filme, Arianna mostra os retratos que tinha recebido de Andrea, com cenas de sua presença no quarto em Ancona.

 

Os pais resolvem levar de carro os dois amigos para a estação de ônibus, que ficava nas proximidades de Gênova. Dali seguiriam viagem. No carro estavam os pais na frente e no banco traseiro, Irene e os dois amigos. Os que estavam atrás acabaram adormecendo, e quando o carro chega a seu destino, Giovanni e Paola admiram a paisagem daquele início de manhã, junto ao mar.

 

Eles se despedem de Arianna, que do ônibus observa o movimento de Giovanni, Paola e Irene, que se encaminham calmamente na areia da praia, cada um para um lado, imersos em seus sentimentos e pensamentos, buscando talvez elaborar as formas singulares de trabalhar a dor vivenciada. É uma cena magistral, bonita, serena e luminosa, que desvela para os espectadores um momento importante de início da superação do trabalho de luto.

 

A presença de Arianne na vida da família serviu de ponto de arranque essencial para a integração da dor num quadro de referência plausível, ajudando no trabalho essencial de lidar com o vazio da perda de Andrea. Ela emergia como o sinal da bruma de Andrea materializada no tempo. Sua presença serviu de ponte para uma travessia dos que ficaram rumo ao sentido obnubilado. O próprio nome Arianna, nos remete ao personagem mitológico Ariadne, que “ofereceu a Teseu um fio de labirinto escuro do Minotauro em direção à luz” [8].

 

Com sua singela arte, Nanni Moretti consegue proporcionar aos espectadores um momento de travessia, quando saem da escuridão para captar silenciosamente a dinâmica de reconciliação com a vida. É um filme difícil, que toca com traços realistas o drama da barreira da morte, mas que ao mesmo tempo deixa uma mensagem de esperança, que convoca todos ao exercício cotidiano de dedicar-se com afinco aos laços de amizade, nunca esquecendo da importância de repetir diuturnamente as palavra de amor. Não há porque desviar o olhar para promessas desencarnadas, mas viver com atenção e carinho os singelos momentos do aqui e do agora

 

Notas:

 

[1] Cissa Guimarães & Patrícia Guimarães. Viver com fé. Histórias de quem acredita. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.

[2] Ibidem, p. 255.

[3] Disponível aqui. (Acesso em 23/06/2022).

[4] Sigmundo Freud. Luto e Melancolia. Leebooks Editora, 2020.

[5] Ibidem, p. 9-10.

[6] Andrea Sabbadini. Algumas reflexões sobre o filme de Nanni Moretti. Jornal de Psicologia, v. 52, n. 96, São Paulo, Jan./Jun. 2019. Cf. a versão digital Pepsic: diponível aqui (acesso em 23/06/2022).

[7] Drive my Car, dirigido por Ryusuke Hamaguchi (2021). Baseado no romance de Haruki Murakami.

[8] Andrea Sabbadini. Algumas reflexões...

 

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