Por: Ricardo Machado | 15 Março 2018
Os últimos anos, se não a última década e meia, têm sido marcados por um agravamento às situações de violência e retirada de garantias e direitos constitucionais dos povos indígenas. Diante do cenário devastador e etnocida, as populações ameríndias, particularmente a etnia Xukuru de Ororubá, tiveram uma importante vitória na terça-feira, 13-3-2018, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a responsabilidade internacional do Estado brasileiro na violação aos Direitos de propriedade coletiva, garantia judicial em um prazo razoável e proteção aos indígenas.
Ainda na noite da terça-feira, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU recebeu a professora e pesquisadora Fernanda Frizzo Bragato, da Unisinos, no Ciclo de estudos e debates Violências no mundo contemporâneo, interfaces, resistências e enfrentamentos. “A divulgação da sentença da Corte Interamericana em favor do povo Xukuru, no município de Pesqueira, em Pernambuco, reconheceu a violação do direito à propriedade coletiva dos indígenas, que agora também passa a ser regulado por essa jurisprudência”, pontua Fernanda, durante a conferência Direito à demarcação de terras, conflitos e violência contra povos indígenas do Brasil, realizada na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Em relação ao povo Xukuru, o Estado brasileiro tem a obrigação de cumprir as determinações da Corte no prazo máximo de 18 meses, de modo que no período de um ano tem de apresentar um relatório sobre as medidas adotadas. “O Brasil é obrigado a cumprir a sentença porque ela provém de um tribunal internacional reconhecido pelo Brasil. O problema é o que faz o Estado cumprir, porque ele cumpre de boa-fé. E se ele não cumprir? Existem sanções, mas que só poderiam ser aplicadas pela assembleia geral da Organização dos Estados Americanos - OEA, mas muito dificilmente sofrerá uma sanção dos outros Estados por não ter cumprido. A eficácia das sentenças internacionais é um problema, mas, por outro lado, elas têm força persuasiva”, explica a conferencista.
Fernanda Bragato, no IHU (Fotos: Ricardo Machado/IHU)
De acordo com Fernanda, o Brasil possui uma legislação de certo destaque, inclusive no cenário latino-americano, mas o ponto sensível é a não aplicação desses direitos e toda uma cultura neocolonialista. “O problema brasileiro não é a falta de legislação, mas a efetivação do direito indígena à posse tradicional. E isso nada tem a ver com o processo de propriedade privada previsto no Direito Civil. É de outra ordem”, pontua. “A presença indígena na área, a relação espiritual não meramente produtiva, a presença histórica é o que garante o direito à demarcação. Embora a propriedade da terra seja da União, não dos indígenas, são os povos tradicionais quem têm direito ao usufruto”, detalha.
Até, pelo menos, a promulgação da Constituição Federal, em 1988, não havia grandes entraves jurídicos à demarcação de terras indígenas, contudo uma postura assimilacionista, como se esses grupos humanos estivessem a um estágio da civilização, forçou a remoção e a aculturação de um contingente enorme de etnias de seus locais de origem. “Historicamente, desde a década de 1920, foram removidos indígenas de seus locais originários. Isso é um problema imenso no Mato Grosso do Sul, o que leva a uma superpopulação, discriminação e desassistência do Estado em relação a esses povos, podendo produzir índices de violência próximos à guerra civil”, sinaliza a conferencista.
Um dos argumentos mais recorrentes das pessoas contrárias à demarcação de terras indígenas é que no Brasil 13% do território foi destinado para este fim. Entretanto, trata-se de uma distorção, porque o Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes, sua imensa maioria mora em cidades, e há apenas 1 milhão de indígenas. “A questão é que tem que excluir a população das cidades e fazer o cálculo de comparação com os povos tradicionais em relação ao número de proprietários rurais do Brasil”, corrige Fernanda.
“Os dois maiores povos indígenas do Brasil em população, Kaingang e Guarani, estão fora da Amazônia. Eles estão em situação mais crítica, pois demograficamente há um grande contingente que não tem suas terras demarcadas. Esses processos de reivindicação de demarcação trazem situações bastante difíceis que geram contextos nos quais se apresentam diversos casos de violência”, analisa. “Embora não sejam processos complexos, porque a legislação é clara, dado que qualquer título de propriedade sobre terra indígena é nulo, há uma série de entraves à garantia dos direitos. É por isso que existe uma série de tentativas de desmantelá-lo, por isso, também, há tanta pressão política contra essas demarcações”, complementa.
Frente a um contexto de retirada de direitos e de conservadorismo das instituições públicas, uma estratégia dos pesquisadores da área de direitos humanos relacionados aos povos indígenas é pensar as práticas contra as garantias como crimes de atrocidade. “Há uma série de pesquisadores que estão pensando essas violências a partir do direito internacional e dos crimes de atrocidade. No que concerne ao Estatuto de Roma – Tribunal Penal Internacional – os crimes de atrocidade são os de genocídio, crimes contra humanidade e os crimes de guerra”, explica. Isso não significa que tais enquadramentos possam ser realizados de modo simples. “Situar os crimes de violência nesse quadro de atrocidades é muito complexo e difícil. Por exemplo, o crime de genocídio não precisa ser necessariamente a destruição física de seus membros, mas impedir certo grupo à continuidade cultural. Para isso é preciso que reste provado que a intenção era justamente essa”, destaca.
Uma das maneiras de fazer esses enquadramentos é por meio da identificação de fatores de risco (abaixo listamos os fatores de risco identificados por uma pesquisa realizada com os Guarani Kaiowá), de modo que possam ser pensadas medidas preventivas aos crimes de atrocidade. “É importante notarmos que esses crimes, sobretudo o de genocídio, encontram ambiente propício para ocorrer dependendo da qualidade da vítima. Os povos indígenas estão em situação potencial de serem vítimas, porque o que está em jogo não é o direito x ou y, mas o direito humano de existir de uma forma diferenciada”, ressalta.
Os interesses econômicos sobre os bens territoriais desses grupos agravam a situação de vulnerabilidade, conforme o Quadro de Análise de Risco para crimes de atrocidade, escrito pela Organização das Nações Unidas - ONU. “Os povos indígenas são protegidos porque se trata de grupos étnicos. Parte-se daí para se avançar e identificar outros fatores de risco. Os indivíduos que cometem crimes previstos no Estatuto de Roma e que não são penalizados pelo judiciário brasileiro, podem ser responsabilizados pelo tribunal internacional”, alerta Fernanda. “Relacionar esses crimes ocorridos contra esses povos como atrocidade pode alertar o Estado brasileiro sobre a necessidade de aprofundar melhor suas respostas”, finaliza. No fundo, como sustenta a consigna Inca "o homem é terra que anda", garantir a demarcação dos territórios indígenas é garantir o direito fundamental à vida.
Fatores de risco, se não de ocorrência, no caso brasileiro que se adequam ao quadro de análise da ONU:
Fernanda Frizzo Bragato possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e doutorado em Direito pela mesma instituição, tendo realizado pós-doutorado na University of London (School of Law – Birkbeck College), Inglaterra.
Atualmente, é professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos na Unisinos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O homem é terra que anda.” Demarcação de terras indígenas e crimes de atrocidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU