06 Setembro 2023
Das 120 terras indígenas que aguardam reconhecimento do governo, 77 são alvo de 736 pedidos de mineração registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM), aponta relatório da organização Ekō.
A reportagem é de Cristiano Navarro, publicada por InfoAmazônia, 04-09-2023.
O julgamento da tese do Marco Temporal, retomado na última quarta-feira, 30, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), definirá o rumo sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil. A decisão do Supremo já terá validade imediata sobre 217 processos judiciais que tramitam nos tribunais e que, no caso de aprovação da tese, poderá ainda viabilizar projetos de mineração em pelo 77 territórios não homologados, segundo mostram os dados de um relatório publicado pela organização Ekō.
De acordo com os dados fornecidos pelo Ekōe existem 581 requerimentos de mineração ativos na Agência Nacional de Mineração (ANM) com áreas sobrepostas ou contínuas nessas 77 terras indígenas ainda não homologadas. Os pedidos para explorar as áreas reivindicadas pelos indígenas incluem gigantes da mineração mundial, como Vale, Bunge e a Anglo American.
Uma aprovação da tese do Marco Temporal no STF — até o momento são 4 votos contrários à tese contra 2 favoráveis — deve destravar esses projetos e afetar o processo de demarcação desses territórios. O relatório inclui levantamento de todas as terras indígenas reivindicadas no país e mostra a preferência das mineradoras por áreas na região da Amazônia, onde estão concentrados 345 desses pedidos de mineração.
Vanessa Lemos, coordenadora de campanhas na Ekō, observa no poder político e econômico das mineradoras como ameaças aos povos indígenas no debate sobre o Marco Temporal. “O papel das mineradoras no debate do marco temporal é de total antagonismo ao direito dos povos originários e faz parte da ameaça sistemática representada pela tríade da tese do Marco Temporal no STF, o PL 490 e o PL 191 que estão sendo discutidos agora no Congresso. Essas empresas possuem capital político e financeiro para fazerem os seus interesses prevalecerem.”
As terras indígenas mais afetadas por esses projetos são as TIs Sawré Ba’pim e Sawré Muybu, no Pará, onde está o povo Munduruku. Apenas na TI Sawré Ba’pim foram identificados 81 requerimentos minerários ativos, sendo 56 mil hectares requeridos pela mineradora inglesa Anglo, que lidera o ranking de requisições para minerar em terras indígenas na Amazônia, com 39 processos ativos. Os dados levantados pela Ekō incluem processos registrados na ANM até o dia 9 de julho de 2023. Esses territórios também estão entre os mais impactados pelo garimpo ilegal na Amazônia.
Diante da demora no processo de homologação da TI, em 2016 os Munduruku partiram para a autodemarcação do território e para defender a TI por invasores. O processo para homologação do território Sawré Muybu chegou a ser encaminhado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas está parado na Casa Civil, segundo apurou a reportagem.
Em entrevista aos pesquisadores em abril deste ano, a liderança indígena Maria Leusa Munduruku afirmou que esteve com uma comitiva de seu povo na Funai, e que de fato estaria tudo pronto para a homologação do território. “O que ouvimos da presidente da Funai é que foi para a Casa Civil e que só depende deles e não entendemos o porquê dessa demora”, disse à nossa reportagem.
Em diversos territórios, além dos pedidos, também foram identificadas alterações efetivas para pesquisa e exploração mineral. Segundo o levantamento, há atualmente pelo menos 220 autorizações de pesquisas emitidas pela ANM em terras indígenas não homologadas, e outras 35 autorizações para exploração de minérios.
O principal argumento da ANM nesses casos de exploração e pesquisa mineral em terras indígenas é de que por não estarem homologados, estes territórios não estariam impedidos legalmente de serem alvos dos pedidos das mineradoras. Em terras homologadas, a Agência está impedida de autorizar mineração.
Na TI Sawré Muybu, por exemplo, foram autorizadas pesquisas para exploração de ouro à mineradoras ligadas ao empresário Luís Maurício Ferraiuoli de Azevedo, presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM) e diretor de seis mineradoras canadenses, britânicas e brasileiras. Em 2019, a revista Global Mining Observer incluiu Ferraiuoli de Azevedo entre os três maiores CEOs do mundo da mineração.
Nesse mesmo território, em 2020, o projeto Amazônia Minada revelou que autorizações de pesquisa foram concedidas para a mineradora Anglo. Em resposta, os Munduruku realizaram uma série de protestos contra a mineradora e seus investidores, como o trilionário fundo Black Rock, maior gestora de ativos financeiros do mundo.
Já a mineradora Vale, que há três anos tem anunciado que abandonará seus projetos de mineração em terras indígenas, mantém pelo menos quatro projetos ativos em territórios não homologados nos estados do Pará, Rondônia e Bahia. Além disso, a companhia mantém uma série de requerimentos ativos com interferência em outros territórios já homologados.
Um dos pedidos da Vale interfere diretamente na TI Tanaru, em Rondônia, e onde até agosto do ano passado vivia o chamado “índio do buraco”, apelidado assim pelos vestígios deixados nos locais por onde passou por décadas sendo o único ocupante do território.
O “índio do buraco” foi o último remanescente isolado que viveu por décadas sozinho no território, sobrevivente de seu povo que foi dizimado por uma série de violências durante o processo de colonização do estado na segunda metade do século XX.
Outro destaque do relatório são os projetos da Potássio do Brasil, controlada pelo fundo canadense Forbes e Manhattan, para exploração de potássio na bacia do Rio Madeira.
Desde de 2008 a mineradora canadense tenta viabilizar um projeto com interferência direta em territórios ocupados pelo povo Mura. Em junho deste ano, após a InfoAmazonia apontar contradições nos relatórios enviados pela empresa aos seus investidores, a mineradora foi alvo de uma reclamação na Comissão de Valores dos Estados Unidos (em inglês, Securities and Exchange Commission, SEC) por omitir informações sobre os impactos de seu projeto sobre territórios indígenas. A denúncia é assinada pelos professores da clínica de Direitos Humanos e Prevenção de Atrocidades da faculdade de direito de Nova Iorque, Cardozo Law Institute, e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
A Bemisa Holding, controlada pelo grupo Opportunity, do bilionário banqueiro Daniel Dantas, possui seis pedidos ativos para minerar ouro e cobre na Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso, onde há registros confirmados de indígenas isolados. O território não é homologado e tem sido alvo de mineradoras e pecuaristas.
A TI Piripkura é uma das mais sensíveis e emblemáticas na luta por resistência dos povos originários da Amazônia. Com apenas duas pessoas identificadas, a Piripkura não está homologada e é protegida por portarias de restrição de uso vem sendo renovadas a cada dois anos, desde 2008, apesar dos registros da presença dos isolados desde 1989.
Em 2008, dois meses antes de sair a primeira portaria de proteção do território, a ANM concedeu permissões de pesquisa nos seis processos minerários da Bemisa. Esses processos estiveram vigentes até 2012.
O sistema da ANM mostra que a Bemisa pediu desistência dos requerimentos na área dos piripkuras, mas como os pedidos seguem ativos no sistema, podem voltar a tramitar a qualquer momento na agência, caso seja de interesse da mineradora.
Outra TI não homologada que conta com estudos da Funai indicando a existência de povos isolados é a Ituna-Itatá, no Pará. O território é alvo de cinco requerimentos de mineração, com destaque para pedidos lavra garimpeira de ouro e estanho.
O marco temporal é uma tese jurídica que ganhou força nos últimos anos principalmente entre setores com interesses em áreas dentro de terras indígenas para projetos de mineração, agropecuária ou grandes obras de infraestrutura. Essa tese sustenta que só poderão ser consideradas terras indígenas aquelas ocupadas por membros de seus povos originários no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.
Pelo menos 217 casos em disputa nos tribunais brasileiros aguardam julgamento definitivo no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, no julgamento sobre a TI Ibirama-Laklãnõ, homologada em 2003. Uma parte do território é disputada por agricultores que argumentam que a terra não estava ocupada em 5 de outubro de 1988. Os Xokleng, por sua vez, argumentam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá. O julgamento desse caso terá repercussão geral para todos os demais processos com base no marco temporal que tramitam na justiça brasileira.
O julgamento no STF começou em 2021, mas foi interrompido diversas vezes a pedido dos próprios ministros. Com a retomada do julgamento na semana passada, atualmente são 4 votos contra a tese e dois favoráveis.
Dos 11 ministros do STF, até o momento, votaram contra o Marco Temporal o relator do caso, Luiz Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso. André Mendonça e Nunes Marques foram os únicos votos favoráveis à tese. O julgamento será retomado em 20 de setembro.
O dispositivo que estabelece a data da Constituição de 1988 como marco temporal para demarcação de terras indígenas também está contemplado no projeto de lei 490/2007, que foi aprovado em maio deste ano pela Câmara dos Deputados.
No dia 23 de agosto, o PL foi aprovado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, apesar dos esforços de Marina Silva e Sonia Guajajara em pedir mais audiências públicas. “O projeto agora está na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária da Casa e a relatora do projeto é Soraya Tronicke (Podemos) que é uma grande defensora do agronegócio. Então, as mineradoras e os seus lucros estão sendo muito bem representados e bem defendidos dentro do Congresso, pelo agronegócio e este é o nosso grande desafio”, avalia Vanessa.
A Vale informou que desistiu dos pedidos de mineração em terras indígenas no Brasil e que este posicionamento também inclui territórios ainda não homologados. “A empresa reforça que os processos mencionados não pertencem mais à empresa. Os dados ainda devem constar na base consultada devido à desatualização da plataforma da ANM”, informou a mineradora.
“A renúncia e a desistência da Vale se baseiam no entendimento de que a mineração em Terras Indígenas só pode ser realizada com o Consentimento Livre, Prévio e Informado dos próprios indígenas e com base em legislação que regule adequadamente a atividade”. A mineradora ainda diz que o requerimento na TI Tunaru foi indeferido e a área disponibilizada pela própria ANM para novos interessados. No entanto, o pedido da Vale segue ativo na base da Agência aguardando encaminhamentos.
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Tese do marco temporal vai beneficiar gigantes da mineração com projetos em terras não homologadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU