12 Julho 2023
"Por um lado, os 'Textos patrísticos' são dirigidos a um público mais vasto com traduções e comentários exemplares, às vezes até selecionando obras de nicho. Assim, se quisermos ficar em publicações recentes, aqui está o conhecido e grande orador João Crisóstomo com suas Homilias sobre a carta aos Filipenses, editada por Domenico Ciarlo (244 páginas), mas também um Carnéades, como o mercador egípcio alexandrino Cosme Indicopleustes, autor de uma curiosa Topografia cristã, organizada por Carlo dell'Osso e Gabriele Castiglia (438 páginas). Estamos no VI século e o autor se empenha em demonstrar a incompatibilidade da fé cristã com a concepção esférica do céu", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, publicado por Il Sole 24 Ore, 09-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Editoria e fé. O empenho humanístico com a pesquisa histórico-crítica de várias editoras oferece um olhar iluminador sobre a vida intelectual daqueles séculos.
Rerum memorandarum libri, escrita entre 1343 e 1345, no meio de sua vida.
Saber olhar para frente e para trás ao mesmo tempo: esse é o programa aparentemente paradoxal, mas decisivo para o verdadeiro saber, como o filósofo judeu Fílon de Alexandria já havia intuído quando no De somniis aplicava ao sábio o adjetivo grego methórios, aquele que está no cume entre duas encostas, colocando-se na linha de uma fronteira traçada entre territórios diversos.
Na sociedade tecnológica atual estamos sobretudo inclinados para a frente, para o futuro, livrando-nos dos fardos do passado. Não é à toa que se multiplicam os termos marcados pelo pós: pós-moderno, pós-cristão, pós-humanismo.
No entanto, estamos percebendo a pobreza dessa amputação que nos faz esquecer da nossa "potestade" da "mente" e do "gênio", para citar Dante (Inferno II, 9). Surpreendente é a afirmação de Steve Jobs, o fundador da Apple no já famoso discurso em Stanford em 12 de junho de 2005 com a celebração do “engenheiro renascentista” (o pensamento remetia a Leonardo da Vinci), aquele que soube "ligar os pontos", que separam passado e futuro: "Vocês não podem ligar os pontos olhando para frente, só podem fazer isso olhando para trás." Resumidamente, patres e posteri unidos na mesma sequência.
Esta longa introdução não é apenas para exaltar a certamente gloriosa cultura atrás de nós, aliás, em cujos ombros estamos, para usar a famosa imagem de Bernardo de Chartres, tão cara a Umberto Eco que havia discutido sobre sua correta paternidade. É também para celebrar o atual empenho humanístico de pesquisa histórico-crítica que talvez seja marginalizado, mas não por isso desanima ou se esgota. Dão bom testemunho disso algumas páginas no nosso suplemento quando aparecem nomes de grande prestígio como aqueles de Lina Bolzoni, Piero Boitani, Carlo Carena, Salvatore Settis e outros. Mas significativas nessa linha são sobretudo algumas coleções constantes em seguir o caminho elevado dos estudos filológicos.
Por enquanto, assinalaremos apenas algumas. Uma editora que entra nesse campo há tempo, seguindo múltiplas trajetórias, é certamente a Città Nuova. Indicamos apenas dois caminhos, com um aceno às últimas edições das relativas séries. Por um lado, os "Textos patrísticos" são dirigidos a um público mais vasto com traduções e comentários exemplares, às vezes até selecionando obras de nicho. Assim, se quisermos ficar em publicações recentes, aqui está o conhecido e grande orador João Crisóstomo com suas Homilias sobre a carta aos Filipenses, editada por Domenico Ciarlo (244 páginas), mas também um Carnéades, como o mercador egípcio alexandrino Cosme Indicopleustes, autor de uma curiosa Topografia cristã, organizada por Carlo dell'Osso e Gabriele Castiglia (438 páginas). Estamos no VI século e o autor se empenha em demonstrar a incompatibilidade da fé cristã com a concepção esférica do céu!
Por outro lado, além de séries patrísticas de alta qualidade crítica, Città Nuova também oferece uma série de estudos cristãos antigos, latinos médios e bizantinos, intitulada “Fundamentis novis” onde apareceu recentemente, de Anna Maria Fagnoni, Il corpus di Porcario di Lérins: attribuzione, tradizione, eredità (378 páginas). Trata-se de abade do mosteiro de Lérins, localizado em uma pequena ilha em frente de Cannes, antigo centro de cultura e espiritualidade em que se formavam as personalidades mais famosas da vida eclesial do Sul da França. Os vários escritos de Porcário (séc. V-VI), destinados precisamente à educação dos monges, tiveram um longo eco e ampla circulação também na Idade Média.
Il corpus di Porcario di Lérins: attribuzione, tradizione, eredità, de Anna Maria Fagnoni (Foto: Divulgação)
Passamos a outra série e a outra editora, as Paoline, com as “Letture cristiane del primo millennio". Com o número 64, acaba de sair La penitenza di un autore, questa volta celebre come Ambrogio di Milano (364 páginas). Chiara Somenzi traduz, acompanhado pelo texto em latim, introduz e conduz o leitor pela mão a páginas marcadas por um duplo registro: polêmico contra os novacianos, que eram moralistas rigoristas e inflexíveis, e parenético em relação aos fiéis que devem cultivar também a esperança do perdão por meio do caminho severo e ao mesmo tempo doce da penitência (se a tivesse trilhado também Judas, teria sido salvo, afirma Ambrósio).
La penitenza di un autore, de Ambrogio (Foto: Divulgação)
Ainda estamos em Milão para a última indicação. A Universidade Católica com a sua editora Vita e Pensiero prepara há anos uma série de “Studia patristica mediolanensia”, onde apareceram com seus ensaios estudiosos importantes como Pizzolato, Cacitti, Rizzi, Visonà e outros. Agora é uma pesquisadora, Francesca Minonne, que apresenta o papel da gramática na exegese cristã antiga com um estudo com o evocativo título Leggere per interpretare, interpretare per leggere (340 páginas). Estamos perante uma obra de grande precisão, dotada de um aparato de investigação comparativa sofisticado.
No palco estão figuras decisivas do cristianismo do século II-III, como Irineu, Tertuliano, Justino, Orígenes, Clemente de Alexandria que em seus ditados são lidos e interpretados em contraponto com a cultura pagã encarnada por Plínio, o Jovem, Aulo Gélio, Élio Aristides. Os dois lados dessa comparação são guiados pela referência comum à gramática tradicional clássica, codificada por Dionísio, o Trácio. Um olhar iluminador sobre a complexa vida intelectual do antigo cristianismo.
Leggere per interpretare, interpretare per leggere, de Francesca Minonne (Foto: Divulgação)
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Páginas eruditas sobre a antiguidade cristã. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU