12 Abril 2023
Escrituras sagradas. O egiptólogo Jan Assmann propõe uma releitura do livro da Bíblia e defende que a aliança de Moisés com Deus no Sinai é discriminatória em relação ao futuro e marca a transição da pré-história ao momento atual.
O comentário é de Piero Boitani, literato italiano e professor emérito de Literatura Comparada da Universidade de Roma La Sapienza. O artigo foi publicado em Il Sole 24 Ore, 09-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Do teu trono estrelado – invoca Moisés na obra que Rossini lhe dedicou –, Senhor, volte-se para nós. / Tenha misericórdia de seus filhos. / Tenha pena de seu povo”. Segue-o, sempre implorando por misericórdia, o coro dos filhos de Israel fugindo do Egito, perseguidos pelo Faraó com seu poderoso exército. E é o canto ainda mais intenso do Va pensiero de Verdi, também entoado por Israel cativo na Babilônia.
Mateus dá ao seu Evangelho um desenho que retoma aquele do Êxodo. Nos funerais cristãos dos primeiros tempos, os fiéis acompanham o falecido à sepultura cantando o Salmo 113 da Vulgata, In exitu Israel de Aegypto, recordando a passagem da alma individual do pecado à graça, da escravidão da vida mortal para a liberdade da glória eterna. Os espíritos que vêm para a ilha do Purgatório no “veleiro esguio e leve” guiado pelo anjo e empurrado sobre as águas pelas suas asas, cantam o mesmo Salmo no Purgatório de Dante.
Na Epístola a Cangrande, ele serve até mesmo de exemplo à quádrupla maneira de ler a Bíblia e a Divina Comédia, e a saída do Egito prenuncia a redenção de Cristo. No Alcorão, Moisés, o primeiro crente muçulmano, é o predecessor e modelo Maomé. Os Puritanos fogem da Europa e buscam a Terra Prometida no Novo Mundo, fundando ali cidades com o nome de Salem ou Nova Canaã. Os negros dos EUA cantam o ‘spiritual’ Go down, Moses: “Desce, Moisés, desce à terra do Egito, dize ao Faraó: Deixa o meu povo partir". Eles esperam a liberdade que obterão se conseguirem fugir da escravidão do sul.
E, além disso, como esquecer, entre tantos outros, o quadro de Turner Luz e cor - A manhã seguinte ao dilúvio - Moisés escreve o Livro do Gênesis, uma esfera radiante e brilhante com alguns densos nós de sombra? Ou o Moisés de Michelangelo, a estátua grande e poderosa com um rosto carrancudo que ditou a Freud, em 1913, O Moisés de Michelangelo e cuja sombra certamente deve ter voltado à sua mente quando escreveu O Homem Moisés e a religião monoteísta?
O Êxodo de Assmann contém nada menos que quarenta ilustrações, e alusões a todo o imaginário que o segundo Livro da Torá, o Livro dos Nomes ou Êxodo, gerou ao longo dos milênios até o Eleazar de Tournier: não menos importante a longa história que Thomas Mann, ainda tomado pela saga egípcia de José e seus irmãos (da qual o autor foi em parte curador e comentarista especializado), dedicou à A Lei. Tampouco é o primeiro livro que Assmann dedica a esse tema: o precedem, nesta mesma série pela Adelphi, Mosè l’egizio e La distinzione mosaica; pela il Mulino, Non avrai altro Dio, Dio e gli dei, Verso l’unico Dio; pela Einaudi La memoria culturale, com dois importantes capítulos entre Egito e Israel.
Egiptólogo, portanto – com uma paixão importante pela música, visto que escreveu sobre a Flauta mágica de Mozart, sobre a Missa solemnis de Beethoven, sobre Israel in Egypt de Händel e sobre o Moses und Aron de Schönberg – mas, na realidade, historiador da cultura e das religiões, Assmann aposta tudo em Moisés, o personagem, e no Êxodo (e o Deuteronômio) como uma narrativa dos eventos que antecederam a saída do povo hebraico do Egito.
Personagem e eventos envoltos em mistério. Para começar, quem é Moisés, um judeu que lidera seu povo e lhes dá a Lei, ou um egípcio que se rebela contra suas próprias autoridades?
Porque Deus tenta fazê-lo morrer depois de ter-lhe confiado, da sarça ardente, a missão de salvar Israel (Êxodo 4, 24)? Por que não o deixa entrar na Terra Prometida?
E qual é a relação entre Yahweh e Ekhnaton e, em geral, com as divindades supremas das culturas vizinhas (“não terás outro deus além de mim”)?
O que exatamente significa a Aliança entre Deus e Israel, o que é a Lei?
E finalmente: Moisés realmente é, como parecem indicar várias passagens do Êxodo e do Deuteronômio, o autor daqueles livros, ou até mesmo de todo o Pentateuco, como se acreditava nos tempos antigos?
Esodo. La rivoluzione del mondo antico, de Jan Assmann. Tradução de Ada Vigliani | Foto: divulgação / Editora Adelphi
Assmann responde a todas essas perguntas – exceto a última, para a qual se verá Jean-Pierre Sonnet, The Book within the Book (Brill Academic Pub) – com uma construção grandiosa, que parte da narração fenomenal do Livro para penetrar em seus núcleos míticos constituintes como egiptólogo “que atua no campo das ciências culturais”. Gradualmente, a partir do tema e da estrutura, avança para o contexto histórico, para a memória que leva à constituição do texto.
Finalmente, entre no próprio Êxodo, com uma seção dedicada ao nascimento e educação de Moisés, e depois uma parada, longa e fascinante, na sarça ardente, com um breve desvio para o Moses und Aron de Schönberg. A revelação do Nome, eheyeh asher eheyeh, Eu sou O que sou, é um jogo de palavras com YHWH, e na realidade “Deus deixaria então em aberto a questão do nome. O ‘Eu sou me enviou a vós’ de fato soa um pouco como o ‘Ninguém’ de Ulisses invertido em positivo”.
Neste ponto se abre uma fuga surpreendente através de Nicola Cusano, Hermes Trismegisto, Lactâncio, Plutarco, Reinhold, Kant e Schiller, que escreveu, resumindo todos: “nada é mais sublime do que a simples grandeza com que eles falavam do criador do mundo. Para marcá-lo da maneira mais decisiva eles não lhe deram nenhum nome." Assmann comenta: “Esta interpretação é de uma audácia impressionante. O Deus da Bíblia hebraica, ou melhor, a teologia da aliança, seria, portanto, uma invenção, a adaptação de uma ideia de Deus muito elevada, filosófica e abstrata à capacidade de compreensão das pessoas simples".
Porque, justamente, estamos falando de invenção da religião (The Invention of Religion é o título que o livro de Assmann tem em inglês). E "religião" significa "ligar juntos". Para tornar religião tudo isso precisa do Pacto, aquele que Moisés estipula com Deus no Sinai e que substitui ou integra a aliança com Abraão: aquele que todo o povo de Israel subscreve, exceto depois traí-lo com o bezerro de ouro. E toda a terceira e última seção do livro é dedicada ao Pacto por Assmann.
Porque um pacto implica confiança e fidelidade, aquelas de Israel ao seu Deus: isto é, fé. O capítulo 7 do Deuteronômio é muito claro: "Saibam, portanto, que o Senhor, o seu Deus, é Deus; ele é o Deus fiel, que mantém a aliança e a bondade por mil gerações daqueles que o amam e guardam os seus mandamentos. Mas àqueles que o desprezam, retribuirá com destruição; ele não demora em retribuir àqueles que o desprezam”.
O Pacto torna-se contrato e lei, depois culto e, com a Torá, memória: "pátria portátil", segundo a definição de Heine. Mas o Pacto também muda a história do mundo, porque para ser instituído deve necessariamente ser precedido em concatenação por todos os eventos da história sagrada desde a Criação até a descida de José e Jacó ao Egito, a escravidão e a libertação.
Por outro lado, é discriminatório em relação ao futuro. "A conclusão do pacto é a grande virada radical que transforma a pré-história em história". No penúltimo episódio do Ulisses de Joyce, a Voz anônima que interroga ao longo de mais de oitenta páginas pergunta: "que enigma autodemonstrativo ponderado... durante trinta anos Bloom agora... compreendeu silenciosa e repentinamente?". A resposta é: "Onde estava Moisés quando a vela se apagou?"
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A história do mundo começa com o êxodo. Artigo de Piero Boitani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU