12 Outubro 2023
O ímpeto para novos entendimentos ou para a reforma de ideias mais antigas vem de uma variedade de fontes, incluindo a experiência vivida dos fiéis. Nos nossos dias, as vozes, as lutas e o testemunho cheio de graça das pessoas LGBTQ e das pessoas que as amam e apoiam são um recurso insubstituível nesse processo.
A reflexão é de Elizabeth A. Johnson, CSJ, professora emérita de Teologia na Universidade Fordham, ex-presidente da Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos e autora de vários livros, incluindo “She Who Is: The Mystery of God in Feminist Theological Discourse”.
O artigo é publicado por Outreach, 24-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com grande habilidade, os biblistas criaram um conjunto de ferramentas fortes e flexíveis para produzir interpretações esclarecidas, muitas vezes profundas, das Escrituras. Eles sabem que a Bíblia é inspirada, mas também sabem que ela não caiu do céu. Assim, eles elaboram seu significado situando os textos em seus ambientes humanos.
Qual é a situação de vida, o contexto histórico que produziu essa passagem? Que questão está sendo abordada? O que as palavras significam na língua original? Qual é o gênero literário (pois não se interpreta a poesia da mesma forma que a narrativa ou a lei)? O texto é único ou semelhante a outras passagens? Qual é sua relação com as principais correntes do ensino bíblico, que tratam de como viver em relação com um Deus cheio de graça e misericórdia, que o Novo Testamento identifica sucintamente em uma palavra: “amor” (1Jo 4,8)?
Especialmente ao estudar as Escrituras para discernir aonde o Espírito Santo está conduzindo a Igreja, os estudiosos que usam essas ferramentas lançaram uma luz útil sobre textos difíceis, como aqueles que foram usados para defender a escravidão, promover a subordinação das mulheres, espancar pessoas LGBTQ ou alimentar o antissemitismo.
Há uma grande frase na Dei Verbum, o documento do Concílio Vaticano II sobre a revelação, que sublinha o valor desse trabalho. “Cabe aos exegetas trabalhar, em harmonia com essas regras, para entender e expor mais profundamente o sentido da Escritura, para que, graças a esse estudo de algum modo preparatório, amadureça o juízo da Igreja” (n. 12).
Em outras palavras, a capacidade da igreja de compreender o Evangelho pode crescer, e uma boa interpretação bíblica pode ajudar para que isso aconteça. Nesse processo, a compaixão e o compromisso com a justiça, que dão vida aos mandamentos evangélicos do amor, também crescem na Igreja, tanto como instituição oficial quanto como comunidade cheia de graça de discípulos que seguem a Jesus Cristo.
Talvez isso passe despercebido, mas os teólogos hoje estão usando tipos semelhantes de ferramentas para interpretar o amplo conjunto de ensinamentos da Igreja. Tal como os escritos bíblicos, as doutrinas religiosas sobre crenças e ensinamentos morais sobre o comportamento humano surgiram por meio de processos históricos. Com raízes nas Escrituras, elas se desenvolveram ao longo do tempo em resposta a novas circunstâncias e a novas questões, à medida que a comunidade central original de fiéis no Cenáculo no Pentecostes se deslocava para o mundo mediterrânico mais amplo, para a Europa mais ampla, para a América do Norte e do Sul, para a África e para os mundos asiáticos, o mundo global mais amplo.
As formas de pensar e aquilo que se presume como verdade em uma dada cultura não se traduzem necessariamente com o mesmo tom de verdade em outros tempos e lugares. Além disso, à medida que o mundo muda, surgem novas questões com as quais as pessoas de épocas anteriores nem sequer poderiam ter sonhado. E sempre, por meio das experiências espirituais contínuas de pessoas que valorizam a fé, “progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas”, como observou sabiamente o mesmo documento do Vaticano II (n. 8).
Consequentemente, pode ocorrer aquilo que chamamos de desenvolvimento da doutrina. A verdade fundamental do Evangelho pode ser expressada com uma nova intuição. Alguns ensinamentos podem até ser reformados, como ocorreu com as profundas mudanças no ensino moral católico sobre a liberdade de consciência, o empréstimo de dinheiro para fins lucrativos e a escravidão.
Tal como acontece com a Bíblia, o mesmo acontece com a tradição: os ensinamentos da Igreja encontrados no Catecismo e nas declarações do Vaticano precisam de ser interpretados em vez de serem lidos de uma forma simplista e fundamentalista. A capacidade da Igreja de compreender o Evangelho pode crescer, e uma boa interpretação teológica pode ajudar a fazer isso acontecer.
Isso é certamente relevante para as pessoas LGBTQ que são católicas e para aquelas que as amam e as apoiam. Em suma, o ensino da Igreja a respeito delas afirma fortemente que todas as pessoas LGBTQ são criadas à imagem de Deus e, como tais, devem ser aceitas com “respeito, compaixão e sensibilidade” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2.358). Além disso, concede-lhes igual dignidade humana em relação às pessoas heterossexuais e exorta-as a serem tratadas com cuidado pastoral e compaixão.
Ao mesmo tempo, esse ensinamento distingue a orientação homossexual da atividade homossexual corporal, julgando esta última como “intrinsecamente desordenada” e contrária à lei natural. Sustenta que sob nenhuma circunstância as uniões homossexuais devem ser legalmente reconhecidas, muito menos abençoadas. As pessoas LGBTQ são instruídas a viver uma vida de autonegação por meio da abstinência sexual, unindo o sofrimento que elas experimentam ao sacrifício da cruz de Cristo.
Viver com integridade em uma Igreja com tal ensino requer ferramentas de interpretação para lidar com o que pode ou não ressoar na experiência pessoal de alguém diante dos outros e diante de Deus. Em um quadro mais amplo, essas ferramentas também são necessárias para discernir para onde o Espírito Santo está conduzindo a Igreja e para descobrir as prioridades e as intenções de Deus para o mundo. Que ferramentas podem estar disponíveis para nós?
Uma “caixa de ferramentas” [1] excepcionalmente útil para o discernimento foi montada pelo cardeal Avery Dulles, SJ, um importante teólogo estadunidense. Extremamente interessado em encorajar as pessoas em sua fé, mas preocupado com o fato de muitas pessoas na nossa cultura considerarem o ensino da Igreja arcaico ou sem sentido, ele desenvolveu seis princípios que podem ser usados para interpretar declarações oficiais da Igreja.
Usando estas ferramentas de forma crítica e cuidadosa, as pessoas podem distinguir o trigo bom da verdade revelada do joio das fórmulas condicionadas pelo tempo, e assim viverem vidas mais orientadas para Cristo. Para que fique claro, o cardeal Dulles não abordou o ensino sobre questões LGBTQ. Mas suas ferramentas podem ser aplicadas de forma útil por aquelas pessoas que o abordam. Aqui estão suas seis ferramentas interpretativas com os vários exemplos que ele usava para ilustrá-las.
1) Ao interpretar o ensino da Igreja, deve-se prestar atenção aos diferentes tipos de formas literárias.
Os biblistas não têm nenhuma dificuldade em reconhecer metáforas, mitos, oráculos proféticos e assim por diante. Consequentemente, eles não se sentem obrigados a interpretar literalmente muitas declarações que antes se pensava que se referiam a intervenções divinas milagrosas. A questão do gênero também deveria ser aplicada aos documentos oficiais da Igreja.
No passado, os papas e os concílios falavam frequentemente de formas comuns às altas autoridades de seu tempo, usando um estilo majestoso e triunfalista, e emitindo anátemas contra aqueles que discordavam. Mesmo agora, algumas autoridades tendem a falar com uma ênfase que trata os fiéis como destinatários passivos de seu ensinamento. Interprete essa retórica de acordo com sua forma adequada. “Se a hipérbole deve ser admitida na Bíblia, quem negará que ela também pode ser encontrada em pronunciamentos eclesiásticos?” escreve Dulles.
2) Uma cosmovisão antiquada, pressuposta mas não formalmente ensinada em um ensinamento anterior da Igreja, não deve ser imposta como doutrina vinculante.
A cosmologia mudou. As pessoas nos mundos bíblico e medieval assumiam um universo de três níveis. A terra e suas criaturas ficavam no centro, cercadas pelos céus com Deus e os anjos acima, e o submundo com Satanás e seus demônios embaixo. Forçar essa cosmovisão hoje é inútil. O ensino da verdade do Evangelho precisa ser enquadrado em uma compreensão científica contemporânea do mundo. Nesse processo, muitas ideias clássicas sobre criação, milagre e ressurreição, entre outras, serão transformadas.
3) Os termos técnicos devem ser interpretados em termos da estrutura de pensamento pressuposta por aqueles que os utilizaram.
A filosofia também mudou. Grande parte da doutrina cristã foi formulada em categorias da filosofia grega, tais como espírito e matéria, substância e acidente etc. Tal como ocorre com a cosmologia, esses termos precisam ser entendidos em seu quadro histórico e não tomados como descrições literais. Por exemplo, a transubstanciação só faz sentido como explicação do mistério eucarístico se pensarmos que as realidades físicas são feitas de substância e acidente.
Mas os diferentes sistemas filosóficos de hoje não pensam nas entidades físicas nesses termos. Isso exige que se fale da presença real de Cristo na Eucaristia de uma forma diferente.
4) Ao interpretar termos teológicos, preste atenção não apenas no que eles significam literalmente (denotam), mas também nas ideias e sentimentos que eles implicam ou despertam (conotam).
A verdade ensinada muitas vezes está envolta em imagens e conceitos que não são essenciais. Por exemplo, ao anunciar a Boa Nova da salvação, o Novo Testamento declara que fomos redimidos pelo Sangue de Cristo. A imagem do sangue sacrificial está carregada de conotações do Êxodo, do culto no Templo e da Lei mosaica.
Desde os tempos medievais, a morte sangrenta de Cristo tem sido vista como uma penalidade paga a Deus para satisfazê-lo pelo pecado. Hoje, essas concepções sangrentas da redenção, enraizadas na cultura patriarcal e feudal, são ininteligíveis e até repugnantes. A doutrina da Igreja precisa articular as grandes questões do pecado, da salvação e da vida redimida em Cristo com o vocabulário contemporâneo.
5) Nenhum ensinamento da Igreja do passado resolve diretamente uma questão que não foi levantada na época.
Em outras palavras: sempre que o estado das evidências sobre uma questão muda materialmente, temos uma nova questão que não pode ser respondida apelando a autoridades antigas. Por exemplo, o Concílio de Trento do século XVI, ao citar o apóstolo Paulo, ensinou que Adão era um indivíduo único e que suas ações eram a fonte do pecado original. A ciência moderna levanta o cenário provável de que a raça humana evoluiu a partir de mais de um casal original.
Usar Paulo e Trento hoje para insistir no monogenismo é “ilegítimo”, como disse Dulles, porque nenhum deles estava lidando com a questão da origem da raça humana. De fato, a questão nunca passou pela cabeça deles. Eles liam o Gênesis como história e presumiam que Adão era um indivíduo único.
6) Na Bíblia e em declarações doutrinais de autoridade, devemos estar alertas para sinais de patologia social e ideologia.
Sempre peregrina em seu caminho pela história, a Igreja deve sempre reformar-se para uma maior fidelidade ao Evangelho. Às vezes, ela falha e peca. Por exemplo, o ensinamento fanático contra os judeus que não aceitavam o cristianismo, as declarações defensivas contra os protestantes, a vigorosa rejeição papal da ideia moderna de liberdade: tudo se deve a forças sociopatológicas em ação.
Em um esforço para manter a autoridade, essas forças deram origem a ensinamentos marcados pela estreiteza (por exemplo, fora da Igreja não há salvação) e pela dureza em relação aos adversários. A verdade do Evangelho não é ensinada pela Igreja em forma divina, mas sim em forma humana. Os efeitos da fraqueza e da pecaminosidade humanas podem estar incorporados na própria linguagem do ensino da Igreja. Devemos ter o cuidado de traçar uma linha divisória entre o que é uma questão de fé e o que deve ser deixado de lado como julgamentos humanos equivocados.
Dulles defende que o uso desses princípios nos treinará em uma flexibilidade mental capaz de discernir a mensagem central do Evangelho. Não se trata de uma abordagem do tipo “vale tudo”. Por um lado, o tema do compromisso da fé é o mistério infinito do Deus todo-santo, revelado em Cristo, cujo Espírito vivifica a Igreja. Esse é um mistério de amor para além da imaginação.
Esse mistério nunca poderá ser totalmente capturado na rede de ensinamentos da Igreja, nem a vontade divina poderá ser conhecida em termos absolutos para todas as circunstâncias. Por outro lado, a mudança histórica pode levantar sérios desafios à fé. Embora partilhemos um compromisso comum entre gerações, a nossa situação hoje é diferente da dos nossos antepassados medievais, assim como o computador é diferente do ábaco. Dada a transcendência de Deus e o condicionamento histórico dos seres humanos, é essencial interpretar o ensinamento da Igreja com ferramentas de discernimento inteligentes. Nas palavras elegantes de Dulles, é uma prática de “fidelidade criativa”.
Durante 2.000 anos, a tradição cristã sustentou que a heterossexualidade é a norma para os seres humanos. O casamento é a vocação à qual a maioria das pessoas heterossexuais é chamada. A fidelidade aos votos matrimoniais é de primordial importância. À luz do mandamento que proíbe o adultério (Dt 20,14), a relação sexual com alguém que não seja o cônjuge é um pecado grave.
Por várias razões, incluindo a necessidade de sustentar os filhos que podem resultar da união sexual, o ensino da Igreja – e mesmo o sensus fidelium ou senso dos fiéis, pelo menos até recentemente – tem sustentado a imoralidade dos atos sexuais fora do casamento. Essa é uma tradição de peso, sustentada nas Escrituras e na teologia, digna de respeito e que não deve ser posta de lado levianamente.
Nesse contexto, uma nova questão surgiu no horizonte dos nossos dias, a saber, a posição das pessoas que não são heterossexuais. Tais pessoas sempre existiram, é claro, mas as mudanças culturais estão possibilitando que muitas “saiam do armário” para si mesmas e para os outros em relação à sua própria identidade profunda no corpo e no espírito. Que avaliação religiosa deve ser feita sobre as pessoas LGBTQ?
Por exemplo, elas também são criaturas amadas, feitas à imagem e semelhança de Deus? Que valores éticos devem reger seu comportamento pessoal, incluindo a atividade sexual íntima? Por exemplo, existem princípios dentro da própria tradição que poderiam permitir a atividade sexual dentro de um relacionamento monogâmico e permanente entre pessoas do mesmo sexo?
Essas são questões novas. Historicamente, a doutrina desenvolveu-se à medida que a Igreja cresceu na compreensão das realidades e das palavras que foram transmitidas nas Escrituras e na tradição. Frequentemente, essa compreensão crescente vem da experiência do Povo de Deus ou de algum conflito com as normas padrão. Estamos vivendo um momento assim. Para onde o Espírito Santo está guiando a Igreja? Como o núcleo da rica tradição pode ser preservado e ao mesmo tempo expandido para abordar essa nova realidade?
O que se segue é apenas um fio de uma enorme tapeçaria que precisa ser tecida. Vou aplicar um dos princípios do cardeal Dulles a um texto do Gênesis. Certamente, existem outros princípios de desenvolvimento doutrinal que podem ser aplicados. Há uma infinidade de outros textos bíblicos que precisam ser postos em jogo. Este é apenas um exemplo de como podemos começar a pensar sobre esse assunto, e não um programa global para o desenvolvimento do ensino sobre identidade de gênero ou moral sexual.
O quinto princípio de Dulles afirma que “nenhum ensinamento da Igreja do passado resolve diretamente uma questão que não foi levantada na época”. Correlativamente, “sempre que o estado das evidências sobre uma questão muda materialmente, temos uma nova questão que não pode ser respondida apelando a autoridades antigas”. Como isso pode funcionar ao lidar com o ensino da Igreja sobre as pessoas LGBTQ?
O julgamento de que a atividade genital homossexual é desordenada baseia-se, em boa parte, em uma referência à narrativa do Gênesis, na qual, no sexto dia, Deus criou os seres humanos “homem e mulher”, e deu-lhes o mandato de “ser fecundos e multiplicar-se” (Gn 1,27-28). A partir desse texto, o ensino da Igreja deduz um forte binarismo de gênero, em que as pessoas são ou homens, com características masculinas, ou mulheres, com características femininas, sendo os dois complementares.
O casamento põe os dois em relação a fim de serem fecundos, de modo que todo ato sexual deve estar aberto à concepção de um filho. Nesse quadro, a identidade e a atividade sexuais das pessoas LGBTQ fogem à norma.
Consideremos essa linha de pensamento.
De acordo com os estudos bíblicos, Gênesis 1 não é um registro histórico de um evento. Em termos de gênero literário, é um mito das origens. É uma narrativa religiosa construída em uma sequência de seis dias para ensinar que Deus criou tudo o que existe: dia e noite, céu e água, terra seca e plantas, sol e lua, peixes e pássaros, todos os tipos de animais que rastejam e andam sobre a terra e todas as pessoas. Após o ato inicial da criação, a fim de prover a continuidade, Deus abençoou todas as criaturas vivas com o dom da fertilidade. E Deus viu que tudo era bom. E depois descansou.
Durante séculos, o ensino da Igreja interpretou literalmente o cronograma dos seis dias dessa narrativa, mas não o faz mais. Nos nossos dias, o estado das evidências sobre a questão mudou materialmente. O conhecimento científico da idade do universo e da longa história da evolução da vida na Terra fez com que os seis dias voltassem à sua forma literária adequada.
Longe de insistir em uma compreensão literal da criação em seis dias, o ensino da Igreja desenvolveu uma leitura sofisticada que honra a intenção religiosa da história, ao mesmo tempo que respeita o conhecimento científico moderno. A questão é que Deus criou tudo, e não como.
Incorporada nessa narrativa das origens, a descrição dos seres humanos que são criados homem e mulher à imagem de Deus pretende incluir genericamente todos os seres humanos. Inscreve os humanos como uma categoria criatural na história da criação como parte de todo o cenário maravilhoso, com uma responsabilidade adicional de cuidar do restante.
Para ficar mais claro, Gênesis 1 não trata de questões de orientação sexual. Assim como os escritos de Paulo sobre o pecado de Adão não se destinavam a ensinar sobre a origem da raça humana em um único casal, assim também a descrição de Gênesis 1 dos seres humanos criados homem e mulher não se destinava a definir a vontade de Deus por um gênero binário. Pelo contrário, o texto pretende apresentar todas as pessoas como boas criaturas de Deus e membros responsáveis da comunidade da criação.
Usar Gênesis 1 hoje como uma fonte que ensina que a orientação heterossexual é a única maneira aprovada por Deus de ser humano não funciona, porque esse texto não trata da questão das pessoas LGBTQ. Ao irem ao encontro do texto com uma convicção prévia sobre um binarismo de gênero, as autoridades eclesiásticas leram-na no texto. Mas os estudos bíblicos hoje mostram que o texto não ensina isso.
Tal como ocorre com os seis dias, o mesmo ocorre com os dois gêneros. As palavras sobre o homem e a mulher e o mandato de serem fecundos estão inseridos na história mais ampla da criação e partilham seu gênero literário. Não devem ser interpretados literalmente. Abre-se uma pequena porta, uma entre muitas possíveis, em que o desenvolvimento da doutrina se torna pensável.
Ao procurar nas Escrituras uma forma de pensar as pessoas LGBTQ em uma estrutura diferente do Gênesis, poderíamos muito bem começar com um texto da criação do Livro da Sabedoria. Ele faz uma afirmação radical sobre o Deus que cria:
“Tu amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que criaste. Se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb 11,24; trad. Bíblia Pastoral).
Que raciocínio primoroso! Desde as vastas galáxias em espiral até aos mais pequenos nematódeos, uma onda de amor divino cria e sustenta todos os seres. Sem esse amor, não haveria absolutamente nada... nada.
É claro que isso inclui as pessoas LGBTQ. Elas são criaturas amadas, chamadas e agraciadas em seu corpo e sexualidade, em seu espírito, mente e coração, em seu poder e agência, em suas forças e limitações. Sua própria existência fora da norma da heterossexualidade testemunha a verdade de que Deus é a fonte criadora de todo o espectro da sexualidade e do gênero, pois, “se odiasses alguma coisa, não a terias criado”.
O grande mistério santo ao qual as pessoas chamam de Deus tem um coração por todas as criaturas. Quando o pecado e o sofrimento prejudicam a vida das pessoas LGBTQ, o mesmo Amor inefável que faz todos os seres que existem também se move com compaixão para curar, perdoar, redimir e libertar. Nas belas palavras de um salmista:
“Cura os corações despedaçados e cuida dos seus ferimentos. Ele conta o número das estrelas, e chama cada uma pelo nome” (Sl 147,3-4; trad. Bíblia Pastoral).
Assim como acontece com toda criatura amada, o amor fiel de Deus busca salvá-las e levá-las à realização em todos os momentos. A violência contra as pessoas LGBTQ está aumentando. As estatísticas mostram que as pessoas LGBTQ, especialmente os adolescentes, enfrentam problemas de saúde mental e tendência ao suicídio em taxas muito mais altas do que a população heterossexual em geral. Tanto mais é o cuidado vivificante de Deus com aquelas pessoas que lutam dessa forma, desejando seu pleno florescimento.
Tal misericórdia não é um tema secundário ou menor nas Escrituras, mas sua maior revelação. Jesus, que é Emanuel, “Deus conosco”, encarnou esse amor em seu ministério, especialmente em suas interações com as pessoas marginalizadas, como muitos estudos bíblicos sobre as pessoas LGBTQ enfatizam com razão.
Esse é apenas um caminho ao longo do qual o nosso pensamento poderia prosseguir em fidelidade criativa às Escrituras e à tradição.
Por mais de 2.000 anos, o ensino da Igreja tem sido uma tradição viva que se desenvolve. “A Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus”, diz a Dei Verbum (n. 8). A Igreja está sempre a caminho, encarnando mais plenamente o sentido do Evangelho em contextos culturais que emergem ao longo do tempo.
O ímpeto para novos entendimentos ou para a reforma de ideias mais antigas vem de uma variedade de fontes, incluindo a experiência vivida dos fiéis, crises e conflitos que exigem novas respostas do Evangelho, oração, meditação sobre as Escrituras, novas análises teológicas, as intuições da aprendizagem secular, a evolução das instituições humanas e os exemplos e instruções dados por pessoas de boa vontade. Nos nossos dias, as vozes, as lutas e o testemunho cheio de graça das pessoas LGBTQ e das pessoas que as amam e apoiam são um recurso insubstituível nesse processo. “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7,16).
1. Cf. Avery Dulles, “The Hermeneutics of Dogmatic Statements,” in his The Survival of Dogma: Faith, Authority, and Dogma in a Changing World (Garden City: Doubleday, 1973), pp. 176-191. Esses princípios foram discutidos com mais profundidade em Elizabeth Johnson, “Fluency of Interpretation: A Key to Avery Dulles’ Practice of Theology,” in The Survival of Dulles: Reflections on a Second Century of Influence, Michael Canaris, ed. (Nova York: Fordham University Press, 2021), pp. 41-50.
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Uma questão de interpretação: da Bíblia e também do ensino da Igreja sobre a homossexualidade. Artigo de Elizabeth Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU