03 Agosto 2023
"Vida-mercadoria alastrou a sensação de impotência, reduzindo democracia a uma zona cinzenta. Esquerda trocou a busca de saídas pela contenção política. Deveria 'sujar-se' no mal-estar e na decepção: saída do inferno está nas chamas mais altas", escrevem Amador Fernandez-Savater e Ernesto Garcia Lopez, em artigo publicado por CTXT e reproduzido por Outras Palavras em 28-07-2023. Tradução de Rôney Rodrigues.
Has cerrado la puerta de nuevo
para huir de la oscuridad
pero en tu armario espera la noche. (Gloria Anzaldúa)
O fato fundamental para entender nosso tempo, a partir do qual necessariamente temos que começar a pensar qualquer coisa politicamente, é a coincidência entre a vida e o mercado. O que significa isto?
Muito simples: a vida, tal como surge espontaneamente, tal como é vivida diariamente, tal como é imediatamente percebida e desejada, é experimentada como mercado.
O mercado, em sua aliança (ou melhor, liga) com a tecnologia, aparece hoje como a principal força configuradora da experiência. Nos locomovemos de Uber, viajamos com o Airbnb, flertamos no Tinder, provemos nossa alimentação na Mercadona [rede espanhola de supermercados], nos informamos graças ao Google, buscamos entretenimento na Netflix.
E cada um de nós reproduz o mercado simplesmente vivendo, tomando a si mesmo como um capital a ser gerido: capital humano, capital-imagem, capital-saúde, capital-afeto, capital-capacidades, capital-erótico, capital-projeto, capital-contato.
O que essa adequação à vida-mercado significa politicamente? Que a ideologia está nas coisas, está no ar. É inerente à própria vida, ao próprio fato de viver. A noção de “luta ideológica” deve então ser completamente redefinida.
Não se trata de ideias: as pessoas de esquerda se diferenciam das pessoas de direita em suas construções mentais, mas suas vidas são atravessadas pela mesma realidade de mercado. Hoje, as vidas, como alguém disse, são todas de direita.
Não se trata de crítica: enquanto a realidade material tornou-se um mercado, a crítica tornou-se puramente ideal. Uma opinião sobre o mundo, uma preferência, uma avaliação subjetiva. Facilmente descartáveis pelos realistas de mercado como “utopias” ou “quimeras” apartadas da realidade.
Não se trata de comunicação: a vida-mercado é o meio de comunicação mais poderoso. Ela é emitida constantemente, de qualquer lugar e de qualquer um dos nossos menores gestos. A presidente [da Comunidade de Madrid] Ayuso sabe disso perfeitamente: enquanto os outros candidatos bombardeavam nossas caixas de correio com cartas e programas, ela se limitava a imprimir a palavra “liberdade” nas fotos em que veste agasalho. A própria realidade (em cada bar e varanda) era a sua melhor publicidade.
Pode-se argumentar que a liberdade da vida-mercado é cada vez mais cara e não está ao alcance de todos. Certamente, mas desejá-la é grátis e hoje domina o imaginário das expectativas de vida. É a promessa de felicidade mais forte e mais fecunda.
Essa vida-mercado produz uma sombra, um avesso feito de desconfortos tanto “objetivos” (precariedade e desigualdade) quanto “subjetivos” (sofrimento psíquico).
Durante os últimos quinze anos as desigualdades e as brechas sociais vem, cada vez mais, aumentando. Corpos e territórios vulneráveis mantidos ao longo do tempo, cercados por uma incerteza crescente: a Grande Recessão, a pandemia, a crise de preços como resultado da guerra na Ucrânia, as ameaças climáticas…
Os dados são reveladores. A Espanha é uma fábrica de desigualdade em momentos de dificuldade econômica e, paradoxalmente, em períodos de prosperidade, mostra-se incapaz de reverter essa tendência com a mesma intensidade. Soma-se a isso o fato de que o fantástico elevador social (chamado por alguns de “represa da meritocracia”), tão típico dos Estados de bem-estar social europeus, há muito tempo mostra sinais óbvios de fraqueza.
São muita as razões que explicam essa sombra na Espanha, mas se tivéssemos que resumir de uma forma um tanto grosseira, diríamos que a própria estrutura produtiva do país, um mercado de trabalho repleto de precariedade e baixos salários, um sistema fiscal pouco progressivo e esburacado na tributação da riqueza, um sistema de proteção social anacrônico, um conflito habitacional endêmico que sufoca grande parte da população que vive de aluguel ou tem hipotecas, bem como um corte generalizado na educação e saúde públicas, têm vindo a cristalizar em alguns segmentos sociais um sentimento da vida eternamente em crise. Uma “somateca” (como diria Paul B. Preciado) caracterizada pelo contínuo sufocamento existencial. E como qualquer experiência objetiva, tem seu correlato subjetivo no aumento dos mal-estares psíquicos. Basta conhecer os dados da saúde mental para perceber a magnitude do problema.
Poderíamos chamar essa sombra da vida-mercado de zona cinzenta. Uma experiência do mundo cheia de medo, desconfiança e inquietação, que vai além do relato, além do efeito hipnótico atribuível ao aparato ideológico dos meios de comunicação.
O que a esquerda pode fazer? No melhor dos casos, quando não se limita a gerir a vida-mercado, a esquerda que trabalha nas instituições, no governo, na sempre difícil gestão da esfera pública, procura coibir os excessos neoliberais, redistribuir riquezas e “conter” as infinitas e dolorosas feridas que se abrem no corpo social. Conter, ou seja, desacelerar os impactos e externalidades mais agressivos da agenda neoliberal por meio da implantação de políticas públicas neokeynesianas (“bens pequenos”, chama Santiago Alba Rico).
Nos últimos anos esta “contenção” tomou forma através do chamado “Escudo Social”. Há a Regulação Temporária de Emprego (ERTE), o Rendimento Vital Mínimo (IMV), a subida do SMI [salário mínimo espanhol], o reajuste das pensões, controle do preço do gás, o combate à pobreza energética, o controle dos preços dos aluguéis, as medidas fiscais temporárias em matéria de tributação da riqueza (como os impostos sobre os lucros extraordinários das empresas de energia, bancos e grandes fortunas), a extensão de subsídios ao consumo e à produção, a defesa dos direitos das mulheres e das pessoas LGTBQ+, etc.
Não é pouca coisa, claro. Não escapa a ninguém que o Estado, como dispositivo de gestão, é uma ferramenta de primeira ordem e, justamente por isso, as direitas luta com afinco por ele. Assistimos à mobilização do maior pacote de gastos sociais desde a consolidação da democracia. Uma “contenção” que permitiu, entre outros méritos, não lançar boa parte da população espanhola ao abismo (como aconteceu em 2010-2014).
Não é que dizer que antes das próximas eleições de 23 de junho, o 23J [o texto foi escrito antes desta data], salvar este “poder de contenção” é uma obrigação ética e cívica, e os que subscrevem este artigo não hesitará em apoiar as candidaturas progressistas que o façam.
Mas há vida além do 23J. Precisamos ampliar nosso olhar porque o dilema é muito mais profundo. Está no fato de que a contenção acaba por não conter, não modifica as estruturas latentes da desigualdade. Não reverte a insatisfação subjetiva de amplos setores da população, seus desconfortos psíquicos, a extensão da medo, a guerra dos penúltimos contra os últimos, a sensação de uma permanente “vida na precariedade”.
A contenção não acaba com a reconexão com a política, a democracia e as instituições, aquelas geografias sociais mais atingidas pelas crises (basta dar uma olhada nos dados de participação eleitoral nos bairros com maior pobreza para perceber). A contenção não é capaz, por si só, de retomar a iniciativa na produção do mundo, hoje nas mãos da vida-mercado.
A esquerda, na medida em que se apresenta como uma mera barragem de contenção, está, portanto, fadada à decepção, à decepcionar. É hoje, fundamentalmente, uma experiência de impotência. Tsipras decepciona, Boric decepciona, a Nova Política em Espanha decepciona… A moderação, como gestão do quadro autorizado do possível, desilude e costuma ser derrotada eleitoralmente.
A decepção é a principal característica da zona cinzenta. Decepção diante da democracia, da política e da esquerda. Decepção diante de retóricas e gestos que não se traduzem em fatos e políticas efetivas. Decepção diante da superioridade moral (diante do sexismo, racismo ou classismo) que finalmente se revela como hipocrisia de classe média. Decepção com a falta de audácia ou coragem política.
Podemos discernir pelo menos três tendências nesta zona cinzenta de decepção: direitização, a desafetos e deserção.
A direitização é a decepção elaborada como ressentimento vitimista. É o mal-estar que busca culpados na lógica do bode expiatório: as trans, ecologistas, feministas, migrantes, etc.
A promessa do paraíso na terra por meio do consumo da vida-mercado quebrou consideravelmente desde 2008: crise econômica, pandemia, guerra, emergência climática. A decepção diante da promessa quebrada (sustentada pelos governos de esquerda e direita) se converte em ressentimento e agressão redirecionada contra os “inimigos internos” culpados pela situação. O mal-estar é delegado a fortes poderes que prometem a restauração das ilusões quebradas, o retorno à normalidade.
O desafeto é a decepção elaborada como abstenção passiva. A decepção é o gesto de quem não consegue fazer algo criativo com o seu mal-estar, mas não o entrega aos poderes fortes que prometem restaurar a ordem. E que simplesmente se distancia: retira-se, sai, desfilia-se.
São, por exemplo, os milhões de pessoas que, eleição após eleição, face a todos os apelos à participação e responsabilidade, não votam e assim manifestam o seu radical descompromisso com um sistema político-eleitoral em que não sentem que qualquer diferença significativa está em jogo para suas vidas. Um verdadeiro buraco negro no ideal de democracia do cidadão do qual quase nunca se fala, a não ser para detratá-lo.
A deserção é a decepção elaborada como um gesto ativo. São todas as formas de habitar criativamente ou politizar os mal-estares, de converter a interrupção da vida-mercado em grau de maior autonomia.
O fenômeno da Grande Demissão, os movimentos de decrescimento, os novos comunalismos, o desengajamento (mais ou menos coletivo, mais ou menos político) dos desejos e das expectativas que nos mantêm presos a um sistema gerador de ansiedade e precariedade, etc.
A zona cinzenta, em qualquer uma de suas três expressões, é um objeto voador não identificado para os radares à esquerda. A direitização é julgada moralmente, independentemente de ser um fenômeno dos corpos; o desafeto é considerado como déficit de participação, responsabilidade ou envolvimento; e a deserção não pode ser lida ou compreendida na grade da mobilização clássica.
A vida coincide com o mercado. A esquerda recua para políticas de contenção vindas de cima que mal conseguem conter os efeitos mais devastadores: a precariedade e o sofrimento psíquico. Abre-se uma zona cinzenta, um avesso da política, um espaço ambivalente de desilusão face às promessas da democracia. Neste magma pulsam pulsos de direitização, desafeto e deserção.
A zona cinzenta pode ser julgada simplesmente como uma ameaça à democracia, ou interpretada como contendo indicações úteis sobre o que não está funcionando, sobre seus limites, sobre seus tetos de vidro. Chamamos essa segunda opção de “política da impureza” e envolve colocar as mãos na lama da zona cinzenta, em busca de pistas e forças de transformação social. Disputar o mal-estar social.
Uma política de impureza passaria pelo desafio de inventar pautas e estratégias para além dos circuitos fechados de contenção e comunicação.
A contenção limita-se a remendar sem propor outra lógica, outro fazer, outro horizonte. Mas a vida-mercado finalmente atravessa todas as paradas e limites, explodindo todos os remendos. A política de contenção nem sequer é reformista, porque o reformismo em seu sentido sólido é o projeto de substituir, ao longo do tempo, um sistema por outro, um modelo por outro.
A comunicação se limita a falar a linguagem da vida-mercado, da sedução e do marketing. A divisão entre um emissor que propõe e um receptor que “identifica” ou “adere”, entre os sujeitos de enunciação e objetos do enunciado. A comunicação não é o campo neutro da batalha, mas a própria linguagem do inimigo.
Você pode experimentar outras políticas e outras linguagens, outros fazeres e outros dizeres? Sem dúvida não sem colocar as mãos na lama impura da zona cinzenta, onde mora a decepção com relação à democracia e à política, em meio a vidas dilaceradas pela precariedade e o sofrimento psíquico. Não tanto “abordar”, “seduzir” ou “convencer”, mas “estar impregnado de”, “dialogar com”, “pensar junto com”, em pé de igualdade.
Estamos envolvidos nesse círculo diabólico: a vida-mercado produz um mal-estar que a onda reacionária canaliza… para consolidar a própria vida-mercado! Somente interrogando a zona cinzenta da democracia podemos encontrar pistas para escapar dessa armadilha. A saída do inferno é onde as chamas são mais altas.
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Por que apostar na política da impureza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU