04 Setembro 2023
Em 1º de setembro, celebra-se o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação. O presente artigo do cardeal Michael Czerny, SJ, condensa e amplia as questões mais oportunas (e urgentes) no caminho iniciado pelo Papa Francisco com a publicação da histórica encíclica Laudato Si’, em 2015.
Neste momento crucial da história, os debates sobre o cultivo de estilos de vida que encarnem uma nova humanidade têm um tom surpreendentemente profético, diz o cardeal Czerny, e podem ser muito bem fundamentados pelas palavras do Papa Francisco.
Tendo em vista o recente anúncio do Papa Francisco de publicar uma “segunda parte” da Laudato Si’, no próximo mês de outubro, as palavras abaixo nada mais fazem do que reafirmar uma necessidade latente: “Como podemos contribuir com o poderoso rio da justiça e da paz, neste Tempo da Criação? O que podemos fazer […] para curar a nossa casa comum de modo que volte a ficar cheia de vida?”
Abaixo, as ideias do cardeal Czerny, publicadas por Infobae, 31-08-2023. A tradução é do Cepat.
O Antropoceno é uma nova época geológica, dá nome a um ponto de inflexão crucial na história de nosso planeta. O Homo sapiens nunca havia vivido uma época semelhante. Os seres humanos alteraram significativamente e estão alterando significativamente todos os sistemas da Terra – a atmosfera, os oceanos, os continentes e os ecossistemas –; toda a comunidade de vida na Terra.
Estamos vivendo tendências simultâneas inquietantes: o desaparecimento acelerado do gelo (gelo do Ártico, glaciares das montanhas e partes dos mantos de gelo da Groenlândia e da Antártida), oceanos mais quentes e ácidos, aumento do nível do mar, condições meteorológicas extremas (secas, inundações, temperaturas recordes) e incêndios florestais catastróficos. Tudo isto afeta cada vez mais a vida marinha, de água doce e terrestre.
Desde finais do inverno, o Canadá, meu país de origem, tem vivido a sua pior temporada de incêndios florestais e, em finais de junho e inícios de julho, a névoa tóxica resultante cobriu grandes cidades da América do Norte e, inclusive, chegou a Portugal. Em meados de 2023, três continentes se viram submetidos a um calor extremo. Sem falar que, há poucas semanas, as chamas que devastaram Maui e a Ilha Grande no Havaí – a vegetação seca combinada com condições de seca criaram o ambiente perfeito para os incêndios florestais, após rapidamente se espalharem pelos fortes ventos do furacão Dora – já constituem o pior desastre natural do Estado, desde 1960.
O mundo dos anos 2020 já abandonou a zona climática segura do Holoceno, as condições climáticas globais em que a agricultura e as civilizações se desenvolveram, nos últimos 11.700 anos, desde a última Era do Gelo. Agora, os recordes de calor são quebrados todos os anos, inclusive, mês a mês.
A atividade humana que provoca emissões de gases do efeito estufa é a causa do calor excessivo. Mais de 90 nações já assinaram os Acordos de Paris e estabeleceram metas voluntárias para atingir emissões líquidas zero até meados do século. Contudo, não está sendo feito o suficiente para colocar em prática estes compromissos e os resultados não estão à altura da meta. Então, tudo indica que as coisas vão piorar. Estamos nos aproximando perigosamente do limite de 1,5 a 2ºC fixados pelos acordos, e os perigosos pontos de inflexão que se avizinham, nas próximas décadas, estão cada vez mais pertos.
Na Laudato Si’, o Papa Francisco repensa a doutrina da Igreja sobre a criação – sobre o ambiente natural que é o nosso berço único de vida orgânica – ao ressaltar o fato esquecido de que os seres humanos são parte integrante do sistema terrestre e agora estão moldando coletivamente seu futuro. Convida o mundo a estabelecer, urgentemente, um diálogo sincero: “Como construiremos o futuro do planeta?” E nos fornece os elementos necessários para refletir teologicamente sobre a ecologia integral.
A ecologia integral interliga a ampla gama de linguagens e categorias que nos conduzem à "essência do humano” (LS 11). Então, temos que descobrir de uma nova forma quem é o Anthropos, como parte integrante das ecologias dinâmicas do sistema Terra e como portador de um papel e responsabilidade colossais no Antropoceno. Na Laudato Si', o Santo Padre nos ajuda a pensar acerca de tudo isso de forma humana, espiritual e teológica.
O Evangelho nos chama a mudar nossa forma de viver, agir e rezar diante da combinação complexa e sem precedentes de múltiplas crises: a crise ecológica; a praga das posições extremas, as chamadas “guerras culturais”; as centenas de milhões de pessoas na miséria, cada vez mais forçadas a fugir de suas casas; e a nova era digital com muitas promessas e muitos percalços. São necessários novos significados e novos valores e, sobretudo, exemplos vivos de pessoas, comunidades e instituições que encarnem uma “nova humanidade”.
A humanidade precisa reorientar o seu rumo (LS 202); mais profundamente, temos que nos converter. A mudança necessária envolve muito mais do que simples soluções políticas ou tecnológicas. O clima, juntamente com a atmosfera, a terra e as águas de nosso planeta, constituem um bem comum, que pertence a todos e está destinado a todos. Devemos estar mais conscientes da nossa origem comum, da nossa pertença mútua, de nosso futuro compartilhado. Desta tomada de consciência devem surgir novas convicções, novos vínculos e apegos, novas formas de vida (LS 202).
O terceiro capítulo da Laudato Si' rastreia as “raízes humanas” da crise ecológica até uma forma particular de perceber e se relacionar com o mundo natural que se estendeu desde a Revolução Industrial e se tornou a mentalidade ou visão de mundo predominante na modernidade. Seu paradigma tecnocrático, seu modelo de desenvolvimento descontrolado, tende a dominar a vida econômica, política e cultural, e confronta os seres humanos com o mundo natural e entre si. Promove um mito da modernidade baseado “na razão instrumental (individualismo, progresso indefinido, competição, consumismo, mercado sem regras)” (LS 210).
Em diversos campos, a atividade científica demonstra que a rede é o modelo mais eficaz para descrever a realidade. Isto nos impulsiona a prestar cada vez mais atenção às interligações entre os diferentes elementos que constituem o mundo, dos quais depende o delicado equilíbrio que torna possível a nossa sobrevivência e a de todas as espécies vivas. Este modelo é inspirado na Laudato Si’, que ao mesmo tempo coloca o ser humano na rede interligada da realidade e afirma o insubstituível papel humano no cuidado da casa comum.
Além disso, se realmente estamos preocupados em desenvolver uma ecologia capaz de curar tudo o que destruímos, então, nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser deixados de lado (LS 63), incluindo as religiões e as riquezas culturais e espirituais dos povos muito diversos (LS 34). Neste espírito, agradecemos às comunidades originárias do mundo por seus esforços corajosos em proteger a Terra (LS 146).
“Os jovens têm uma nova sensibilidade ecológica e um espírito generoso, e alguns deles lutam admiravelmente em defesa do meio ambiente” (LS 209). Não surpreende que “reivindiquem uma mudança. Eles se questionam como é possível que se pretenda construir um futuro melhor sem pensar na crise ambiental e nos sofrimentos dos excluídos” (LS 13).
Em resumo, a “urgência e a beleza do desafio que temos diante de nós” nos impulsionam a empreender um novo “itinerário ético e espiritual”, no qual “os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível” desempenham um papel absolutamente essencial (LS 15) e no qual recalibramos a relação entre o ser humano e o meio ambiente.
Para alcançar emissões líquidas zero que permitam esfriar o nosso planeta sobreaquecido, são necessárias transformações em todos os sistemas globais: em como as nossas economias são alimentadas, em como as pessoas e mercadorias são transportadas, em como se alimenta uma população cada vez mais numerosa e envelhecida. Na transição ecológica para a sustentabilidade, são necessárias mudanças e ações importantes e significativas. Por exemplo:
• Alcançar as emissões líquidas zero até meados do século envolve uma transição séria e rápida de uma economia baseada em combustíveis fósseis a uma economia de energias limpas, em todo o planeta.
• Devemos parar o desmatamento, especialmente em bacias hidrográficas de importância mundial como o Amazonas e o Congo. É preciso plantar árvores para favorecer o reverdecimento da Terra e o sequestro de carbono; e proteger as costas oceânicas da erosão por meio da plantação de mangues.
• Para proteger a biodiversidade e os habitats e deter a degradação dos ecossistemas, muitos países exigem a proteção de 30% dos ambientes terrestres e marinhos até 2030. O objetivo 30x30 é considerado o mínimo.
• As cidades, que já abrigam mais de 57% da população mundial, ocupam 3% do território, mas são responsáveis pela maior parte do consumo de energia e das emissões de gases do efeito estufa. As cidades mais amigáveis para se viver exigem mais transporte público, mais caminhadas e um uso mais comum de bicicletas.
• O transporte exige uma rápida mudança para um número muito menor de automóveis particulares e para combustíveis mais ecológicos para todos os meios de transporte.
• A agricultura precisa se regenerar para produzir alimentos nutritivos que restaurem a saúde do solo, sequestrem carbono e protejam o clima, os recursos hídricos e a biodiversidade.
• No campo da economia e das finanças, a busca frenética pelos lucros, que ignora o bem comum na natureza e na sociedade, deve dar lugar a uma economia e finanças responsáveis. “Os desertos externos se multiplicam no mundo, porque os desertos interiores se tornaram muito amplos” (LS 217, citando Bento XVI).
• “A educação será ineficaz e seus esforços serão estéreis se também não buscar difundir um novo paradigma sobre o ser humano, a vida, a sociedade e a relação com a natureza” (LS 215). Tanto os professores quanto os estudantes envolvidos na educação ambiental devem ser capazes de ajudar a si próprios e a todos “a crescer na solidariedade, na responsabilidade e no cuidado baseado na compaixão” (LS 210) dentro da grande rede da vida.
“A existência humana se baseia em três relações fundamentais estreitamente interligadas: a relação com Deus, com o próximo e com a terra” (LS 66). “Tudo está relacionado e todos os seres humanos estão juntos como irmãos e irmãs em uma maravilhosa peregrinação, entrelaçados pelo amor que Deus tem por cada uma de suas criaturas” (LS 92). A ecologia integral busca “recuperar os diferentes níveis de equilíbrio ecológico: o interno consigo mesmo, o solidário com os outros, o natural com todos os seres vivos, o espiritual com Deus” (LS 210). Cada um de nós, independentemente de nossos interesses e capacidades, nosso lugar e nossas oportunidades, tem um papel a desempenhar.
Religiosos ou não, todos concordam que a terra é uma herança comum, cujos frutos estão destinados a beneficiar todos, tanto hoje como amanhã. Para os crentes, isto se torna uma questão de fidelidade ao criador, pois Deus criou o mundo para todos. Portanto, “não está de acordo com o desígnio de Deus usar este dom de tal forma que os seus benefícios favoreçam apenas alguns. Isto questiona seriamente os hábitos injustos de uma parte da humanidade” (LS 93). “Por conseguinte, qualquer abordagem ecológica deve incorporar uma perspectiva social que leve em conta os direitos fundamentais dos mais desfavorecidos” (LS 93).
Assim como outras tradições, nossa “grande riqueza da espiritualidade cristã, gerada por vinte séculos de experiências pessoais e comunitárias, oferece uma bela contribuição à tentativa de renovar a humanidade” (LS 216). Mais do que ideias, “o que o Evangelho nos ensina tem consequências em nossa forma de pensar, sentir e viver” e pode gerar “motivações que surgem da espiritualidade para alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo” (LS 216).
A ecologia integral exige trabalho; de fato, defende o valor do trabalho (LS 124). Contudo, isso não significa se tornar freneticamente hiperativo. Também precisamos contemplar o criador que vive entre nós e nos rodeia; examinar honestamente nossos compromissos e estilo de vida; e recuperar a harmonia serena com a criação (LS 225).“Estamos falando de uma atitude de coração, que vivencia tudo com serena atenção, que sabe estar plenamente presente [...] e que se entrega a cada momento comodom divino que deve ser vivido plenamente. Jesus nos ensinava esta atitude quando nos convidava a olhar os lírios do campo e as aves do céu (LS 226). Devemos imitar Santa Teresa de Lisieux, cujos “gestos cotidianos [...] rompem com a lógica da violência, da exploração, do egoísmo” (LS 230).
Convido vocês a considerarem as minhas palavras como mais um passo em seu caminho no cuidado de nossa casa comum. Leiam o quarto capítulo da Laudato Si', intitulado “Ecologia Integral”, no qual o Papa Francisco aborda a ecologia ambiental, econômica e social; a ecologia cultural; a ecologia da vida cotidiana; o princípio do bem comum; e a justiça através das gerações.
E podemos aguardar mais orientações do Santo Padre. Em 21 de agosto de 2023, disse que estava escrevendo uma segunda parte da Laudato Si’ para atualizá-la de acordo com os “problemas atuais”. Poderíamos nos perguntar: Que questões surgiram, hoje, como significativamente mais perigosas e urgentes do que sugere o seu tratamento na encíclica de 2015? Qual é o nosso papel em cada um deles? O que podemos e devemos fazer a respeito?
Independentemente da atualização da encíclica, nossa obrigação para com o futuro é incontestável: “Nunca devemos esquecer que as gerações jovens têm o direito de receber de nós um mundo belo e habitável, e que isso nos traz sérios deveres para com a criação que recebemos das mãos generosas de Deus”.
Olhando oito anos para trás, desde que lemos a Laudato Si’ pela primeira vez, podemos também nos perguntar: Qual foi o impacto da encíclica? Por quais mudanças ou avanços devemos agradecer? Que áreas não alcançou? Como podemos ajudar para que as duas partes da Laudato Si' cheguem mais longe e de modo mais profundo?
O Papa Francisco aponta Francisco de Assis como o nosso melhor guia na consideração de todas estas questões: “São Francisco é o exemplo por excelência do cuidado com o que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e em uma maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nesse se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o compromisso com a sociedade e a paz interior” (LS 10).
Este artigo é uma adaptação de um discurso proferido na IV Conferência Internacional sobre o Cuidado da Criação, com o tema Compromisso dos jovens com a ecologia integral: estilos de vida para uma nova humanidade. A conferência foi coorganizada pela Fundação João Paulo II para a Juventude (no Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida) e o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, e ocorreu no campus de Lisboa da Universidade Católica de Portugal, em 31-07-2023.
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Ecologia integral para uma nova humanidade. Artigo do cardeal Michael Czerny - Instituto Humanitas Unisinos - IHU