03 Abril 2017
Na página 761 de seu livro "Beethoven: Angústia e Triunfo", Jan Swafford sugere que as "Variações Diabelli", escritas em seu período final, podem funcionar como uma metáfora da vida do compositor.
O comentário é de Sidney Molina, publicado por Folha de S. Paulo, 02-04-2017.
A partir de um tema com poucos atrativos enviado pelo editor Anton Diabelli (1781-1858) - um dos muitos com quem Beethoven teve relações, nem sempre amistosas -, o autor da "Nona Sinfonia" elaborou 33 arrojadas e especulativas variações.
Foi uma de suas últimas obras para piano, instrumento responsável pela ascensão desde Bonn, cidade natal situada às margens do rio Reno, até a "irreal" Viena, terra a quase 900 km de lá, onde viveram Haydn e Mozart, seus antecessores imediatos.
Nessa nova biografia do mestre alemão (lançada no Brasil pela Amarilys), Swafford - que também é compositor - conta quem ele foi e como viveu em exatos 33 capítulos que percorrem 929 páginas.
Tratando-se de Beethoven nada é casual, pois, como mostra o próprio Swafford, "o plano para uma peça era criado no início do processo, e o material inventado tinha de se submeter a ele".
Mas Beethoven, também um exímio improvisador, nunca contava os segredos de sua arte e, tal como ele, Swafford tampouco expõe o esquema do livro. Descobrir estruturas em improvisações, ou esquemas subjacentes ao fluxo ininterrupto de angústias e triunfos: eis uma chave que encaixa com perfeição no "caso Beethoven".
Diante de uma tradição biográfica secular - basta citar o ótimo "Beethoven: a Música e a Vida", de Lewis Lockwood (Códex, 2004) -, Swafford tem a extensão do trabalho a seu favor: dá tempo de o leitor se familiarizar com lugares e pessoas; ficamos amigos dos seus amigos, sentimos o ambiente doméstico, o sabor da comida, a dor das doenças.
Com o passar das páginas, apreendemos os esquemas de vida e obra: já sabemos que ele vai brigar e se arrepender, se apaixonar e receber mais um "não" de uma dama, ganhar e gastar dinheiro (inclusive com vinho barato) e encher cadernos de rascunhos até terminar uma nova obra.
A crítica ao livro de Swafford (lançado em inglês em 2014) tem destacado a seção inicial, o longo e informativo trecho sobre a sua infância e adolescência. Sem dúvida é importante, até porque havia em Bonn uma corte laica e progressista, que permitiu a Beethoven absorver os ideais de liberdade e fraternidade da Aufklärung, a versão germânica do Iluminismo.
Mas há mais: relatos históricos narrados de forma saborosa, como as impagáveis páginas sobre a libertinagem dos poderosos no Congresso de Viena (1814-15).
E também as análises musicais. Swafford comenta dezenas de obras em uma linguagem que, embora interesse ao especialista, é acessível ao leitor que não tem conhecimentos técnicos. São convites à escuta, roteiros - alguns geniais-, como o da "Missa Solemnis", a orientar a apreciação.
Justamente aí há um problema na edição nacional. Embora Swafford escreva para um público diversificado, ele é rigoroso com a terminologia musical. Seus comentários têm mesmo um caráter educativo, que ficou prejudicado pela ausência de uma revisão musicológica do texto em português.
Há termos que só quem é da área sabe usar. Frequentemente são palavras usuais da língua, mas que recebem um sentido técnico. Exemplos: "tonalidades" viram "notas", "tercina" vira "terceto", "modos" viram "modais", "ascendente" vira "crescente" etc.
Diante do tamanho do livro não são tantos casos assim, mas incomodam e fazem a edição brasileira perder uma estrela sem deixar de ser, ainda, muito boa.
Contando a história da vida cotidiana de Beethoven, Swafford desfaz o mito, ao mesmo tempo que mostra como ele foi construído.
E é interessante constatar que suas atividades e dificuldades não diferem muito das dos músicos de hoje.
Para conseguir pagar as contas, Beethoven dava aulas particulares, tocava em todo tipo de eventos, corria atrás do apoio dos poderosos e negociava com editores. Tinha de lidar com a pirataria de partituras e com a crítica.
Muitas vezes ele mesmo produzia os seus concertos e, ao final, "postava" nos jornais agradecimentos que, a seu modo, os envolvidos curtiam e compartilhavam.
Autor: Jan Swafford
Tradução: Laura Folgueira
Editora: Amarilys
Valor: R$ 189 (929 págs.)
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Confira cinco curiosidades sobre o compositor
1) Gente como a gente
Para ganhar a vida, somava rendimentos como pianista concertista, professor de piano, venda de partituras e doações de nobres
2) Cabeludo
Era baixo, moreno e cheio de marcas de catapora no rosto. Tinha cabelos negros muito longos, que penteava para trás, e não sabia exatamente a própria idade
3) Coração pulsante
Beethoven se apaixonou várias vezes, geralmente por mulheres mais ricas. Nunca teve relações estáveis ou duradouras
4) Estômago Fraco
Teve problemas estomacais e intestinais desde a adolescência. A isso somaram-se inúmeras outras doenças e, acima de tudo, a surdez progressiva
5) Origem duvidosa
O van de seu nome é de origem holandesa e, ao contrário do von alemão, não denota correspondência com a aristocracia
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Biografia mostra que Beethoven vivia percalços dos músicos atuais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU