Por: Ricardo Machado | 03 Abril 2017
A 9ª Sinfonia de Beethoven foi sua última composição sinfônica e levou 12 anos para ser escrita, publicada em 1824, três anos antes de sua morte. Influenciado pelo zeitgeist (espírito do tempo) de sua época, cujos rumores sobre o que havia ocorrido na Revolução Francesa corriam a Europa, no fim do século XVIII, Beethoven já com a audição comprometida começa a escrever a 9ª Sinfonia em Ré menor, Op. 125 – Finale An die Freude – Friedrich von Schiller. A composição e sua complexa teia de relações foi o tema da audição comentada com Yara Caznok, realizada na manhã da sexta-feira, 31-3-2017, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. A audição integra a programação da 14ª Páscoa IHU.
Se levarmos em conta o cânone musical, a sinfonia é composta por quatro movimentos, de modo que o primeiro deles tem muita energia, ao passo que o segundo tem um ritmo mais lento e lírico, o terceiro é muito breve e descompromissado e o último é uma recuperação de forças com bastante intensidade. “A 9ª Sinfonia de Beethoven não é assim. Ela é o grande discurso de autonomia musical. Como Beethoven não gostava da aristocracia, ele substituiu, na segunda parte, os minuetos (ritmo típico de danças aristocráticas) por Scherzos. O terceiro movimento é uma preparação para o gran finale que é a quarta estrofe”, explica Yara.
Foi o isolamento social, não a surdez, que transformou Beethoven solitário e introspectivo, mas que, no final das contas, o fez compôr a 9ª Sinfonia que é também um gesto revolucionário por ter trazido de volta a voz humana para uma composição. “O instrumento é uma extensão do corpo e ele levou isso muito a sério em seu trabalho. Mas nesta última sinfonia, no último movimento, é como se ele quisesse resgatar o elemento humano e aí traz a voz para a composição”, destaca. “O sentimento de religiosidade de Beethoven era muito ligado à natureza, ele tinha uma mística profunda, por isso não aceitava a burocratização da fé. No fundo, ele tinha uma verdade religiosa muito forte”, complementa.
Professora Yara Caznok fazendo a partilha do pão durante celebração pascal no IHU no intervalo da audição comentada (Fotos: Ricardo Machado/IHU)
Logo no início da peça, a musicalidade da composição vem preenchendo a paisagem sonora como se fosse uma nuvem que toma de assalto todo o espaço. “O primeiro tema é bastante marcial, quase militar, seguido de temas mais suaves que vão se interpenetrando de forma cada vez mais intensa até que se reúnem em uma força energética muito grande que é difícil de conter. O Beethoven tem uma história sem enredo nesta sinfonia, o que ele faz é construir energias”, descreve Yara.
Esta parte começa com um fugato, sendo acompanhada posteriormente por um tema de cavalaria, sendo complementada por um trio-minueto. “Antigamente, no Barroco, os trio-minuetos eram tocados apenas por três instrumentos, mas depois passou a ser executado por vários, ainda que convencionalmente se chamasse de trio. Beethoven, nesta parte, compôs para que apenas instrumentos de madeira fossem executados. Esse movimento serve para as pessoas relaxarem e se prepararem para os dois últimos”, esclarece a pesquisadora.
Ao contrário de Mozart, que era célebre, também, pela grandiosa capacidade e facilidade em compor melodias, Beethoven tinha muita dificuldade em compô-las. “Esta é a melodia mais longa que Beethoven já fez. Ele ia construindo tijolinho por tijolinho. Ele teve a ideia do motivo, mas escreveu muitas vezes, com muitos rascunhos, cada frase musical, de modo que todas as variações desta parte da música têm origem no primeiro movimento”, detalha a professora.
Do silêncio ao caos. “Esse é o grande movimento realizado na última parte da composição”, frisa Yara. “A construção desta melodia é quase banal, tem uma lembrança de melodia popular e isso é de propósito para que as pessoas se sintam incluídas”, sublinha a conferencista. Na parte em que a voz humana é retomada por meio dos coros, a proposta de Beethoven é que o trecho seja mais fácil de ser cantado e lembrado. “Na primeira estrofe, a ideia de fundo versa sobre a fraternidade. Na segunda e terceira estrofes o que está colocado diz respeito as canções de tavernas, até com brincadeiras jocosas entre os amigos. Na quarta estrofe se retoma a ideia da trindade barroca, alternando solistas e coros, e com a entrada do tema de infantaria turca que é cantada somente por vozes masculinas. Há uma espécie de confusão de temas que dá a ideia de batalha”, disseca. “ Na quinta estrofe faz-se um resgate a um tema sacro do século XVI para trazer uma ideia de espiritualidade, de um repertório que cantou o Criador, esse pai amoroso que nos abraça, entrelaçando a ode à alegria aos trombones. Na última estrofe se ouve várias frases musicais ao mesmo tempo ”, pontua Yara.
Ao encaminhar o encerramento da audição comentada, Yara Caznok chama atenção para a intensa espiritualidade de Beethoven, que nunca foi muito ligado às religiões, mas era bastante espiritualizado. “O que Beethoven fez foi acreditar na capacidade humana. Esta obra não tem uma vivência religiosa, mas uma espiritualidade mística de quem crê na vivência humana. Beethoven, aquele que foi responsável por levar a música instrumental ao máximo, cujos efeitos ainda percebemos em pleno século 21, foi também o responsável por trazer de volta a sublimação da voz humana em uma sinfonia”, emociona-se Yara.
Professora Yara Caznok no IHU
Yara Caznok é graduada em Letras Franco-Portuguesas pela Fundação Faculdade Estadual de Filosofia Ciências Letras Cornélio Procópio - FAFI e em Música pela Faculdade Paulista de Arte – FPA. Especialista em Educação pela Universidade de São Paulo – USP, cursou mestrado em Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutorado em Psicologia Social pela USP com a tese Música: entre o audível e o visível (São Paulo: Edunesp, 2004). É autora, entre outros, de Ouvir Wagner – Ecos nietzschianos (São Paulo: Editora Musa, 2000) e O desafio musical (São Paulo: Irmãos Vitale, 2004). Leciona na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no Departamento de Música.
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A intensa espiritualidade de Beethoven e a mística da crença na vivência humana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU