14 Novembro 2023
"A hospitalidade é uma dimensão que não se detém diante dos diferentes costumes ou das perturbações da sexualidade. O que Francisco sempre repetiu, “a Igreja não é uma alfândega”, não é coincidência que se encontra na Nota sobre a Doutrina da Fé. Como a Igreja é em saída, da mesma forma, é difícil barrar a porta aos sacramentos", escreve Angelo Scelzo, vaticanista italiano, em artigo publicado por Il Sismografo, 10-11-2023.
Podemos discutir, e longamente, teologia e doutrina, mas a autorização - com algumas ressalvas - referendada pelo Papa, às perguntas de um bispo brasileiro - seis questões muito delicadas sobre a possível participação no sacramentos do Batismo e do casamento de pessoas trans ou homossexuais – nos remete a duas linhas essenciais do pontificado. A primeira diz respeito à nomeação do novo Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o argentino Victor Manuel Fernández, chamado de La Plata e ordenado bispo apenas dois meses após a eleição do Papa Bergoglio.
Com um procedimento completamente inusitado, em junho passado o Papa acompanhou aquela nomeação com uma carta na qual, “reconhecendo que o Dicastério em outros tempos chegou a usar métodos imorais”, atribuiu ao novo prefeito o “propósito central de salvaguardar o ensinamento que vem da fé para dar origem à nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam". E para ser ainda mais claro, ele exortou-nos a considerar “qualquer concepção teológica que, em última análise, coloque em dúvida a própria onipotência de Deus e, em particular, a sua misericórdia” como inadequada.
A outra, mais referente à prática, mas não menos vinculativa, reiterou na celebração de abertura do Sínodo, a de uma Igreja que não fecha as portas a ninguém, nem conflituosa, nem rígida, bem como não morna e cansada. Pode-se compreender por que, na introdução da nota oficial emitida pelo antigo Santo Ofício, a premissa é colocada sobre a natureza das respostas que, especifica-se, “repetem essencialmente o que já foi afirmado por este Dicastério no passado”. Em outras palavras, nada de novo sob o sol.
Uma tentativa, talvez, de silenciar um ponto de viragem que, no entanto, existe. Até pela natureza de um tema, a moralidade sexual, que sempre esteve no centro, nas suas múltiplas implicações, de um debate que com o Papa Francisco também entrou a todo vapor nos ambientes institucionais, como o Sínodo, por exemplo.
O que importa na vida concreta de homens e mulheres (bem como de crentes e não crentes) é o aspecto que mais do que qualquer outro tirou das questões propostas pelo bispo brasileiro, o caráter de uma disputa inteiramente interna ao processo eclesial sistema. É claro que estas seis questões não ficarão no papel, nem talvez se limitem à confirmação do que já está em vigor, mas terão, por sua vez, impacto nos costumes sociais e nos estilos de vida, numa transformação contínua e cada vez mais rápida, para começar com a família.
O Papa nunca deixou de defender a instituição do matrimônio, afirmando que não existe outra forma senão a sacramental, mas certamente o horizonte familiar está plenamente inserido num perfil cada vez mais mutável. Mesmo para a Igreja e em particular para os párocos chamados a gerir pessoalmente e no terreno as mudanças propostas, este não é um desafio fácil. Na verdade, poder-se-ia pensar que o impacto mais forte das novas disposições se sentirá sobretudo no seio da comunidade eclesial. Não é fácil imaginar a primeira atitude dos sacerdotes habituados a outras normas ou dos próprios fiéis diante de inserções tão inovadoras. Esperava-se uma orientação mais global do Sínodo de Outubro, que, no entanto, só terminará no próximo ano. Houve expectativa, por exemplo, quanto aos pronunciamentos relativos à bênção das uniões entre pessoas do mesmo sexo e à ordenação de mulheres.
Os “dubia” de cinco cardeais – Brandmuller, Burke, Sandoval Iniguez, Sarah e Zen Ze Kiun – ainda estavam sobre a mesa, insatisfeitos com as respostas recebidas anteriormente. As questões apresentadas à Congregação pelo arcebispo brasileiro José Negri, da diocese de Santo Amaro, ultrapassaram ainda os limites de uma “moralidade atual” que, mesmo dentro da Igreja, normalmente impediu qualquer avanço. No seu conjunto, as questões representam uma série quase completa de casos-limite, face aos quais parece agora completamente incongruente pensar nas proibições impostas, por exemplo, às madrinhas ou padrinhos casados mas separados. O batismo não pode agora ser negado nem mesmo a um transexual que tenha sido submetido a uma cirurgia de mudança de sexo. Assim como os filhos de um casal homossexual. E os transexuais, por sua vez, podem ser padrinhos ou madrinhas, desde que, e esta é uma das poucas ressalvas, “não haja perigo de escândalo”.
Para além da variedade de casos, o que parece essencial é o fato de, aos olhos do Papa, não existirem “refugiados” que escapem à “moralidade atual”. A hospitalidade é uma dimensão que não se detém diante dos diferentes costumes ou das perturbações da sexualidade. O que Francisco sempre repetiu, “a Igreja não é uma alfândega”, não é coincidência que se encontra na Nota sobre a Doutrina da Fé. Como a Igreja é em saída, da mesma forma, é difícil barrar a porta aos sacramentos. Precisamente neste lado tão delicado, será igualmente difícil evitar as disputas teológicas que a Nota sem dúvida relança de forma generalizada.
Se o ataque, já em curso, por parte de muitos locais tradicionalistas, especialmente os americanos, for dado como certo, é provável que o número de cardeais "duvidosos" também aumente, para não mencionar os bispos e a vasta gama de cardeais consagrados mais prudentes e leigos. Francisco sabe bem que em toda a galáxia da moralidade sexual e, especialmente na frente alemã, da ordenação de mulheres, uma forte oposição pode continuar a consolidar-se. No entanto, a nova abertura (mas seria mais correto falar de confirmação) sobre questões de tão vasto impacto ético e social traça de forma cada vez mais completa o caminho de um pontificado, em todo o caso, inovador.
Francisco segue seu próprio caminho. E àqueles que salientam que nem mesmo um Papa pode mudar a doutrina, ele tem a resposta pronta: a doutrina está aí e ninguém pretende mudá-la. Mas “apontar o dedo” não é mais prerrogativa da igreja. As contas são feitas com misericórdia. O verdadeiro ponto de viragem indicado por Francisco é este.