23 Novembro 2023
"Qual é a relação entre 'Deus e a nossa felicidade'? Castillo na sua teologia nos convida a desconstruir a imagem errada de deus, que causou opressão, violência e morte e redescobrir a imagem fonte de um Deus que se preocupa com a nossa felicidade; Deus como cúmplice da nossa felicidade".
O artigo é de Marco Campedelli, agente teatral com currículo de estudos teológicos acadêmicos, publicado por Rocca, Nº. 23, 01-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que há de mais profundo e intimamente vivenciado na vida de cada um, transitoriedade, doença, morte, vaidade de opiniões e crenças, não pode ser expresso na linguagem da teologia, cujas respostas amoldadas ao longo dos séculos são como esferas perfeitamente lisas, fáceis de rolar, mas praticamente impenetráveis. Assim escrevia Czeslaw Milosz (Nobel de Literatura 1980).
De que teologia ele estava falando? Certamente não daquela de José Maria Castillo, teólogo visionário falecido repentinamente, aos 94 anos, em sua Granada, no dia 12 de novembro. Durante toda a sua vida Castillo foi o “Dom Quixote da Teologia”. Todas as manhãs, como dizia a sua compatriota Maria Zambrano, Castillo, como Quixote, saia ao alvorecer. E foi essa sua espera e esperança pelo amanhecer que o tornou o pensador de olhar penetrante e ao mesmo tempo a criança de coração livre e alegre. Um dom Quixote como “figura de Cristo”, segundo a interpretação de Miguel de Unamuno, “que não se resigna nem ao mundo, nem à sua verdade, nem à ciência ou à lógica, nem à arte ou à estética, nem à moral ou à ética”. “Então qual é a missão de Dom Quixote no mundo atual?”, se pergunta o grande crítico espanhol. “Gritar, gritar no deserto”.
O grito quixotesco de Castillo foi a denúncia contra o desumano, que depois se transforma em canção para o humano e para o divino que se revela no humano. O primeiro a ser libertado é justamente Deus, feito refém de um sistema religioso, que fez dele um juiz onipotente e desprovido de ternura. Mas o Deus que Castillo tenta libertar é aquele que se preocupa com a felicidade dos seres humanos e a própria felicidade da criação.
Qual é a relação entre “Deus e a nossa felicidade”? Castillo na sua teologia nos convida a desconstruir a imagem errada de deus, que causou opressão, violência e morte e redescobrir a imagem fonte de um Deus que se preocupa com a nossa felicidade; Deus como cúmplice da nossa felicidade. "É possível alcançar a plenitude do ‘divino’, escreve ele, “apenas na medida em que nos empenhamos em alcançar a plenitude do ‘humano’. Isto é, nos tornamos mais divinos na medida em que nos tornamos mais humanos." Para Castillo existe uma incompatibilidade entre a “Religião” e o “Evangelho”, por isso quanto mais nos deixamos provocar pela “Boa Nova” quanto mais nos libertarmos da Religião que nos impede de crescer e ser livres e pensantes.
Mas como um teólogo “liberta Deus”? Deve antes de tudo “libertar a teologia”. Uma teologia funcional ao sistema da Religião coloca o “corpo do sistema” em primeiro lugar.
Castillo decide que para renovar a teologia é preciso colocar no meio o próprio corpo. Mas tal a operação pode não ser indolor. O sistema da religião que marginalizou o evangelho, por sua vez marginalizará e punirá aqueles que colocam o evangelho de volta no centro.
Tal como acontece com o profeta bíblico, não pode haver separação entre a sua profecia que se anuncia e a próprio destino. Ao colocar em jogo o “corpo” de sua própria teologia, Castillo coloca em risco o seu próprio corpo, a sua própria vida. “Fui expulso da faculdade de teologia e as autoridades eclesiásticas romanas retiraram a minha 'venia docendi' ou 'autorização de ensino' nas instituições eclesiásticas em abril de 1988. Em 16 de novembro de 1989, seis padres jesuítas e duas mulheres foram assassinados no campo universitário da América Central em El Salvador." Assim escreve em seu livro “Memórias”.
Todos os anos Castillo, durante muito tempo, viajará entre a Espanha e El Salvador para oferecer o seu ensinamento teológico na terra coberta de sangue de Monsenhor Romero. Ir “substituir” os teólogos massacrados pelos esquadrões da morte significava também aceitar a risco, assumindo não só intelectualmente, mas existencialmente, o mesmo destino.
Ao apresentar o seu livro “Os pobres e a teologia” escrevia: “Uma das coisas mais preocupantes que estamos vivendo na igreja é o empobrecimento da teologia. Sem medo de exagero pode-se dizer que pelo menos na Igreja Católica esse empobrecimento atinge as dimensões de uma crise cuja consequências são incalculáveis."
Depois dos grandes teólogos que haviam preparado e participado do Concílio (Rahner, Congar, Chenu, De Lubac, Häring...) “perdeu-se na Igreja Católica a criatividade teológica, fruto de uma liberdade de pensar e de falar que já não existe mais", de modo que "os professores de teologia são muitas vezes mais preocupados em não dizer algo que possa desagradar a Roma do que responder aos muitos e graves questionamentos que as pessoas se fazem sobre Deus, a religião, a igreja, a moralidade..."
É preciso, diz Castillo, “audácia” e “liberdade” para escapar do sistema do sagrado, redescobrindo a “laicidade do evangelho." A mesma “laicidade” que impediu Jesus de ser prisioneiro da religião, mas livre para pensar e agir. Ele escreve: “o Evangelho é um livro de religião ou a história de um conflito mortal com religião? Ao longo da vida de Jesus, os conflitos com os sacerdotes, os doutores da lei, os fariseus, o templo, as observâncias e as normas religiosas foram sistemáticos. Então pode-se pensar seriamente em um cristianismo “não-religioso”? As mulheres e os homens de hoje têm sede de beleza e de justiça e buscam a "transcendência" em formas diferentes. Mas onde está a "transcendência"? Castillo escreve: “Buscar o transcendente na profundidade e a partir da profundidade do humano. O que equivale a dizer: a questão determinante para os cristãos é procurar Deus e acreditar na transcendência de Deus a partir da solidariedade com as vítimas, com os crucificados deste mundo… com todos aqueles que (…) necessitam de compreensão, tolerância, companhia e amor".
Para Castillo, torna-se intolerável uma religião que usa o Evangelho para justificar a moral do sistema religioso. Ele escreve: “O que mais me irrita é que fingimos dar aos problemas morais que hoje se apresentam soluções que Jesus nunca teria dado”.
O “declínio” da Religião, escreverá no seu último livro, será inversamente proporcional ao “futuro do Evangelho”. A própria Igreja hoje deve decidir o que quer escolher.
José Maria Castillo encontrou-se com o Papa Francisco, que o encorajou a continuar seu trabalho teológico e aquela profecia que o Papa argentino também aprendeu com a teologia e com vida do Teólogo de Granada.
No último dia de sua vida Castillo saiu junto como Dom Quixote ao alvorecer. Acabará por adormecer docemente no ombro de Margarita Orozco, a mulher que havia encontrado no caminho da utopia e do sonho.
Também para mim “Pepe” Castillo foi um amigo comovente e um professor insubstituível.
Minha poética se reflete em sua teologia. Quando me vi, no meu próprio âmbito, lutando com a “Religião” de que fala Castillo e com seu poder, Pepe estava ali, por perto, solidário. Ele acreditava no que Buber escreve em Os Contos dos Hassidim: “Se alguém acabou no atoleiro – diz o Baal Shem – e o seu companheiro quer tirá-lo de lá, deve sujar-se um pouco”. Foi o que fazia o teólogo Castillo, cuidando da vida dos outros e da sua felicidade. Por isso, parafraseando um dos seus livros, poderíamos finalmente dizer: “Castillo e a nossa felicidade”.
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Castillo e a nossa felicidade. Artigo de Marco Campedelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU