Para ativista e advogado, “defender demarcação de terra indígena é um sentimento de fortalecimento democrático e cidadão”
Deveria ter ocorrido há uma semana, no Supremo Tribunal Federal - STF, o julgamento de ação que busca assegurar a presença do povo Xokleng na Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, no estado de Santa Catarina. A decisão foi adiada depois que o presidente da Corte, ministro Luiz Fux, retirou o processo de pauta. Mesmo ainda sem nova data para julgamento, indígenas destacam que é preciso manter a mobilização. “A importância e relevância do caso se dá porque a decisão da Suprema Corte irá impactar o futuro de centenas de povos indígenas, já que a aplicação do marco temporal pode dificultar ainda mais as demarcações, indispensáveis à sobrevivência desses povos, à pacificação de conflitos territoriais históricos, além de coibir a violência resultante de invasões e atividades ilícitas”, explica Eloy Terena, indígena e advogado que atua na causa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Eloy detalha não só o processo e seus desdobramentos, mas também a importância da preservação de terras aos povos originários. “Defender demarcação de terra indígena é um sentimento de fortalecimento democrático e cidadão”, dispara. E por isso passa, principalmente, derrubar a tese do marco temporal. “O marco temporal é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar”, analisa. E completa: “a tese do marco temporal restringe os direitos indígenas e é defendida pelos ruralistas, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional Brasileiro”.
Para ele, ainda é importante lembrar que num ano tão difícil para todo mundo, em função da pandemia, os povos indígenas estão entre os mais atingidos e os que mais sofrem. Afinal, lutar pela terra é também assegurar a saúde das comunidades. Eloy, como muitos, espera que a pandemia sirva como ponto de inflexão, pois há muito os indígenas vêm alertando para o clamor das demais formas de vida do planeta. “Temos a oportunidade, enquanto humanidade, de repensar a nossa forma de existência, respeitando a diferença e o modo de vida dos povos que habitam o país. É preciso retomar o respeito à pluralidade étnica, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito”, resume.
Eloy Terena (Foto: Arquivo pessoal)
Luiz Henrique Eloy Amado é indígena Terena da aldeia Ipegue, em Mato Grosso do Sul, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib. Possui doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, tendo realizado pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, de Paris, na França.
IHU On-Line – No dia 28 de outubro, o Supremo Tribunal Federal - STF deveria ter julgado questões relacionadas ao Marco Temporal, mas o julgamento foi adiado. Ainda assim, gostaria que o senhor nos detalhasse em que consiste essa ação.
Eloy Terena – Tramita no STF um pedido de reintegração de posse (Recurso Extraordinário 1.017.365) movido pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina - Farma contra a Fundação Nacional do Índio - Funai e indígenas do povo Xokleng, envolvendo a Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, área reivindicada e já identificada como parte de seu território tradicional, também habitado por populações Guarani e Kaingang.
O Recurso teve a repercussão geral reconhecida pelo plenário do STF em 2019. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese para todos os casos envolvendo demarcações de terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.
Veja a área declarada como terra indígena Ibirama Laklano | Imagem: researchgate.net/figure/Mapa-da-terra-indigena-Ibirama-Laklano_fig1_32043755
IHU On-Line – Por que o caso do povo Xokleng é emblemático para compreender as disputas por terras no atual contexto?
Eloy Terena – O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, interposto pela Funai, em que se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina - Fatma, no ano de 2009. Na petição, a Fatma pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani.
Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual, o processo chegou ao Supremo por via do recurso extraordinário. O recurso foi distribuído ao ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib, Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - Coiab, Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.
A importância e relevância do caso se dá porque a decisão da Suprema Corte irá impactar o futuro de centenas de povos indígenas, já que a aplicação do marco temporal pode dificultar ainda mais as demarcações, indispensáveis à sobrevivência desses povos, à pacificação de conflitos territoriais históricos, além de coibir a violência resultante de invasões e atividades ilícitas, como grilagem de terras, garimpo e extração madeireira.
IHU On-Line – Que outros casos tramitam no Supremo e qual seu impacto sobre os indígenas?
Eloy Terena – Há inúmeros casos aguardando um posicionamento do Supremo sobre o tema. Chamo atenção para o processo da Terra Indígena Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul. Em 2014, a Segunda Turma analisou o RMS 29.087, e, por votação majoritária, deu provimento declarando a nulidade do processo administrativo de demarcação de TI Guyraroka, bem como da portaria n.º 3.219, de 7.10.2009, do Ministro de Estado da Justiça, com base na tese do marco temporal.
O ponto em vermelho sinaliza Terra Indígena Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul | Mapa: Instituto Sócio-Ambiental - ISA
A comunidade ingressou com Ação Rescisória (AR) 2686, visando reverter a decisão, tendo em vista a nulidade do processo que tramitou sem a participação dos maiores interessados na lide, bem como a inconstitucionalidade do marco temporal. A comunidade aguarda a decisão de admissibilidade da ação que já foi incluída na pauta de julgamento e retirada posteriormente.
Tem-se ainda, o processo da Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, de Mato Grosso do Sul. Em dezembro de 2014, a Segunda Turma analisou o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n.º 803.462, e, aplicando o marco temporal, anulou a demarcação desta Terra Indígena, que havia sido demarcada e homologada em 2003. Após isto, a Comunidade Indígena Terena ingressou no feito, solicitando reanálise do caso e aguarda julgamento.
O mapa sinaliza a região de Aquidauana, onde se localiza a Terra Indígena Limão Verde | Mapa: ISA
IHU On-Line – Como compreender o Marco Temporal?
Eloy Terena – Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal - MPF, o marco temporal é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar. A tese do marco temporal restringe os direitos indígenas e é defendida pelos ruralistas, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional Brasileiro.
Para eles, os povos indígenas só têm direito às terras que estavam ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. O marco temporal não pode ser considerado a melhor forma de assegurar terra aos povos indígenas pois, além de limitar o direito das comunidades indígenas, essa tese visa anistiar os crimes cometidos contra os indígenas, especialmente aqueles perpetrados durante o período da ditadura militar. Neste período, muitas terras indígenas, consideradas originalmente como terras públicas, foram invadidas e griladas.
A tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do Poder Judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, esta interpretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do capital. Cito por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da Funai no Estado”, em que discorreu:
“[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente […] à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas […] como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta as atuais investidas contra o direito da terra a povos indígenas? Que relação é possível estabelecer com a política do atual governo?
Eloy Terena – Os povos indígenas vivenciam um contexto político muito adverso na gestão do governo Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário aos povos indígenas. No momento em que o Supremo Tribunal Federal havia pautado o julgamento do R.E. 1.017.365, os povos indígenas acreditavam que o Plenário do STF, guardião da Constituição, afirmaria os direitos originários garantidos pela Constituição Cidadã. Infelizmente, com a retirada de pauta, tememos sobre qual será o posicionamento do novo ministro da Suprema Corte, o qual foi indicado por um presidente da República que viola os direitos indígenas sem pudor.
Esperamos que o novo ministro cumpra com a sua função institucional de defender a Constituição Federal e os direitos ali determinados. [O novo ministro, cuja indicação já foi aprovada pelo Senado, é Kassio Nunes. O julgamento deve ocorrer somente depois de sua posse. Saiba mais aqui].
IHU On-Line – Em artigo publicado recentemente, o senhor diz que, desde que tomou posse, Jair Bolsonaro “assinou diversos atos que contrariam a Constituição e Tratados Internacionais que protegem as comunidades indígenas e seus territórios”. Poderia nos exemplificar alguns desses atos e suas consequências? E qual a possibilidade de se retroceder nessas ações?
Eloy Terena – O contexto atual da política indigenista no Brasil é extremamente desfavorável aos povos indígenas. Pela primeira vez, no período pós redemocratização temos um presidente eleito declaradamente anti-indígena. Jair Bolsonaro foi eleito com a promessa de “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena e quilombola”. Ao tomar posse, no dia 1º de janeiro de 2019, assinou a Medida Provisória n. 870, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.
Dentre as principais alterações, transferiu a atribuição de identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, pasta ministerial chefiada pela fazendeira Teresa Cristina, cuja família tem um histórico conflito de terra com os Terena no Mato Grosso do Sul. A mesma medida provisória transferiu a Fundação Nacional do Índio - Funai, do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta esta chefiada pela pastora Damares Alves.
Neste caso, ficou flagrante o desvio de finalidade ao transferir para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a atribuição para decidir o que será ou não terra de ocupação tradicional. Não é preciso muito esforço intelectual para concluir que tal transferência visou nitidamente acatar reivindicação da classe ruralista, mas, sobretudo, colocar os interesses privados acima dos interesses coletivos de toda a sociedade brasileira, visto que Terra Indígena é bem da União (Art. 20, inciso XI, da CF/88). A situação é corroborada, tendo em vista que é público e notório que a ministra Teresa Cristina é notadamente contra a demarcação de terras indígenas, sendo assídua militante e representante do agronegócio. Logo, os processos demarcatórios estariam comprometidos, além de flagrante violação aos princípios da impessoalidade e finalidade, fundamentos da administração púbica, consagrado no art. 37, da CF/88.
Pois bem, desde quando assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro vem implementando uma política indigenista extremamente nociva aos povos indígenas, nomeando para ocupar cargos na Funai pessoas publicamente contrárias aos direitos e interesses dos povos indígenas. Uma preocupação importante diz respeito à proteção aos povos em isolamento voluntário, tendo em vista a nomeação de um missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil - MNTB, para a Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados - CGIIRC, departamento da Funai responsável pelas políticas para os povos isolados e de recente contato.
Sua nomeação foi indicada pela bancada evangélica, que apoia o governo de Jair Bolsonaro, com o claro interesse de que sejam alteradas as diretrizes de não contato e o respeito ao isolamento voluntário desses povos atualmente em vigência no órgão. Trata-se de uma investida para a abertura de contato evangelizador impositivo e homogeneizador, caracterizando mais um ato de violência contra a identidade étnica das comunidades. Esse ato visa sobretudo a colocação dos povos indígenas isolados e de recente contato numa posição subordinada de “selvagens” à espera do cristianismo civilizador, no cenário geral branco e supremacista que defendem para o país.
Paralelamente aos ataques no âmbito institucional da Funai, tem havido assédio de missionários nas TIs com presença de isolados, como no Vale do Javari. Desde setembro de 2019 a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari - Univaja vem denunciando a atuação de missionários proselitistas.
No que tange à política de demarcação de terra indígena, tem adotado uma postura inconstitucional ao paralisar os procedimentos demarcatórios em trâmite e criar obstáculos para inviabilizar a homologação de processos que estão “maduros” do ponto de vista administrativo. Importante consignar que demarcar terra indígena é imperativo constitucional, pois ao tempo que a Carta Constitucional reconheceu o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF), impôs prazo de 05 (cinco) anos para a conclusão de todas as demarcações (art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT).
A Constituição de 1988 atribuiu à União a obrigação expressa de demarcar as terras indígenas, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens. Trata-se de poder-dever outorgado ao Estado Brasileiro, a ser implementado mediante o exercício da competência administrativa, atividade típica do Poder Executivo Federal. Nota-se que a demarcação das terras indígenas, nos termos impostos pelo texto constitucional, possui conteúdo declaratório, vez que corresponde ao reconhecimento de direitos originários dos povos indígenas, imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis, que precedem a própria fundação do Estado brasileiro.
Fica claro, assim, que a demarcação de terra indígena ostenta caráter indubitavelmente administrativo e vinculado, insuscetível a discricionariedades políticas. Esta conduta de não demarcar as terras indígenas ficou clarividente em atos do ministro da Justiça e do presidente da Funai. Na última semana do mês de janeiro de 2020, o então ministro Sérgio Moro determinou a devolução à Funai dos 17 processos administrativos de demarcação que há muito aguardam a assinatura da Portaria Declaratória. Os 17 processos devolvidos à Funai para adequar ao Parecer 01 da Advocacia Geral da União - AGU são: Vista Alegre (AM); Tuwa Apekuokawera (PA); Sambaqui (PR); Marú (PA); Pindoty/Araçá-Mirim (SP); Guaviraty (SP); Kanela Memortumré (MA); Cobra Grande (PA); Barra Velha do Monte Pascoal (BA); Tupinambá de Olivença (BA); Wassú-Cocal (AL); e Paukalirajausu (MT).
Além disso, a Funai vem tomando posição pela desistência de ações de sua titularidade e abandonando a defesa das comunidades indígenas em várias ações judiciais; e isso é apenas mais um ato pernicioso, num conjunto maior de atos, que se embasam em orientação da AGU, por meio do Parecer 01/2017/AGU. Nota-se, chegamos ao extremo da irracionalidade, pois o Brasil é o único país do mundo que possui uma agência oficial indigenista do porte institucional da Funai, criada para a defesa dos direitos indígenas, e agora está se negando a defender a sua razão de ser!
Ainda no campo da política fundiária, alguns expedientes merecem atenção, tal como a Medida Provisória n. 910/2019, agora transformada no Projeto de Lei - PL n. 2633/2020, em trâmite na Câmara dos Deputados, e a Instrução Normativa - IN n.º 09 da Funai. Publicada no dia 22 de abril de 2020, a IN 09/2020 disciplina o requerimento, análise e emissão da “Declaração de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados”. Esta normativa revogou a Instrução Normativa n.º 03, datada de 20 de abril de 2012, promovendo significativa mudança administrativa e atingindo os direitos e interesses dos povos indígenas do Brasil. A citada normativa foi comemorada por representantes do setor ruralista.
O parágrafo primeiro do art. 1º, da Instrução Normativa n.º 09, preceitua que a “Declaração de Reconhecimento de Limites” se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas. Na prática, a Funai mais uma vez fechará seus olhos para as grilagens que ocorrem em relação às terras indígenas, bastando lembrar que temos pelo menos 246 TIs ainda pendentes de homologação. Os invasores de terras indígenas poderão solicitar a Declaração à Funai e, munidos desse documento, requerer junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra, por meio de cadastro autodeclaratório, a legalização dessas áreas invadidas.
Neste contexto, preocupam-nos os povos indígenas isolados. Atualmente existem 114 registros de povos isolados considerados pela Funai. Essa normativa da Funai veio na mesma guinada da Medida Provisória n.º 910, de 10 de dezembro de 2019, que dispunha sobre a regularização fundiária de ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União ou do Incra. Esta medida “caducou” durante sua tramitação no parlamento brasileiro e foi apresentada em forma de projeto de lei. O deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), então relator da Medida Provisória 910, apresentou, no dia 14 de maio de 2020, o PL 2633/2020, que repete o mesmo conteúdo da MP. Vale lembrar que a MP entrou em vigor em dezembro de 2019, ano marcado pela alta do desmatamento em terras públicas federais não concedidas.
Na toada dos grandes interesses econômicos, encontra-se ainda o Projeto de Lei n.º 191/2020, apresentado ao Congresso Nacional pelo governo federal no início de 2020. Esse projeto trata da regulamentação da mineração em terras indígenas. Esse tema é crucial para os povos indígenas, levando em consideração que as atividades minerárias, e todo o contexto que as envolve, são extremamente prejudiciais e violentas com o modo de ser, viver e estar no mundo dos povos indígenas.
Há uma evidente violação ao direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Qualquer tipo de norma que objetive regulamentar essas atividades econômicas em TIs e não seja consultada pelos povos indígenas, de forma ampla e efetiva, desde o seu início, carece de legalidade e constitucionalidade já em sua gênese.
IHU On-Line – Como o senhor já evidencia, uma das marcas desse governo é o desmonte de órgãos como a Funai e o Ibama. Na prática, como se dá esse desmonte e quais os efeitos sobre as comunidades indígenas?
Eloy Terena – A Constituição Federal completou 32 anos e, mesmo assim, muitas comunidades indígenas aguardam a demarcação de suas terras desde então. O recente Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas (2020), divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário - Cimi, apontou de forma inequívoca que, das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência por parte do Estado para a finalização de seu processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União - SPU.
Destas 829, um total de 536 terras (64%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado. Ou seja, o atual presidente da República, além de ter cumprido sua promessa de não demarcar um centímetro de terra indígena, atuou por meio do Ministério da Justiça, na qual devolveu 27 processos de demarcação à Funai para que fossem revistos, no primeiro semestre de 2019.
Nota-se: nenhum outro país do mundo tem uma agência indigenista do porte da Funai, que foi criada justamente para defender os povos indígenas. Aliás, na atual quadra constitucional, sua principal missão é identificar e delimitar as terras indígenas, além de proteger os seus bens. No entanto, temos assistido o órgão atuar contrariamente aos interesses indígenas. Cito expressamente a Instrução Normativa n.º 9, publicada em 22 de abril de 2020, que facilita a ocupação e grilagem de terras indígenas, que aliás, são terras públicas. Inclusive, na data de ontem (27/10), saiu uma sentença da justiça federal de Santarém declarando a nulidade dessa normativa. O magistrado conclui: “A Funai, de forma pouco usual, adota uma retórica em prol dos não índios, o que causa certa estranheza em razão de seu dever de garantir o cumprimento da política indigenista (artigo 1º, lei nº. 5.371/1967)”.
O desmonte desses órgãos ficou evidente neste contexto de pandemia. Importante salientar que a Apib ingressou com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 709 no STF, buscando medidas protetivas para as comunidades indígenas. Embora os pedidos sejam focados em medidas sanitárias, a ação enfrenta problemas estruturais, notadamente em relação à ausência de política efetiva de proteção a esses territórios. As notas técnicas que acompanharam a petição da Apib trazem dados ambientais advindos de monitoramento por satélite e que servem como um termômetro importante à integridade territorial das terras indígenas.
O cenário atual é de aumento contínuo de áreas de desmatamento e degradação florestal no interior dessas terras. É o que revelam os dados do Prodes, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe, que registra as taxas anuais de desmatamento, segundo um calendário próprio que vai de agosto do ano anterior a julho do ano corrente. Em 2019, o aumento do desmatamento na Amazônia foi de 34,41%, mas, nas terras indígenas, esse aumento foi de 80%. O aumento significativo da perda de vegetação no interior das TIs nos dois últimos anos é um indicativo grave de invasão com as finalidades de exploração ilegal dos recursos naturais e de apropriação fundiária.
Em maio de 2020, os dados do Deter [sistema de detecção do desmatamento em tempo real, do Inpe] mostram um aumento de 34% nos alertas de desmatamento por corte raso de vegetação na Amazônia legal em relação aos registrados no mês de abril. Com 61.200 hectares de áreas desmatadas, maio foi o mês com a maior área de alerta de desmatamento em 2020. Já entre janeiro e maio deste ano houve um aumento dos alertas de desmatamento de 32% em relação ao mesmo período do ano passado.
A degradação ou o corte seletivo de madeira nas terras indígenas é outro ponto importante de atenção. A degradação, estágio anterior à derrubada total da floresta, também é um indicador importante para identificar as invasões ou atividades ilegais nas TIs. O Deter revelou aumento de 83% entre 2018 e 2019 na degradação florestal detectada no interior de TIs.
Quando se trata de desmatamento em terras indígenas, verifica-se que 90% do desmatamento acumulado no período 2019 a 2020 ocorreu em 23 terras, sendo elas: Ituna/Itatá, Cachoeira Seca do Iriri, Apyterewa, Trincheira Bacajá, Parque Indígena do Xingu, Marãiwatsédé, Kayapó, Munduruku, Manoki, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayabi, Parque Indígena Aripuanã, Batelão, Sete de Setembro, Waimiri Atroari, Zoró, Yanomami, Roosevelt, Panará, Urubu Branco, Rio Guaporé e Wawi.
Surpreende que cerca de 6% do desmatamento detectado pelo Deter em 2019 tenha sido classificado como advindo da mineração, atividade ilegal e de alto impacto ambiental. Entre 2018 e 2019, a degradação por mineração ou garimpo nas terras indígenas aumentou 107%. Segundo relatório elaborado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - Ibama, o desmatamento causado por garimpos na Amazônia aumentou 23% em 2019, atingindo um recorde histórico de 10.557 hectares degradados. O avanço do garimpo e outras atividades ilegais sobre as terras indígenas é acompanhado do crescimento de contingentes de populações não indígenas empregadas no esforço de derrubada da floresta e extração de minerais.
IHU On-Line – O senhor também tem destacado que muitos retrocessos na legislação de proteção a povos indígenas começaram no governo de Michel Temer. Poderia nos exemplificar esses retrocessos?
Eloy Terena – A partir de 2016, com a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, iniciou-se um acelerado retrocesso dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Em maio de 2017, quando o ex-presidente da Funai, Sr. Antônio Fernandes Toninho Costa, entregou o cargo, acusando o ex-ministro da Justiça de agir em favor de um lobby conservador de latifundiários e outros interesses da bancada ruralista, inclusive impondo indicações políticas dentro da Funai, o órgão passou a ser dirigido por um general do Exército.
A despeito de protestos do movimento indígena nacional, assumiu a presidência da Funai o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Empossado no cargo, o general Franklimberg assinou uma série de medidas controversas, particularmente no que diz respeito à perspectiva de assimilação de povos indígenas, escondida atrás do argumento do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Indigenista - CNPI ficou inoperante, corroborado pela falta de interesse do Ministério da Justiça em estabelecer um diálogo com os povos indígenas.
Foi neste contexto que, em julho de 2017, o Ministério da Justiça estabeleceu um grupo de trabalho (Portaria n.º 541/2017 do Ministério da Justiça), com vários representantes das forças de segurança e sem a participação de representantes indígenas, para elaborar medidas visando à integração desses povos. Depois de críticas severas por parte do movimento indígena e de organizações da sociedade civil, o ato foi substituído por um similar (Portaria n.º 546/2017 do Ministério da Justiça), sob a justificativa de que o objetivo não era assimilação, mas a organização de povos indígenas.
No dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n.º 01/2017/GAB/CGU/AGU, o qual obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu na decisão da Pet. n.º 3.388/RR a todas as terras indígenas. O Parecer tem como objetivo, além de determinar a observância direta e indireta do conteúdo das 19 condicionantes, institucionalizar a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas só teriam o direito às terras que estivessem ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal. A pretexto de normatizar a atuação da Administração Pública Federal e uniformizar a interpretação constitucional a respeito do processo demarcatório de terras indígenas, o que o Parecer n.º 01/2017 da AGU fez na verdade foi conceder efeito vinculante e automático à decisão do STF, quando este próprio proibiu essa possibilidade.
Na prática, este parecer vincula todos os órgãos da Administração Pública Federal (direta e indireta), atingindo notadamente a Funai e a Procuradoria Especializada da Funai. Os efeitos são extremamente negativos porque imediatamente a Funai começou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de terras indígenas de todo o país. Outros processos que já estavam na Casa Civil e Ministério da Justiça, em estágio avançado, foram devolvidos à Funai para serem reanalisados.
No âmbito da própria AGU, muitos advogados da União que atuam na defesa dos interesses da União e da Funai, pois as terras indígenas são bens da União, tiveram suas prerrogativas de atuação tolhidas. Em muitos casos, os procuradores da Funai foram obrigados a desistir de fazer a defesa judicial de muitas comunidades indígenas, sob pena de sofrerem procedimento disciplinar.
Sem dúvida, este parecer, gestado pelo setor ruralista no âmbito do governo de Michel Temer, trouxe serias consequências aos direitos e interesses dos povos indígenas. Tal parecer foi editado justamente no momento em que Michel Temer precisava do apoio da bancada ruralista para impedir a admissibilidade de denúncia contra si no parlamento brasileiro. A Apib chegou a protocolar representação na Procuradoria-Geral da República, mas o caso foi arquivado.
IHU On-Line – E ao longo dos governos petistas, o senhor considera que a pauta dos povos indígenas era acolhida?
Eloy Terena –Esta é uma pergunta importante, porque tenho observado nas redes sociais muitos ataques às lideranças indígenas e à Apib. Os simpatizantes do atual governo questionam “onde os índios estavam durante o governo do PT?”. Eu costumo responder: na rua, fazendo a mobilização! As pessoas pensam que os povos indígenas começaram a reivindicar direitos somente agora ou que estão sendo manipulados pela esquerda para “falar mal do presidente”.
Fato é que o movimento indígena sempre esteve na vanguarda, mobilizando em prol de seus direitos, inclusive nos governos petistas, que embora tenha adotado uma postura participativa, cedeu em muito para os interesses do capital e foi um governo no qual os ruralistas tiveram muito espaço também. Foram anos de lutas contra Belo Monte e a PEC 215 que visava transferir a demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional. Além de ser um governo absolutamente inoperante em relação à conclusão da demarcação das terras indígenas. Cito aqui as violências perpetradas contra os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, até hoje um escândalo mundial sem resolução.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o movimento indígena no Brasil de hoje? Quais os maiores desafios?
Eloy Terena – O movimento indígena tem atuado de forma autônoma e assumido um protagonismo fundamental exatamente neste contexto político adverso aos nossos direitos. Mesmo com as restrições e protocolos sanitários, as lideranças indígenas tocaram suas agendas políticas. Pela primeira vez na história o Acampamento Terra Livre - ATL, maior assembleia indígena do país costumeiramente realizada em Brasília, foi feito de forma on-line, em que caciques e demais lideranças se conectaram de diversas partes do Brasil para fazer seu manifesto político nas redes da Apib, que tiveram um alcance diário de 180 mil pessoas.
Logo após, em maio, as lideranças organizaram a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, oportunidade em que apontaram para diretrizes gerais para o enfrentamento da pandemia nos territórios indígenas. A partir dessas diretrizes lograram êxito em articular no Congresso Nacional, com apoio da Deputada Federal Joenia Wapichana, uma lei dispondo sobre a proteção dos povos indígenas, e, posteriormente, foram ao Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF 709, exigir do governo a adoção de medidas protetivas. Isso é muito significativo tendo em vista que a gestão do governo Bolsonaro se pautou justamente nos princípios retrógrados da integração e assimilação da política indigenista do século passado. E, nesta conjuntura, os povos indígenas se articulam e demonstram que, mesmo em constante contato com o mundo não indígena, a marca de sua identidade cultural se reafirma e se consolida.
As lideranças indígenas têm demonstrado uma capacidade qualificada de resistência na mobilização pela garantia de direitos. As instâncias estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) constituem um elemento de análise por parte das lideranças que buscam compreender a sistemática da burocracia e operacionalidade da máquina administrativa. Essa tarefa assumida por parte das comunidades aperfeiçoa as formas de incidir junto aos atores representativos dos poderes estatais. Isso é revelador de como o movimento indígena brasileiro, ao longo dos séculos, resistiu às ações estatais. Mas não uma resistência apenas defensiva, e sim qualificada pelo protagonismo indígena que se apropriou e ressignificou elementos que antes eram estranhos à cultura indígena, mas que nos dias atuais são acionados pelas lideranças em suas reivindicações.
IHU On-Line – Por que é importante compreender que as terras indígenas, além de necessárias para a preservação dos modos de vida dos povos originários, devem ser vistas como patrimônio público?
Eloy Terena – As terras indígenas possuem várias afetações. Primeiro, servem para proteger o modo de vida dos povos indígenas; segundo, servem também para proteger a biodiversidade, tendo em vista que existe uma perfeita compatibilidade entre o modo de vida das comunidades e a biodiversidade, pois a relação estabelecida com a sua “Mãe Terra” não se dá pelo viés exploratório, mas sim pelo respeito mútuo. E, terceiro, as terras indígenas são bens públicos federais, ou seja, pertencem ao patrimônio público brasileiro. Portanto, defender demarcação de terra indígena é um sentimento de fortalecimento democrático e cidadão.
Além disso, as terras indígenas desempenham um importante papel no equilíbrio climático e sanitário. Respeitar as vidas que ali habitam é pressuposto para garantia das futuras gerações. Nas relações estabelecidas dentro desses territórios todos são sujeitos de direito, incluindo aí os lagos, rios, matas, animais e os seres encantados que habitam esses locais que são base física para as práticas tradicionais de cada povo.
Como já se manifestou o ministro Celso de Mello, do STF, no Recurso Extraordinário n.º 183.188, “a disputa pela posse permanente e pela riqueza das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios constitui o núcleo fundamental da questão indígena no Brasil”. E no mesmo sentido, o ministro Menezes Direito, durante o julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Pet. 3.388), ao afirmar que “não há índio sem-terra”. Pois a relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. Assim, de nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando-as.
IHU On-Line – A pandemia causada pela covid-19 também foi implacável com os povos indígenas. Que leitura o senhor faz desse episódio?
Eloy Terena – A pandemia é oportuna para chamar atenção para um recado importante com que os povos indígenas vêm alertando a humanidade, qual seja, a necessidade de respeitar os territórios tradicionais e a biodiversidade ali presente. Esse vírus que parou o mundo, afetou todos os setores políticos e econômicos, também afetou as terras indígenas.
A pandemia chegou aos nossos territórios e expôs os problemas estruturais que afetam as nossas comunidades e territórios, como: a ausência de demarcação e proteção dos nossos territórios, as invasões às nossas terras por parte dos garimpeiros e madeireiros, o alto índice de encarceramento e criminalização de lideranças indígenas, o enfraquecimento da fiscalização ambiental, o racismo institucional contra os povos indígenas, e as fragilidades do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Sobre estas, destacam-se: falta de infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual; reduzido estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de integração com a rede de saúde; e a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Saúde do Índio.
Creio que temos a oportunidade, enquanto humanidade, de repensar a nossa forma de existência, respeitando a diferença e o modo de vida dos povos que habitam o país. É preciso retomar o respeito à pluralidade étnica, que é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
IHU On-Line – Os povos originários são expropriados desde o período colonial. Hoje, o Estado brasileiro é capaz de reconhecer todo esse passado colonizador e assumir a importância da preservação das formas de vida das comunidades indígenas?
Eloy Terena – O texto constitucional de 88 foi categórico ao vaticinar, em seu artigo 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Não há dúvida, portanto, que o constituinte originário elegeu a tese do direito originário. Os direitos dos povos indígenas aos seus territórios possuem respaldo constitucional antes mesmo de 1988. Na Carta Constitucional de 1934 foi reconhecida a posse dos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam: “Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.
Seguindo a ordem Constitucional, a Lei n.º 6.001/73, também conhecida como Estatuto do Índio, previu em seu art. 65 que o “Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas”. Ou seja, até 1978 todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas. Sobreveio a Constituição de 1988 e novamente impôs o mesmo prazo vaticinando no art. 67 da ADCT, que a “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
Importante salientar que no século passado, o jurista João Mendes Junior elaborou, com base na legislação colonial, a teoria do indigenato. Em palestra proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, o professor João Mendes Junior afirmou:
“[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n. 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio Estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
Lendo o dispositivo da atual Constituição, nota-se que ela reconheceu aos direitos indígenas o atributo de serem originários. Se o fato de serem direitos fundamentais já os tornam cláusulas pétreas, esta atribuição ganha ainda mais força normativa por serem originários. Qualquer hermenêutica dos intérpretes autênticos da Constituição não pode atentar contra a moldura normativa estabelecida pela Constituição Federal, norma esta que estrutura o ordenamento jurídico. Portanto, comprovada a tradicionalidade da terra, prevalecem os direitos originários dos povos indígenas.