21 Novembro 2023
"A catástrofe climática, que já começamos a experimentar e que hoje é agravada pela guerra mundial em pedaços, pode levar a humanidade a abandonar a modo de vida urbano, sua economia de mercado e sua tecnologia de ponta, e voltar a integrar-se na economia da Comunidade de Vida da Terra. É o que fazem os povos originários: cuidar da casa comum, onde tudo que é extraído da Terra a ela retorna, numa relação de aliança que vai além da espécie humana e abrange também a Terra e sua comunidade de vida", escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, em artigo enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
Pedro A. Ribeiro de Oliveira é doutor em Sociologia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Foi professor no mestrado em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas – PUC Minas, consultor de ISER-Assessoria, membro da diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER e da coordenação nacional do Movimento Fé e Política. De suas obras, destacamos Fé e política: fundamentos (Ideias & Letras, 2004), Reforçando a rede de uma Igreja missionária (Paulinas, 1997) e Religião e dominação de classe (Vozes, 1985).
Quem já leu minhas análises terá reparado que nos últimos anos tenho insistido na realidade de três conjunturas: a planetária (cujo tempo se mede em séculos), a geopolítica (que se mede em décadas) e a política (medida em meses), porque a conjuntura política é determinada pelas duas outras, embora isso não seja percebido imediatamente. Acontece que agora esses três âmbitos da vida humana parecem confluir para um ponto de mutação ao qual devem chegar mais ou menos ao mesmo tempo. É, portanto uma conjuntura muito peculiar, cuja análise é difícil. Mas arrisco aqui apresentar o que consigo vislumbrar.
Desde 20 mil anos, quando o último período glacial atingiu sua fase final, a Terra vem se aquecendo, e esse aquecimento acelerou-se desde 1750 (início da industrialização, com uso de energia fóssil). Ela deve chegar a 1,5°C acima da média de 1750 ainda antes de 2030. Hoje começamos a experimentar eventos climáticos extremos (ondas de calor, secas, enchentes, aquecimento dos oceanos etc.), sabendo que esses efeitos vão se intensificar. Seria possível evitar esse aquecimento se houvesse radical mudança na emissão de CO2, mas não é o que se constata. Ao contrário: a queima de combustíveis fósseis e a emissão de CO2 tem aumentado (apenas diminui o ritmo de aumento) o que pode antecipar a ultrapassagem do teto de (relativa) segurança de 1,5 °C para 2027.
O impacto do aquecimento na vida humana pode ser previsto: a dificuldade extrema de manter a ordem social num contexto de calor, falta de eletricidade, seca ou inundações e fome. É de se prever convulsões sociais, especialmente nas grandes cidades. É provável que a própria espécie humana se incluirá na 6ª grande extinção de espécies, que já está em curso.
Desde o final da guerra-fria (1991, com a dissolução da URSS), parecia delinear-se um arranjo mundial multipolar (onde grandes forças geopolíticas se equilibrariam: EUA, UE, Rússia, China e Índia). Mas os EUA usaram a vitória de 1991 para reforçar sua hegemonia política, econômica e cultural, acreditando que o mundo tinha chegado à etapa final da História. Mas essa hegemonia foi abalada pela crise financeira de 2008, que possibilitou a emergência da China como potência concorrente e apontou uma nova configuração na ordem mundial. Os EUA reagiram militarmente a essa perda de hegemonia, o que resultou na guerra entre Rússia e OTAN na Ucrânia, e, indiretamente, no atual conflito armado entre Israel e Hamas, além das muitas guerras regionais.
Não há sinais de encaminhamentos viáveis para a Paz mundial. Apelos como o de Francisco e de Guterres, secretário-geral da ONU, não são levados a sério por Israel e EUA. A 3ª guerra mundial em pedaços dá sinais de intensificar-se.
Tudo se passa como se, diante da crise climática e pressionado pela crise financeira, o capitalismo tenha feito da pilhagem de bens-comuns sua principal fonte de lucro. Minérios, terra agriculturável, água, reservas de petróleo, tudo se torna objeto de cobiça das grandes e pequenas empresas em busca do lucro rápido. Pressionadas pelos fundos de investimento que exigem dividendos para remunerar o capital, elas não levam em consideração os danos ecológicos e sociais de sua atividade predatória. Subvencionam a eleição de governantes e parlamentares que se encarregam de blindá-las contra possíveis medidas que viessem a diminuir seus lucros. As guerras e a iminência de catástrofe ambiental só fizeram aumentar a voracidade das empresas: acumular o maior lucro possível hoje, como reserva para quando a situação piorar.
Nesse contexto de violência generalizada, os clamores em favor da Paz são abafados pelos tambores da guerra, que ecoam pelas redes sociais e pela mídia, gerando o clima de insegurança e medo que hoje toma conta do mundo. Ele deriva do impacto provocado pelas mudanças climáticas e pela instabilidade geopolítica e econômica, mas é percebido como resultado da ação de algum inimigo que se oculta para conspirar contra a humanidade.
Não posso afirmar que esse medo difuso, que deriva para ódio contra quem é apontado como fonte de ameaça, tenha sido propositalmente criado para difundir-se pelas redes digitais e pela mídia corporativa, mas certamente elas desempenham papel muito importante para sua difusão. Diante do medo, a prioridade é a busca da própria segurança. Multiplicam-se então os ataques a políticas sociais (p. ex. Estado mínimo, libertarianismo, segurança privada, aceitação de milícias como fato consumado), ao mesmo tempo em que cresce o fascismo como ideário homogeneizador onde o adversário – visto e tratado como inimigo – deve ser eliminado. Ao fascismo – de diferentes matizes – junta-se a imposição do patriarcado – a concentração da propriedade privada e do poder na figura do pai de família – como única forma admissível de família e de relação entre os gêneros.
Nesse contexto, qualquer governo democrático é atacado e cerceado, especialmente se defende as populações mais vulneráveis (inclusive por questão de raça ou gênero) e o meio ambiente, protegendo-os da pilhagem capitalista. Isso acontece também noutros lugares (Argentina, EUA, alguns países europeus) e é o que estamos vendo no atual governo Lula: embora suas medidas no campo da política social sejam tímidas, é sabotado pelo Congresso e acuado pela mídia corporativa. Assim, apesar do desastre de 4 anos do governo bolsonarista, o ideário que o conduziu continua forte no atual cenário da cultura e da política.
* * *
Se o quadro acima esboçado corresponde (muito simplificadamente, é claro) à realidade atual, cabe levantar a questão do que é preciso e o que é possível fazer para evitar que essa confluência de crises traga a devastação da humanidade, senão a extinção de nossa espécie.
Para reverter esse quadro ameaçador, seria preciso dar fim ao capitalismo e ao ímpeto predatório da natureza. Mas já se disse que é mais fácil pensar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Se pensar já é difícil, mais difícil ainda é colocar isso em prática. Não é impossível, com certeza, porque já houve ocasiões revolucionárias em que um movimento de protesto alastrou-se tanto e tão rapidamente que ganhou força capaz de mudar a História. Realisticamente, porém, devo reconhecer que isso não está no horizonte atual, em que os ultrarricos dominam o mundo praticamente sem sofrer contestação. A saída é focar no que é possível fazer.
Vejo aqui duas estratégias: combater o fascismo com método similar ao dele (conquistar corações e mentes por meio de narrativas veiculadas pelas redes digitais e pela mídia convencional) ou buscar um método inteiramente diferente. A primeira tem sido proposta com insistência, tendo em vista o processo eleitoral de 2024 e para atingir setores mais amplos da opinião pública hoje submetida ao bombardeio de fake news e à manipulação das grandes redes digitais.
Gostemos ou não, é preciso travar esse combate para não perdermos esse campo político, hoje sob hegemonia da aliança do fascismo com o fisiologismo. Pessoalmente, porém, esse método não me entusiasma, porque estou convencido de que “os meios condicionam os fins” – como ensina Marcos Arruda – e teimo em acreditar na eficácia maior – a longo prazo – do método fundado na sociabilidade comunitária.
A sociabilidade comunitária decorre de relações fundadas no processo de dar / receber / retribuir, bem estudadas pelo antropólogo M. Mauss. Desde sua origem a espécie homo sapiens relacionou-se por meio de dons que são dados / recebidos / retribuídos / recebidos / retribuídos ... num ciclo que pode se reproduzir indefinidamente. Assim nossa espécie criou comunidades de diferentes tipos e tamanhos. Só a partir da formação de cidades, provavelmente a partir do 5º milênio AEC (antes da Era Comum), a necessidade do mercado para fornecer-lhes o alimento criou outra forma de sociabilidade, fundada no vender / comprar, que – devido à simetria entre o preço de compra e o de venda – fecha-se em si mesma. A enorme expansão do mercado na sociedade moderna, porém, relegou a sociabilidade comunitária à vida doméstica e aos pequenos grupos locais. Esses são os espaços propícios à sociabilidade comunitária que inspira as utopias de tipo comunista, comunitária ou solidarista. Entendo que essa sociabilidade comunitária inspira também a proposta de Francisco na encíclica Fratelli tutti: a Política como forma estendida da Amizade: a Amizade Social.
Trata-se de estabelecer – ou restabelecer – espaços sociais de confiança e amizade atualmente minados pelo fascismo. Isso pode e deve acontecer nos diferentes espaços de sociabilidade interpessoal: vizinhança, família, trabalho, estudo, lazer, Igreja, redes digitais e outros. O importante é que a pessoa aplique em sua conduta a espiritualidade que reza “Onde houver ódio, que eu leve a Amizade”. (Troquei, para o Amor não ser entendido de forma apenas sentimental.) Cada pessoa pode tornar-se então “instrumento de Paz” por atitudes e falas que valorizem a não violência ativa, o respeito ao diferente, o diálogo. Paz ativa, não somente ausência de guerra ou conflito. Paz com Justiça. Sem receio de falar e sofrer rejeição.
Agora termino com a dolorosa questão: será que essa atuação em nível interpessoal, que chamamos trabalho de base, conseguirá derrotar o fascismo e criar uma sociedade planetariamente justa e pacífica? É claro que não: o trabalho de base é excelente para conscientização e organização de base, mas seu alcance não chega ao volume de pessoas capaz de provocar mudanças estruturais. Mesmo considerando o que assinalei no item 4, ao falar de crises tão agudas que são capazes de provocar mudanças cuja rapidez propicia um salto qualitativo no arranjo da sociedade.
Assim, a catástrofe climática, que já começamos a experimentar e que hoje é agravada pela guerra mundial em pedaços, pode levar a humanidade a abandonar a modo de vida urbano, sua economia de mercado e sua tecnologia de ponta, e voltar a integrar-se na economia da Comunidade de Vida da Terra. É o que fazem os povos originários: cuidar da casa comum, onde tudo que é extraído da Terra a ela retorna, numa relação de aliança que vai além da espécie humana e abrange também a Terra e sua comunidade de vida.
Assim, quem sobreviver à grande tribulação hoje vislumbrada, criará um novo Céu na velha Terra!
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Confluência de crises na conjuntura. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU