31 Julho 2020
Uma das grandes pianistas franceses estará no palco, com seu irmão, o escritor Yann. Música, beleza, finitude, encantamento... foi o que ela confessou, com delicadeza e humildade.
Sua pequena casa, como um ninho, localizado no fim de uma rua arborizada, sem saída, do XIII Setor de Paris, e cercada por altos prédios, parece ter saído diretamente de um desenho de Sempé. Bem-vindos à casa de Anne Queffélec!
Entramos com passadas silenciosas neste ambiente, ao mesmo tempo silencioso e impregnado de notas, no meio do qual está colocado, como num trono, um piano de cauda. Ao redor de tudo, quadros com fotos, livros, objetos diversos, que testemunham uma vida rica, marcada por encontros.
Artista, intuitiva, apaixonada, fã de autores inspirados - Rilke, Tolstoi, Dostoievski ou Kundera -, ela, premiada com as mais altas distinções musicais, e convidada pelas maiores orquestras do mundo, se colocou à disposição para uma conversa, com reflexões pessoais e divagações filosóficas e espirituais. Tudo com simplicidade.
A entrevista é de Anne-Laure Filhot, publicada por La Vie, 19-02-2020. A tradução é de Benno Brod.
Estamos para entrar na quaresma. Esse período é particular para a senhora?
Como jovem, na Bretanha, eu ia assistir a todos os ofícios da semana santa e seguia o que o catecismo ensinava. Hoje, isso se mostra de outra maneira. Sou mais sensível à noção de ressurreição, que, aliás, não fica restrita a um período dado: a gente pode ter, a todo momento do ano, miniquaresmas e microrressurreições, mesmo que sejam de alguns segundos.
A senhora sempre foi pessoa de fé?
Sim, creio eu! Mas confesso que tive fé de maneira mais segura quando era jovem. Hoje, é a través da música que vivo a fé. Creio na transcendência. Na pessoa, há uma abertura para o infinito. Sentir-nos transportados perante a beleza da natureza ou diante de uma obra de arte é o sinal de que somos chamados por algo maior. Blaise Pascal escreve: “Por incompreensível que Deus seja, e por incompreensível que ele não seja.” Em me inclino para esta segunda opção. E gosto da ideia de que há em nós essa parte de divino que nos cabe tornar viva. Devemos, sem dúvida, colaborar para a existência de Deus.
Digo também, para mim mesma, que Deus deve às vezes ficar abalado pela maneira pela qual a pessoa vive a fé na divindade. Ele deve ter sido forçado por Bach, sua criatura! Mas penso também que Deus nos deve santas explicações... Isso faz parte da minha fé. Que mistérios são a existência, o sofrimento, mas também a beleza, a alegria! Eu digo que, se nós não fôssemos limitados e mortais, a arte não existiria, porque ela é um modo de interrogar. Não haveria Beethoven, nem Bach, nem Mozart; não haveria memória... Não teríamos necessidade de transmitir o que quer que fosse. Quer dizer: a finitude tem seus lados bons! É necessário que a passagem pela terra nos deixe sempre inacabados.
A música, segundo a senhora, é a arte que mais abre para o espiritual...
Porque ela é a mais abstrata das artes, embora capaz de nos proporcionar emoções físicas. Essa abstração atinge a alma, que, por sua vez, não está dissociada do corpo. Quando a gente ouve uma sonata de Beethoven, a gente pensa de outra maneira. Aliás, isso já não é mais do nível do pensamento: o que aí se recebe é de natureza espiritual. Acontece que com a música se recebem emoções, encantamentos, que a gente tem a sensação de os haver já vivido, sem poder exprimi-los. Se a música existe, é porque as palavras não conseguem dizer tudo dos mistérios da vida. Por que há algo mais que nada? O que fazemos aqui na Terra? A procura de sentido é infinita.
Mas, e a música responde a todas essas questões?
Vladimir Jankélévitch resumia tudo, dizendo que a música é capaz de nos consolar até da morte; que, com a música, chegamos ao momento em que a gente se aproxima da eternidade. Aqui está todo o paradoxo: a música é do efêmero, não a podemos prender, mas ela nos coloca num lugar onde o tempo fica suspenso. Pois, no fundo, não há resposta para a famosa questão “Por que existe algo em vez de nada?” A resposta está na música, que é outra maneira de perguntar.
É surpreendente que se experimente às vezes alegria ao escutar um trecho de música triste ou melancólica...
Sim é bem estranho. Lembro-me que eu comecei a chorar, um dia, ouvindo a Paixão segundo São João de Bach. Não era tristeza; eram lágrimas boas. Claro, a Paixão é a expressão da dor, mas essa dor é tão interiorizada, tão magnífica, que ganha outro aspecto. Cristo, ali, certamente se encontra, através do seu irmão João Sebastião Bach!
Para Shakespeare, “a música traz em si um charme tão poderoso que ela faz de um mal um bem e de um bem uma dor”. De certa maneira, há uma transubstanciação do sofrimento por meio da criação. Não podemos sublimar tudo, diante de certos sofrimentos, mas, nessa impossibilidade, os grandes artistas chegam a nos elevar a uma outra esfera. A música nos toca mais profundamente do que a psicologia, e vai ainda mais longe que as emoções ou os sentimentos.
A senhora percebeu, desde suas estreias, a dimensão espiritual da música?
Acredito que isso veio mais tarde. Quando eu era pequena, eu queria, mais que tudo, ser pianista na semana e florista nos fins de semana! Pelos 30 anos, passei por uma crise: eu me questionava se estava no meu lugar; se era legítimo eu tocar Mozart ou Bach. Hoje vejo que se pode fazer uma parte do caminho, e que o restante às vezes nos é dado por acréscimo, no momento do concerto – como acontece também na vida. Nesses momentos de graça, tem-se, de repente, a sensação, no corpo e na alma, de estar no seu lugar, a sensação de que é justificado estar ali, e de que é bom que seja assim. Então, não se tem mais necessidade de procurar o sentido das coisas. Trata-se simplesmente de acolher essa luz como uma forma de reconhecimento e de gratidão. Mas também é possível que isso falhe num concerto, mesmo depois de ter tocado todas as notas! Tudo é extremamente misterioso. A graça não vem por decreto. Hoje percebo que fui muito favorecida por ter tido esse instrumento de exploração espiritual que é a música. Henri Michaux dizia que ele escrevia para se reconhecer. Do mesmo modo, a música, para um intérprete, é uma maneira de construir sua humanidade. Bem concretamente: é necessário aperfeiçoar, polir, sem cessar. Ninguém tem êxtase permanentemente!
Donde lhe vem esse espírito de encantamento?
Sempre achei que a vida vale a pena ser vivida; que é melhor isso ou aquilo ser do que não ser. É algo que certamente vem do fundo da minha natureza, mas também me foi dado na infância, pois fui cercada por pais fora de série. No decorrer de minha vida, compreendi até que ponto é um presente ter sido dada à luz com tal olhar de amor sobre mim. Minha mãe, que perdi quando eu tinha 22 anos – aliás, considero que não a perdi nunca – era uma mulher extraordinária, com sua grande inteligência e seu coração. Muito talentosa, alegre, ela demonstrava a seus filhos um amor que nunca oprimia. Para nossos pais, vinham em primeiro lugar os valores do espírito. Nós vivíamos numa espécie de gruta pré-histórica, onde só se encontravam livros e um piano. Mas isso estava longe de ser enfadonho ou frio. Pelo contrário! Meus pais eram muito brincalhões e felizes, que amavam a vida, e é isso, creio, que os filhos deles levaram para a vida.
Às vezes, a música clássica é taxada de elitismo...
A música se dirige, antes, à elite interior de cada um, à parte sagrada de cada um de nós. É o que dizia Albert Camus, quando afirmava que a arte não podia servir a nenhum partido, que ela ficava por cima. Toda vez que eu toquei em uma prisão, as perguntas que me colocavam depois do concerto mexiam muito comigo. Na fealdade desses lugares, os detentos iam ao essencial. Na primeira vez, um deles me perguntou: “Por que os movimentos dos músicos são tão bonitos?” Eu como que caí de costas, diante da justeza dessa percepção. De fato, um movimento de músico é bonito quando ele é necessário e quando corresponde à harmonia que se quer conseguir. Quem faz gestos exagerados no palco faz blefe, denota arrogância – o que não mais é bonito.
Em Saint-Denis, onde toquei recentemente, uma criança, do meio do público, me perguntou o que eu sentia quando tocava. O que ela queria dizer, penso, é que ela mesma se interrogava sobre seus sentimentos. Num momento desses, a gente se sente legitimado, justificado como músico: somos testemunhas dessa parte interior das pessoas que, de repente, é despertada. Um outro detento, fã de música, me disse: “A senhora se dá conta? Se eu não tivesse vindo para a prisão, eu não teria conhecido a música!”
Por que a beleza é tão necessária?
É uma questão de saúde pública! Tenho certeza de que as pessoas que cantam num coral de Mozart ou de Bach têm uma saúde melhor. Não cura tudo, mas estou convencido de que a beleza traz paz. Também gosto desta história vivia por Rainer Maria Rilke: tocado pela beleza de uma estátua de Michelangelo, ele teve a impressão de que aquela obra lhe dizia: “Muda tua vida!” Perante a beleza, sentimos em nós uma necessidade de nos superar: “Não poderias fazer melhor na tua vida?” Diante de uma obra de arte, dizemos que foi uma pessoa humana que fez aquilo, e que nós, por sermos da mesma espécie, também podemos fazer isso. Infelizmente, há grandes forças que puxam para a baixeza, abominação e a abjeção. Somos seres livres e encontramo-nos num grande mistério. E aqui é que eu vejo que a beleza é vital...
... e que ela pode salvar?
Ela pode salvar da torpeza, de uma espécie de mediocridade. Nas poucas vezes em que toquei numa estação, as pessoas que paravam para me escutar me disseram: “Ah, isso é bonito, isso faz bem!” O sucesso dos pianos nas estações me interpela. Além do fato de que eles estarem sendo usados a maior parte do tempo, fiquei atônita de ver que não foram danificados. Para mim, isso é um mistério. Se eu fosse uma política, eu viria nisso uma busca, uma aspiração a outra coisa, para além do materialismo e do consumismo.
Finalmente, a música é para a senhora uma forma de oração?
Se se considera a oração como um pedido, creio que a música é antes uma expectativa. O concerto é o encontro de duas expectativas, a do público e a do artista. Se essa expectativa se torna comunhão, transforma-se em dom, portanto em ação de graças. Mais do que uma transmissora, ela é um sinal: sim, é bom existir.
Anne e Yann Queffélec, a irmã e o irmão, a pianista e o escritor (Prêmio Goncourt 1985), se encontraram, lado a lado, no dia 23 de fevereiro, no palco de Scala, em Paris, para um espetáculo em que abordaram a temática do mar. Os dois, enamorados pela Bretanha, terra da infância deles, vão alternar peças musicais, tocadas por Anne (Debussy, Koechlin, Ravel, Hahn e Liszt) e textos, escritos e lidos por Yann. “É ocasião para um reencontro, e isso nos permite evocar lembranças de infância e voltar a uma colaboração”, afirma a pianista, cujo imaginário está habituado, desde sempre, por imagens de oceano, de tempestades e de litorais selvagens. “A música me prende às vezes como um mar. Diante dele tenho um sentimento de eternidade”.
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“Deus deve ter sido forçado por Bach!”. Entrevista com Anne Queffélec - Instituto Humanitas Unisinos - IHU