04 Outubro 2023
Deixe-me dizer desde o início que, para mim, o liberalismo é o melhor que existe para a ordem política. Uma política que não seja liberal é uma perda para o florescimento humano. O manifesto “pós-liberal” de Patrick Deneen apenas reforça a minha conclusão.
O comentário é de Stephen Schneck, professor aposentado de Filosofia Política da Universidade Católica dos Estados Unidos. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 29-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os Estados Unidos se estabeleceram sobre o liberalismo – o que significa que o governo do país é legitimado e limitado pela soberania de seus cidadãos (uma república democrática) e a ordem política do país está estruturada a fim de garantir a liberdade por meio do reconhecimento de direitos inalienáveis.
Em sua época, os estalinistas desprezavam o liberalismo, argumentando que sua alardeada liberdade e direitos eram mera cortina de fumaça para enganar o proletariado sobre sua subserviência à burguesia. Mais tarde, os chamados pós-modernistas franceses argumentaram que a liberdade e os direitos do liberalismo eram, na verdade, instrumentos camuflados de repressão.
Em seu novo livro, “Regime Change: Toward a Postliberal Future” [Mudança de regime: rumo a um futuro pós-liberal], Deneen, professor de Teoria Política na Universidade de Notre Dame, combina um pouco dessas duas críticas para insistir que o liberalismo deixa a classe trabalhadora se debatendo no caos, enquanto camufla a mesma marginalização de classe por uma “elite empresarial”.
É necessária, insiste ele, uma mudança revolucionária de regime para substituir o liberalismo pelo “aristopopulismo”.
“Regime Change” começa com uma breve retomada do best-seller de Deneen de 2018, “Why Liberalism Failed” [Por que o liberalismo fracassou], que destacou as forças por trás da eleição do presidente Donald Trump. Afirmando que vivemos tempos distópicos graças à destruição gerada pela nossa ordem política liberal, a análise é que o liberalismo é essencialmente um motor para o progresso. Há gerações, esse progresso parecia algo bom – a superação da escravatura e assim por diante –, mas, no nosso tempo, a mudança progressiva e incessante do liberalismo está corroendo os alicerces da ordem social da civilização.
À medida que “Regime Change” avança, aprendemos que essas fundações em corrosão são as estruturas “tradicionais” da sociedade, como a família, a religião, a moral e a comunidade local. A classe alta de hoje, a elite empresarial, está ostensivamente isolada dos efeitos nocivos dessa erosão, graças a várias formas de privilégio e à educação em técnicas para navegar as mudanças disruptivas. Mas a classe trabalhadora não.
DENEEN, Patrick J. Regime Change: Toward a Postliberal Future. Ed. Sentinel, 288 páginas. (Foto: Divulgação)
Quando Deneen fala da classe trabalhadora, a imagem transmitida é a de operários brancos deslocados economicamente pelo ataque da globalização às indústrias fumacentas do interior do país. No entanto, embora os deslocamentos econômicos da globalização também sejam supostamente resultado do liberalismo, o foco do livro é a disrupção das estruturas sociais da classe trabalhadora pelo liberalismo.
Para a classe trabalhadora, dizem-nos que já não se pode esperar mais pelo casamento e pela família tradicionais, que a Igreja é cada vez menos parte da vida da classe trabalhadora e que os costumes e normas morais consagrados pelo tempo já não têm autoridade convincente. Sindicatos, clubes e organizações civis estão menos disponíveis para a solidariedade comunitária. Pequenas cidades e antigos bairros operários decaem e murcham.
O resultado é uma psicologia da alienação, da solidão, da falta de confiança, da vulnerabilidade e, no fim, do medo, do desespero e do ressentimento. Não é de se admirar, observa Deneen, que as taxas de divórcio, alcoolismo, drogas, pornografia, suicídio e outras evidências de decadência social estejam agora tão elevadas entre a classe trabalhadora.
Assim, a culpa supostamente é do liberalismo e de seu suposto motor de progresso, mas a elite empresarial também é retratada como cúmplice consciente.
A elite emprega truques meritocráticos, tais como as regras de admissão em Harvard, Princeton e Yale, para proteger os membros de sua própria classe e para reforçar a marginalização da classe trabalhadora. A meritocracia também milita contra a tradição e a história, contribuindo assim para a erosão das estruturas sociais tradicionais da sociedade pelo liberalismo.
Além disso, mediante o chapéu seletor do mérito, a elite empresarial pode se separar geográfica e psicologicamente da distopia do liberalismo para viver em subúrbios fechados, comunidades em resort e condomínios em centros urbanos de luxo.
O mais deplorável, segundo Deneen, é que a elite empresarial de hoje justifica presunçosamente seu próprio privilégio com um falso igualitarismo, promovendo ações afirmativas para as minorias raciais, as identidades sexuais e os imigrantes – ao mesmo tempo que repreende a classe trabalhadora por suposto racismo, misoginia, homofobia e atitudes anti-imigrantes.
O ressentimento visceral da classe trabalhadora e seu medo de ser substituída pela tecnologia, pela imigração ou pela economia globalizada são vistos como o combustível para alimentar a mudança de regime. É preciso apenas uma vanguarda de alguns líderes para despertar a classe trabalhadora não somente para a consciência das causas de sua condição, mas também para reconhecer seu próprio poder.
Deneen fala dessa vanguarda como elites que são traidoras de sua própria classe – intelectuais, espera-se, em vez de demagogos.
O objetivo final seria substituir a elite atual e substituir o liberalismo pelo aristopopulismo. Como isso começaria?
O livro remete o leitor aos “Discursos sobre Tito Lívio”, de Maquiavel, que fala de métodos “extralegais e quase bestiais” e “turbas correndo pelas ruas, comércios fechados, toda a população abandonando a cidade”. Embora isso possa ecoar o dia 6 de janeiro de 2021, certamente Deneen não está propondo violência ou atos extralegais; certamente sua preferência pela mudança de regime significaria vencer a batalha da democracia nas urnas. Independentemente disso, como continua o livro:
“O que é necessário é a aplicação de meios maquiavélicos para alcançar os fins aristotélicos – o uso de uma poderosa resistência política por parte da população contra as vantagens naturais da elite para criar uma constituição mista (...) na qual o bem comum genuíno seja o resultado” (grifo no original).
Ao passar da análise social e política para a concretização do aristopopulismo de Deneen, o argumento do livro oscila.
Aprendemos que o aristopopulismo seria um regime misto aos moldes de Aristóteles, que pensava que misturar aristocracia e democracia era o melhor governo praticável. “Regime Change” imagina uma mistura fantasiosa do populismo da classe trabalhadora com uma nova nobreza de educação clássica e conservadora, inculcada com a virtude cívica necessária para assegurar uma política do bem comum.
O bem comum aqui é descrito como especialmente atento à voz, ao status, ao prestígio e ao poder da classe trabalhadora, de modo que resulte em uma “aliança profunda e simpática” entre a elite e a classe trabalhadora. De forma crítica, o bem comum deve afirmar as estruturas tradicionais de vida social da civilização ocidental.
Para conseguir a mistura de classes, os exemplos do livro enfatizam a subsidiariedade e a solidariedade. Deneen recomenda distritos muito menores para representação (como defendiam os antigos antifederalistas dos Estados Unidos), a alternância da capital do país (como Jean-Jacques Rousseau recomendava), o serviço nacional para a juventude (como o presidente Bill Clinton discutiu uma vez), o desmembramento dos monopólios tecnológicos e das mídias sociais (algo muito progressista), e até mesmo a revisão dos processos de admissão universitária para substituir os esforços de ação afirmativa racial e sexual por algo mais amigável à classe trabalhadora.
As políticas externas, industriais, econômicas e sociais nacionais também dariam prioridade à classe trabalhadora e promoveriam os costumes tradicionais.
Qualquer que seja seu valor, esses exemplos de formas de misturar as classes provavelmente poderiam ser acomodados dentro do liberalismo. O último capítulo do livro, “Rumo à integração”, contudo, detalha uma ruptura clara e preocupante com as teorias liberais de governo. Nesse capítulo, Deneen fala da necessidade de superar a “desintegração” do liberalismo com a “integração pós-liberal”.
Os leitores do National Catholic Reporter estão familiarizados com o tom desse argumento, tal como foi apresentado por integralistas católicos como Adrian Vermeule e o Pe. Edmund Waldstein.
Como ilustra o famoso direito inalienável e aberto de Thomas Jefferson, “a busca da felicidade”, o liberalismo não decide pelos cidadãos o que é o bem. O liberalismo proporciona o espaço – a liberdade – para os cidadãos buscarem “o bem” por e para si próprios. Os integralistas católicos rejeitam que haja esse espaço aberto; eles querem preenchê-lo com ensinamentos católicos. O integralismo é uma rejeição da separação entre Igreja e Estado do liberalismo.
Deneen está na mesma sintonia de onda com sua ideia de integração pós-liberal, mas estende a integração para muito além da religião para defender a integração da ordem política com aparentemente todos os aspectos da vida – na sociedade civil, nos negócios, nos meios de comunicação, na vida familiar, na moral e assim por diante.
É nesse momento que “Regime Change” se torna mais preocupante. Ele fala em “evitar o valor central da separação por parte do liberalismo”. Sejamos claros; as “separações” do liberalismo são em grande parte o que comumente chamamos de “direitos”. Deneen propõe que evitemos direitos.
Os direitos do liberalismo de propriedade, expressão, imprensa, reunião, religião e assim por diante separam e protegem o que é nosso da intrusão do poder do Estado ou do poder de outros na sociedade. Se essa separação for substituída pela integração, o que aconteceria?
Bem, consideremos o direito à liberdade religiosa como exemplo.
O fenômeno político populista que os estadunidenses associam a Trump é, na verdade, muito maior do que Trump. É um movimento global e, tal como ocorreu nos Estados Unidos, em muitos países o novo populismo promoveu o “nacionalismo religioso” – apenas outro nome para o integralismo. Alguns exemplos seriam o nacionalismo hindu na Índia, o islamismo sunita na Turquia, o budismo em Mianmar, o cristianismo na Hungria. Em cada um destes países, a integração da religião com o Estado teve um custo para os fiéis das religiões minoritárias.
Sem a separação entre Igreja e Estado proporcionada pelos direitos do liberalismo, as fés daqueles que não estão aliados ao poder do Estado ficam comprometidas. A integração trucida a diversidade. E se isso vale para os direitos religiosos, o mesmo ocorreria com todos os outros direitos.
Embora Deneen possa ver a integração como um processo unidirecional, trazendo “o que há de bom”, como os ensinamentos católicos, para dar forma às políticas estatais, ela seria inevitavelmente um processo bidirecional.
Pensemos no inverso: gostaríamos que a ordem política fosse integrada à nossa fé? Queremos que a ordem política seja integrada aos nossos meios de comunicação, à nossa vida social, às nossas relações familiares? Deneen realmente precisa esclarecer os limites da integração potencial da ordem política na vida humana pelo aristopopulismo.
Permitam-me também contestar um pressuposto central de “Regime Change” – que o liberalismo gera uma dinâmica imparável de mudança progressiva e caótica. Acredito que Deneen confunde o liberalismo com a mudança de valores do livre mercado da economia e com as forças semelhantes às do mercado da sociedade aberta.
As mudanças desorientadoras na vida moderna não são resultados necessários da ordem política liberal. São o resultado de um capitalismo global insuficientemente regulado e do amplo impacto do livre mercado na sociedade e na cultura.
O liberalismo, corretamente entendido, baseia-se em direitos formais e universais. É claro que tais direitos formais dependem de uma ordem na sociedade civil (solidariedade e subsidiariedade) e de virtude cívica nos cidadãos para serem eficazes. É preciso uma aldeia, como disse alguém uma vez. E, como imagino que Deneen concordaria, a sociedade civil e a virtude cívica não estão tão saudáveis em nível global quanto deveriam estar.
É preciso, então, fortalecer as instituições da sociedade civil, que podem ser instituições tradicionais ou novas, e inculcar melhor a virtude cívica. Por diversas razões relacionadas com a minha suspeita em relação ao integralismo, não creio que esse fortalecimento seja uma tarefa do Estado. Mas não precisamos de uma mudança de regime, de uma revolução ou de uma transformação radical. Certamente não deveríamos abandonar o liberalismo e adotar o aristopopulismo.
“Regime Change” é um livro provocativo e oferece uma visão sobre como os conservadores políticos lutam para acomodar ou canalizar o populismo reacionário. No fim das contas, o livro falha nessa tarefa.
O foco de todas as pessoas que se preocupam com os atuais problemas políticos da nossa civilização deveria ser a reforma e a melhoria da sociedade civil e a formação de cidadãos com virtudes cívicas revigoradas. Diante isso, o liberalismo é a melhor ordem política para o florescimento humano.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Rumo a um futuro pós-liberal: é preciso mudar de regime? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU