02 Setembro 2023
Os filósofos de hoje normalmente são desconhecidos fora de sua disciplina, mas, dentro dela, Derek Parfit, falecido em 2017, era considerado uma das figuras mais importantes dos últimos 50 anos. Ele tinha um talento extraordinário para revelar as fraquezas ocultas das teorias morais comuns.
O comentário é de Frank B. Farrell, professor emérito de filosofia no Purchase College, da Universidade Estadual de Nova York, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 25-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Podemos acreditar, por exemplo, que uma ação só é errada se causar danos a determinados indivíduos. Mas consideremos a nossa relação com as gerações futuras. Podemos agir bem hoje para preservar a ecologia do planeta ou podemos agir muito mal a esse respeito. Neste último caso, as pessoas que viverem daqui a alguns séculos terão vidas habitáveis, mas muito mais difíceis. Parece que falharemos no nosso dever moral para com elas.
Mas Parfit argumenta que o que constitui um “eu” particular é a união de um determinado óvulo e de um determinado espermatozoide em um determinado momento. Pense em todas as contingências que poderiam ter feito com que seus pais se conhecessem mais tarde e tivessem um filho diferente de você. Depois consideremos os futuros indivíduos que viverão daqui a séculos em um mundo criado pelo nosso comportamento que leva ao esgotamento dos recursos. Sem esse mesmo comportamento e suas consequências ramificadas, esses indivíduos em particular não existiriam.
Um comportamento muito mais responsável de nossa parte mudaria a história o suficiente para gerar um grupo de indivíduos muito diferente. Os indivíduos no nosso experimento mental certamente estão em uma situação melhor do que se nunca tivessem existido, de modo que não podem alegar que nós os prejudicamos. Em suma, uma teoria comum sobre o que torna o nosso comportamento atual errado, embora seja intuitivamente atraente, não é convincente.
EDMONDS, David. Parfit: A Philosopher and His Mission to Save Morality. Princeton University Press, 408 páginas. (Foto: Divulgação)
Esse argumento é o pensamento de Parfit por excelência. As reações à sua obra muitas vezes dependem do fato de a pessoa considerar que tais argumentos são ameaças perturbadoras às nossas estruturas morais ou apenas o tipo de quebra-cabeça que coloca certos tipos de mentes em movimentos prazerosos.
Para dar outro exemplo, consideremos uma teoria ética utilitarista, que visa a produzir a melhor proporção entre estados prazerosos e estados dolorosos. Parece que poderíamos obter uma pontuação utilitária superior se continuássemos aumentando a população mundial para 20 ou 30 bilhões de indivíduos, desde que cada nova vida acrescentasse pelo menos um pouco mais estados prazerosos do que estados dolorosos. Tal resultado, diz Parfit, é repugnante.
Ele estava interessado nos tipos de ações, relacionadas com os danos ambientais, por exemplo, que trazem benefícios substanciais a um agente individual, mas ao mesmo tempo prejudicam milhões de outras pessoas de uma forma que é demasiadamente pequena para ser sentida ou medida. Somente quando cada ação desse tipo se combina com as de muitos outros agentes individuais é que o dano se torna mensurável. As teorias éticas tradicionais não parecem bem concebidas para tais casos.
Parfit não desejava encorajar o ceticismo moral; em vez disso, ele queria apontar o caminho para uma teoria moral mais adequada. Ele sentia que estávamos apenas na primeira fase do desenvolvimento de tal teoria secular, agora que as estruturas religiosas e outras estruturas metafísicas implausíveis tinham sido finalmente abandonadas. Ele era aquilo que os filósofos chamam de cognitivista não naturalista. Ou seja, ele acreditava que existem verdades éticas a serem descobertas da mesma forma que existem verdades matemáticas a serem descobertas, mas que estas não são redutíveis ao que podemos aprender com as evidências e a experimentação científicas. Ele sentia fortemente que sua própria vida e a vida humana em geral seriam completamente sem sentido se não existisse tal teoria ética válida. E acreditava que os valores morais não podem depender simplesmente daquilo que nós valorizamos.
Parfit gostava de usar experimentos mentais bastante engenhosos (clonagem, teletransporte, cirurgias de divisão cerebral e coisas do gênero) para testar nossas intuições sobre identidade pessoal. Ele concluía que a identidade pessoal não tem nenhuma base profunda, pode depender de escolhas arbitrárias que as culturas farão no futuro e, no fim das contas, não é de suma importância. Podemos ter motivos para desejar a continuidade dos estados mentais que valorizamos, mas a continuidade do “eu” não deve ser uma questão de preocupação primordial.
Para Parfit, as fronteiras entre os “eus” eram menos importantes e menos rígidas do que normalmente supomos, de modo que a nossa preocupação pelos outros não é tão diferente da nossa preocupação com nós mesmos. De fato, uma pessoa pode se identificar mais com outra do que com uma fase anterior dela mesma, então por que insistir na importância da identidade pessoal ou em sua continuidade ao longo do tempo?
Derek Parfit nasceu em Chengdu, China, filho de médicos missionários britânicos. De volta à Inglaterra, seus pais usaram seus recursos disponíveis para proporcionar ao jovem Derek uma educação britânica privilegiada: a Dragon School, em Eton, e o Balliol College, em Oxford. Depois, ele ganhou bolsas de pesquisa concorridas, que lhe permitiram permanecer no All Souls College, Oxford, por mais de 40 anos, com suas necessidades diárias atendidas, sem aulas para ministrar e junto com outras mentes superiores para desafiar suas posições filosóficas em grupos de discussão.
Parfit perdeu sua crença religiosa quando era muito jovem, porque não conseguia aceitar um Deus que punia os pecadores no inferno. Acreditar em um universo determinista, sustentava ele, é reconhecer que as nossas atitudes reativas à moral (elogio, culpa, vergonha, punição, recompensa, gratidão, ressentimento, ostracismo) são equivocadas.
É difícil imaginar um biógrafo mais simpático, imparcial e adequadamente qualificado para Parfit do que David Edmonds. Parfit foi co-orientador do mestrado de Edmonds. A companheira de longa data de Parfit, Janet Radcliffe Richards, foi orientadora da tese de doutorado de Edmonds. Edmonds é agora pesquisador do Uehiro Centre for Practical Ethics em Oxford, produz o podcast Philosophy Bites e é coautor de “Wittgenstein’s Poker”.
Como seria de se esperar, Edmonds fornece muitos detalhes sobre os escritos, os prêmios e os concorridos exames de admissão de Parfit em Eton e Balliol. Mas ele também colecionou muitas anedotas reveladoras de quem conhecia Parfit muito bem.
Edmonds equilibra muito bem a narrativa da vida de Parfit com relatos lúcidos de suas ideias, e esse equilíbrio é importante, porque sua vida foi, em alguns aspectos, peculiar. Parfit sentia que descobrir a verdadeira teoria ética era tão importante que ele muitas vezes ficava em seu quarto e não se envolvia no tipo de socialização esperado dos All Souls Fellows.
Uma colega que ele conhecia há duas décadas estava morrendo de câncer e o convidou para jantar; ele recusou o convite, dizendo que estava muito ocupado com seu trabalho. Sua companheira, Radcliffe Richards, disse que ela sempre foi “um espetáculo secundário em sua vida”. Seu único interesse real fora da filosofia era uma viagem anual a Veneza ou a São Petersburgo, onde ele tirava fotografias panorâmicas de longa exposição de edifícios famosos.
No entanto, ele podia ser extremamente generoso quando se tratava de interagir filosoficamente com outras pessoas. Um estudante desconhecido podia lhe enviar um trabalho de 30 páginas e ficar chocado ao receber, em pouco tempo, uma resposta de 40 páginas com espaço simples. Perto do fim de seu livro, Edmonds propõe a possibilidade de Parfit estar no espectro do autismo; ele certamente parece ter sido incomumente limitado para reconhecer pistas sociais.
Poderíamos objetar ao projeto intelectual de Parfit que a ética não é o tipo de coisa que pode produzir uma teoria sistemática. Existem muitos bens que uma comunidade humana pode valorizar: liberdade, igualdade, bem-estar, excelência notável, realização estética e intelectual, riqueza e assim por diante. Decidir entre eles é mais como negociar entre facções de uma coligação política complexa do que descobrir uma teoria científica. Uma teoria científica válida substitui seus precursores; eles se tornam obsoletos. Por outro lado, deveríamos desejar manter vivos uma série de recursos éticos diversos, de diferentes épocas, tanto filosóficos como literários, que nos ajudarão a pensar sobre como devemos agir e em que consiste uma vida boa.
Os experimentos mentais de Parfit são modelados nos experimentos de laboratório organizados pelos físicos. Mas a analogia falha: a natureza artificial e engenhosa das experiências mentais morais significa que não estamos lidando com o tipo de tomada de decisão ética em que os indivíduos reais realmente se envolvem.
Por fim, a ética também trata de como viver uma vida que possua integridade, caráter e um estilo distinto; uma vida não é apenas o local para a realização de atos morais ou imorais.
Parfit pode ter estado certo ao afirmar que as verdades morais não são simplesmente projeções sobre o mundo daquilo que nós valorizamos. À medida que evoluímos culturalmente e passamos a conhecer melhor o mundo e a refletir sobre o nosso lugar nele, descobrimos certas coisas sobre o que vale a pena valorizar. Mas há um longo caminho entre essa afirmação e o tipo de objetividade forte que Parfit deseja. A nossa herança biológica e cultural permanecerá relevante para os valores que filtramos da nossa experiência como os mais importantes.
Os heróis de Parfit foram Henry Sidgwick e Kant. Ele poderia ter se desafiado a se familiarizar mais com Aristóteles e Nietzsche. O primeiro refletiu profundamente sobre a importância ética do hábito e do contexto social; o segundo mostrou como as maiores realizações intelectuais de uma pessoa podem ter raízes em características inconscientes de seu próprio caráter.
Parfit não parece ter refletido adequadamente sobre como sua própria personalidade e sua própria criação, como Edmonds as descreve nesta excelente biografia, podem tê-lo feito preferir um tipo de moralidade “objetiva” a outros.
EDMONDS, David. Parfit: A Philosopher and His Mission to Save Morality. Princeton University Press, 408 páginas.
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A ética é como a matemática? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU