04 Setembro 2019
Não são necessárias provas. A comunidade científica concorda. O último desaparecimento global e massivo de biodiversidade não foi o do Cretáceo e os dinossauros, estamos imersos nele, hoje em dia. Bem-vindos à sexta extinção.
A reportagem é de Pablo Rivas, publicada por El Salto, 29-08-2019. A tradução é do Cepat.
Ocorreu há 45.000 anos, em um tempo em que a Terra estava dividida em vários sistemas ecológicos independentes, cada um com uma fauna e flora particular. Não está claro como aconteceu, e os estudiosos têm sérios problemas em explicá-lo: salvar braços de mar de mais de 100 km era uma tarefa titânica para os humanos de então.
Aquela façanha foi, na opinião do historiador Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: uma breve história da humanidade, “um dos acontecimentos mais importantes da história, ao menos tão importante como a viagem de Colombo à América ou a expedição de Apolo 11 à Lua”. Era a primeira vez que um grande mamífero terrestre – o ser humano – abandonava o sistema ecológico afro-asiático. O homo sapiens havia chegado à Austrália, um lugar em que, assim que chegou, já estava no primeiro elo da cadeia alimentar. Desde então, tornar-se-ia, nas palavras de Noah Harari, a “espécie mais mortífera nos anais do planeta Terra”.
O nível do mar subiu desde aqueles tempos, submergindo a costa indonésia – desde onde, supostamente, partiram aqueles humanos – sob 100 metros de água, o que complica encontrar provas que esclareçam o mistério de como o homo sapiens pôde colonizar o continente australiano. O que, sim, sabemos é o que aconteceu após a chegada deste particular hominídeo, pouco peludo, a esta antiga terra incógnita: 23 das 24 espécies animais de mais de 50 kg, além de um bom número de outras de menor tamanho, desapareceram para sempre, em poucos milênios, a transformação mais importante do ecossistema australiano em milhões de anos.
Esta história se repetiu muitas mais vezes. Em cada ilha, em cada novo continente. No novo mundo, a carnificina foi maior. “Quando o homem chega à América, vemos que desaparecem, em pouco tempo, os grandes mamíferos”, destaca o catedrático do departamento de Estratigrafia, Paleontologia e Geociências Marinhas da Universidade de Barcelona, Jordi Martinelli. Após cruzar um estreito de Bering, que ainda não era estreito devido ao nível do mar, o homo sapiens acabou, em apenas 2.000 anos, com 34 de 47 gêneros de grandes mamíferos norte-americanos e com 50 dos 60 sul-americanos, segundo as últimas estimativas: mamutes, felinos dente-de-sabre, camelos e cavalos americanos incluídos.
Foram os efeitos da primeira grande onda de extinção causada pelo ser humano, ligada à expansão dos caçadores-coletores, tal como explica Noah Harari. Depois, viriam mais duas: uma com a revolução agrícola que transformou o modo de vida do homo sapiens de caçador-coletor a produtor, através da extensão da agricultura e a pecuária, e outra em que estamos imersos atualmente, causada pela atividade industrial.
A união dessas três ondas se chama extinção massiva do Holoceno (o período geológico atual, que começou há 11.700 anos), um termo espinhoso, já que grande parte da comunidade científica sustenta que mudamos de era geológica. Dessa perspectiva, estaríamos imersos no Antropoceno, uma época que se deflagraria tanto com a aparição da agricultura, como com a era industrial – segundo a fonte consultada – e que se caracteriza pelo fato de que o homo sapiens transformou o planeta.
Debates à parte – no Holoceno também não se situam os inícios desta extinção massiva, que começou aproximadamente no 50.000 a. C. com os caçadores-coletores na Eurásia e Oceania –, outro termo irrompeu com força nos últimos anos: a sexta extinção.
“O termo não é descabido”, aponta Ignacio de la Riva, pesquisador do Museu Nacional de Ciências Naturais (MNCN), “indubitavelmente está ocorrendo”. É classificada como sexta, após as cinco grandes extinções massivas conhecidas da história por causa de eventos geológicos, sejam glaciações, erupções vulcânicas massivas ou o impacto de grandes meteoritos. Todas acabaram ao menos com três quartos das espécies, e a maioria tiveram uma duração de centenas de milhares de anos. Esta é diferente. “A velocidade em que está acontecendo é enorme”, ressalta o pesquisador adscrito ao Conselho Superior de Pesquisas Científicas. “A história da humanidade, e sobretudo a etapa industrial, é um piscar de olhos na história geológica e está produzindo um desaparecimento massivo de espécies, especialmente há dois ou três séculos, e o fenômeno segue a toda velocidade”.
O relatório Planeta Vivo 2016. Risco e resiliência no Antropoceno, realizado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF), que analisa 14.152 populações de 3.706 espécies, afirma que a abundância de populações de vertebrados diminuiu em média 58%, entre 1970 e 2012, número que poderia chegar a 67%, ao final desta década.
No caso dos mamíferos, outro relatório publicado em maio, “Aniquilação biológica através da sexta extinção em curso, apontada pelas perdas e declínio da população de vertebrados”, assinado por pesquisadores do Instituto de Ecologia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e do departamento de Biologia da Universidade de Stanford, aponta que, dos 177 mamíferos estudados, mais de 40% sofreram uma perda de população superior aos 80%, desde inícios do século XX. Um dano brutal à biodiversidade que continua tendo como causa direta o homo sapiens.
Além da causa e a extraordinária rapidez, a sexta extinção tem outra clara diferença em relação às anteriores. Apesar de que no Holoceno foram extintos alguns grandes grupos, “a extinção de espécies em seu conjunto é uma mostra muito pobre do que está ocorrendo, o importante hoje são as extinções locais, o desaparecimento de populações de espécies de uma maneira crescente, em muitíssimos lugares”, destaca, por sua parte, José Luis Tellería, catedrático do Grupo de Pesquisa Biologia Evolutiva e da Conservação, da Universidade Complutense de Madri.
Tal como aponta, “o desaparecimento de uma espécie é um fato dificílimo, quase sempre fica algum exemplar em algum lugar, mesmo que tenha desaparecido em estado selvagem”. Sem tirar importância à extinção de espécies, hoje em dia, não há, em geral, uma extinção total, mas, sim, uma perda de população desorbitada.
Segundo o estudo da UNAM e da Universidade de Stanford, quase a metade dos mamíferos perdeu, no período compreendido entre 1900 e 2015, mais de 80% de sua faixa geográfica. “A perda de habitat continua sendo hoje o principal dos problemas”, destaca Tellería, “e já se estima que se tornará mais dramática em combinação com a mudança climática”.
O relatório “Planeta Vivo 2016” destaca que, “desde 1900, desapareceram 129 milhões de hectares de mata, uma área maior que a África do Sul”, um número que por si só ocultaria a transformação das matas pela ação humana. Segundo WWF, em termos brutos, no mesmo período desapareceram 239 milhões de hectares de matas nativas.
A destruição de habitat é particularmente daninha em zonas tropicais. Nestas áreas, “muitas espécies têm distribuições pequenas, assim, um impacto medianamente local pode acabar com uma espécie inteira”, afirma De la Riva. E isto não impacta apenas essa espécie. “Possui reações em cascata, em todo o ecossistema”. É um processo que é possível ver hoje, entre outras regiões, nas matas da Indonésia e Malásia, onde grandes plantações de palma destruíram grande parte da mata local.
Junto à diminuição das áreas geográficas, soma-se sua degradação. Segundo o relatório do WWF, “cerca de 30% da superfície terrestre sofreu uma degradação considerável”, fruto de atividades como a agricultura insustentável, a extração de água doce, a derrubada de matas, o desenvolvimento residencial e a mineração.
A poluição contribui, além disso, tanto tornando o ambiente um meio insustentável para a sobrevivência de algumas espécies, como é o caso dos vazamentos de petróleo ou substâncias tóxicas, como alterando a disponibilidade de alimento e a reprodução da vida.
Soma-se ao coquetel a introdução de espécies em ecossistemas que não são os próprios. “Isto foi catastrófico”, expõe De la Riva. “O número de espécies que se extinguiram em ilhas, por levar outras espécies, é imenso, ainda que seja muito difícil falar em números”.
A especialidade do pesquisador é o estudo dos anfíbios, precisamente a classe de vertebrado mais ameaçada, com 3.700 espécies classificadas como em risco pela União Internacional para a Conservação da Natureza. “Isto acontece por muitas razões - os ecossistemas de água doce são os mais ameaçados -, mas a mais dramática é o caso de um fungo que extinguiu, provavelmente, centenas de espécies”. Trata-se do Batrachochytrium dendrobatidis – mais conhecido como Bd -, um organismo que se alimenta da queratina da pele e que já se encontra por todo o globo. “Alguma linhagem variante mais patogênica do fungo saiu de algum lugar graças à atividade humana”. Só na cordilheira dos Andes, calcula-se que o Bd extinguiu uma centena de espécies, em apenas três décadas.
Como se fosse pouco, a mudança climática vem reforçar a sexta extinção, somando-se com novas desordens e ampliando os efeitos do restante das causas. E poderá ser pior: “Em um cenário de aquecimento grave, digamos de 2 a 4 graus a mais até o fim do século”, aponta o biólogo do MNCN, “será impossível para muitas espécies se adaptar, isto vai muito rápido”.
Um meio ficou durante muito tempo à margem deste processo: os oceanos. Enquanto o homo sapiens praticava seu particular massacre ao chegar em novas terras, o mar ficava à margem, utilizado só para a pesca artesanal durante milênios, com poucas consequências. Contudo, isso acabou.
“O mar deixou de ser um santuário e está cada vez mais afetado pela sobre-exploração de espécies e as artes de pesca destrutivas”, ressalta Celia Ojeda, responsável por Oceanos do Greenpeace Espanha. “No Mediterrâneo, 90% das espécies pesqueiras estão sobre-exploradas, e isto afeta outras que se veem atingidas pelos impactos da perda de espécies”. Mais uma vez, a diabólica cadeia que rompe o equilíbrio: na natureza tudo está relacionado.
“Em mares fechados, como é o Mediterrâneo, as perspectivas são sombrias”, destaca Martinell, por sua parte, acrescentando que “com a expansão industrial brutal poluindo os rios que acabam no mar, estamos enchendo-o de chumbo e mercúrio, além (dos efeitos) das explorações offshore de petróleo no mar”. Aos danos da pesca e da poluição, acrescenta-se (e multiplica) a mudança climática, o aumento da temperatura da água e a acidificação – responsáveis pela extinção dos corais, entre outros organismos – e a diminuição ou aumento da salinidade, segundo a região.
E como toque final industrial, os plásticos. “Hoje em dia, têm se degradado e convertido em microplásticos, e estão aparecendo nos estômagos dos peixes, inclusive em suas larvas”, denuncia Ojeda. Um problema que não afeta pequenas áreas, mas a autênticas ilhas de centenas de quilômetros quadrados. “Foi uma surpresa traumática descobrir que havia essas ilhas flutuantes de plástico gigantescas. São como uma sopa de pedacinhos minúsculos de microplástico que tem um efeito descomunal em toda a cadeia, não há organismo marinho que seja examinado e não contenha plásticos”, afirma De la Riva.
O resultado de tudo isto: um destino incerto para milhares de espécies, uma diminuição das populações marinhas de 36% (segundo WWF) e 31% das reservas mundiais de peixes submetidas à sobre-exploração (segundo dados da FAO). Mais o que ainda não sabemos: “O mar é um grande desconhecido, além de um grande desaguadouro. Não é tão fácil visualizar o que está acontecendo nele. É um lugar onde pode ser que esteja sendo organizado o próximo salto relacionado à mudança climática, um lugar espinhoso, que há tempo vem acumulando muitas agressões. Veremos onde acaba tudo isto”, destaca Tellería.
Contudo, diante desta perspectiva, há espaço para a esperança. “Há uma solução, é muito simples. Os problemas que hoje em dia a natureza e o homem possuem tem a ver com o mau uso da tecnologia e do potencial modificador que do ser humano, que hoje em dia não conhece limites”, destaca Tellería. Em sua opinião, “o acúmulo de cultura é o que tornou o homem poderoso, e essa evolução cultural deveria levá-lo a assumir valores conservacionistas e outra maneira de se relacionar com a natureza”.
Na mesma linha, Martinell ressalta: “O ser humano, se quer, pode deixar os rios e os mares limpos. Que seja caro é relativo, o preço nós é que colocamos, e o ser humano é capaz de se ajustar”.
As ações a serem realizadas para deter a sexta extinção são evidentes, ainda que “o esforço seria gigantesco”, como destaca De la Riva, “Podemos evitar que a mudança climática seja pior do que será, mesmo que o semáforo já tenha ficado vermelho para nós e a multa certamente virá. E seria possível fazer muito mais, como por exemplo evitar o tráfico de espécies”.
É claro, a adoção de valores conservacionistas leva à recuperação de áreas naturais e a criação de santuários como são as reservas marinhas, zonas que além disso funcionam, como explica Ojeda, “como um parque nacional: protegemos uma zona e se torna um hotspot de biodiversidade que a exporta para outras partes”.
A responsável por Oceanos do Greenpeace acrescenta que, além disso, “é possível tomar medidas para que se diminua o número de espécies que estão sofrendo esta sexta extinção e acabar com a pesca predatória mediante a tomada de medidas por parte dos governos”.
Paralisar imediatamente a produção de plásticos de apenas um uso, além de reciclar e gerir adequadamente os que o homo sapiens necessitar, é algo ressaltado tanto por Ojeda como por De la Riva. E, é claro, a luta contra a mudança climática, além do excesso de consumo de carne e peixe, é essencial.
Atualmente, “como sempre, prevalecem os interesses econômicos, mas chegará um momento em que será o peixe que morderá o rabo. Ou você faz algo ou tudo recai sobre você”, sustenta o paleontólogo Martinell. Cederá o homo sapiens ou continuará sendo, como disse Noah Harari, um assassino ecológico em série?
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Homo sapiens, assassino ecológico em série - Instituto Humanitas Unisinos - IHU