04 Julho 2020
Durante o confinamento, o violinista Renaud Capuçon ofereceu um concerto todas as manhãs em sua sala de estar. Ainda chateado por sua participação na celebração da Sexta-Feira Santa em Notre-Dame, o artista retorna aos misteriosos poderes da música.
A entrevista é de Alexia Vidot, publicada por La Vie, 19-06-2020. A tradução é de Benno Brod.
Com seu violão, o senhor acompanhou a celebração de Sexta-feira santa na catedral de Notre-Dame, quase um ano depois do incêndio e no meio da atual pandemia. Como o senhor viveu essa experiência?
As palavras não conseguem descrever esse momento, que foi como que fora do tempo e um dos mais fortes de minha vida. Tudo era surrealista, inédito. Munido de uma autorização excepcional para sair de minha casa, atravessei primeiro uma Paris vazia, silenciosa, pois estávamos em pleno confinamento. Em frente à catedral, onde encontrei os atores Judith Chemla e Philippe Torreton, nos explicaram, durante 30 minutos, o protocolo de segurança a ser respeitado. E ele é extremamente severo. Por isso, as vestes brancas e as pesadas botas um tanto ridículas que tivemos que usar para nos proteger do chumbo! Em seguida, entrei nessa Notre-Dame esvaziada, metade desmoronada, aberta para o céu... Não éramos mais que cinco ou seis, no imenso edifício. Cada um veio para se pôr a serviço da música e da palavra, que podia tocar mesmo um não crente, por sua simples força. Achei, nisso tudo, muito certa a sobriedade do padre, que não disse muitas palavras. Sua mensagem foi universal. Mas, para mim, que sou cristão, a experiência foi também profundamente espiritual.
Devant la Sainte couronne d’épines, la Mélodie d’Orphée de Gluck interprétée par @RCapucon invité à la prière en ce #VendrediSaint, dans #NotreDame de Paris défigurée par l’incendie. pic.twitter.com/6LYAIgDriT
— KTOTV (@KTOTV) April 10, 2020
Tocar Bach numa Sexta-feira Santa, neste lugar de oração tão emblemático e num tempo tão difícil para o mundo inteiro, era tudo, menos insignificante! Eu não podia senão ficar sensibilizado, em meio a tantos símbolos reunidos! Sentia-me ao mesmo tempo preso ao solo, enraizado, quase enterrado – pois não me movimentei um milímetro durante uma hora! – e, ao mesmo tempo, transportado, elevado, como que aspirado para o céu. Nós, Philippe, Judith e eu, somos muito diferentes, e, contudo, os três experimentamos o mesmo sentimento paradoxal de enraizamento e elevação, de gravidade e esperança. E o último texto lido, que foi de Péguy, então, me desconcertou inteiramente. Sim, aquele momento de eternidade na catedral de Notre-Dame ficará como um dos mais marcantes de minha vida.
“Ouvir Bach. E rezar”: vocês já tinham twittado, no dia 13 de março, quando a perspectiva duma crise sanitária se aproximava perigosamente. Por quê?
Bach e a oração me pareceram, instintivamente, como duas ajudas para atravessar a crise. Sempre tive uma fé bem natural, espontânea, evidente – e isso é uma graça! Tenho duvidado de mil coisas no correr da minha vida: de mim, de tudo; mas jamais de Deus, nem de sua existência, nem de seu amor. E a base de minha fé simples, “de carvoeiro”, é a Bíblia, à qual recorro sempre. Durante o confinamento, eu a li, sim, mas me alimentei, ainda mais, de Bach. Suas obras são uma verdadeira comida espiritual, um remédio para a alma. Ouvir Bach, ou tocá-lo, para mim, é rezar. É partilhar esse amor e essa imensa fé que ele pôs em sua obra. Esse compositor é como o alfa e o ômega. Sem dúvida, é por isso que continuo a tocar em concerto e a gravar suas Sonatas e Partitas, o Graal do violino solo. Eu não penso ser digno de executar essa obra prima da música, que sobe diretamente ao céu. Para isso, nos é necessário, creio eu, ter reencontrado sua alma de criança. É uma busca de absoluto, e também de pureza de coração, que toma tempo... muito tempo!
No entender do senhor, a música e a oração parecem soar em uníssono...
Sim, elas estão completamente ligadas, mesmo que seja de maneira inconsciente. A música é, em si mesma, um veículo de transcendência, queiramos ou não. Alguns de meus companheiros ateus se sentem emocionados ouvindo músicas de Bruckner ou de Brahms, enlevados por suas obras. Porque eu tenho fé, considero essa elevação uma graça. Eles a vivem e a interpretam de modo diferente, à maneira deles. Eu tento tocar como alguém que faz uma oferta, uma oferenda. Esse talento que tive a chance de receber e de poder exprimir, quero simplesmente oferecê-lo de volta aos outros e a Deus. Eu, de fato, tenho tido grandes chances, e devo muito a meus pais, que me fizeram aprender violino ainda bem pequeno. Eu tinha apenas 4 anos quando subi pela primeira vez a um palco – um concerto, que estava nos limites de uma apresentação – mas tive, imediatamente, a certeza de fazer qualquer coisa de bom, de belo, de verdadeiro. Eu tinha encontrado meu lugar. Eu estava respondendo a um chamado.
No dia 15 de março, o senhor divulgou pelas redes sociais uma melodia de Dvorak “adoçar nosso futuro confinamento”. O primeiro concerto confinado de uma longa série. Como lhe surgiu essa ideia?
Surgiu muito naturalmente. Naquele domingo, tive vontade de pegar meu violino. Então, com meu filho Eliott, de 9 anos, arrumamos umas coisas na sala, e eu me pus a tocar perante um tablet, colocado sobre um tripé desajeitado. Depois, pus on line o vídeo – ele estava mal enquadrado, reconheço; é que eu era um amador desajeitado (risos). No dia 16 de março, o confinamento foi anunciado. Eu vi os concertos e festivais sumirem como um dominó (68 datas anuladas entre março e julho), e passei aquele dia como num drama. Eu me sentia esmagado. Mas, a partir da manhã seguinte, em vez de me lamentar, olhando para trás, decidi assumir a situação e ir para frente. “Ok, tu vais fazer um vídeo todas as manhãs”, falei eu para mim mesmo, como para conseguir aguentar, para não ceder à angústia e reencontrar meu equilíbrio. No correr das seguintes semanas, fiz a experiência de até que ponto esse ritual me conseguia levar. E o mais bonito foi ver que isso ajudava também outras pessoas.
Alguns exemplos foram vistos por mais de um milhão de internautas. O senhor pressentia esse sucesso?
Isso não é questão de embalagem ou de publicidade. Eu não sei fazer muita coisa, além do violino; por isso fiz o que podia tirar das cordas do meu violino, e me dei conta, bem ligeiro, que minha pequena contribuição respondia a uma verdadeira necessidade. Recebi tantos agradecimentos e retornos tocantes que não esperava! Uma irmã dominicana me escreveu que eu lhe tinha dado vontade de voltar a tomar o seu violino. Uma mãe me confiou que sua filha de 7 anos me via todas as manhãs. Sem falar de cuidadores, como aquele homem que, cada fim de tarde, após voltar de seu ofício de guarda, me escutava, antes de fazer qualquer outra coisa. E quando parei, no dia 10 de maio, depois de 56 miniconcertos, recebi milhares de mensagens que diziam: Seus vídeos nos fazem falta!” Durante o confinamento, a música adquiriu um peso suplementar. Possivelmente, por causa do vazio, diante do qual nós, de repente, nos encontrávamos. Eu já sabia que a música, quando vivida e partilhada, podia salvar um homem, mas fiz a experiência disso, mais ainda, durante aquelas semanas sombrias.
A música seria mais vital na provação?
Eu creio que ela, sozinha, pode suavizar certas situações dolorosas. Fiz a experiência disso no dia 11 de setembro de 2001, quando participava de um festival em Jerusalém, e também por ocasião de um recital em Tóquio, em 2011, logo depois da catástrofe de Fukushima. E é isso que vivo também toda vez que toco em hospitais, em casas de idosos ou em prisões. Primeiro, para tais pessoas, pois é essencial levar-lhes essa música que os pode ajudar a viver um pouco melhor; e depois, para mim mesmo, pois tais momentos, que são sempre muito intensos, me “recolocam no esquadro”, por assim dizer, na figura certa. Eles me recordam aquilo que é minha verdadeira missão de músico. O aspecto trovador é o lado simpático por dois minutos, mas o que significa ser um artista é muito mais profundo... Vem-me ao espírito a palavra “compaixão”.
Mas donde vem esse poder incrível da música?
A música estimula, traz paz e consola. Ela repara, ela pensa as feridas abertas, lava e purifica... Ela exprime todos os sentimentos humanos. Donde vem esse poder? É uma coisa misteriosa, para além das palavras, como a própria música é uma linguagem do amor. É uma língua universal, que eu falo em Tóquio, em Londres, na Nova Caledônia ou na Áustria. Ela dispensa traduções e explicações, e qualquer pessoa, da criança de peito ao idoso, a compreende, cada um à sua maneira, segundo sua disposição e suas necessidades. A música é como uma força centrífuga que não somente difunde, espalha emoções, mas transmite também valores essenciais e orgânicos, quer dizer, centrais. Também é necessário que o músico não ponha barreiras a essa coisa misteriosa, que o supera. Se você tem um coração nobre, mas o seu vetor tem um ego superdimensionado ou uma sonoridade desagradável, a mensagem musical não poderá passar. Talvez, a gente esteja então fazendo show ou ostentação. Não é isso que me interessa. Sem humildade e sem uma busca de sonoridade, é impossível se pôr a serviço da música e dos seus compositores. Ora, é a isso que o músico é chamado. Isso é o essencial de seu trabalho, a busca de toda sua vida.
A partir do momento em que o músico se torna servidor, toda música teria virtudes benéficas?
Sim, claro! É terrível e insensato reservar a música clássica aos conhecedores e a uma elite, e considerar a variedade, o rap, o jazz como sub-músicas. Eu tanto tenho a peito levar um público jovem à música clássica, tendo sempre como ponto de ancoragem a excelência, como também tento, eu mesmo, conhecer outros universos. Durante o confinamento, toquei músicas de Schumann, de Haendel, de Debussy, mas também canções de Goldman, de Piaf ou músicas de filmes. E não tive a impressão de vender minha alma; pelo contrário (risos). No ano passado, inclusive gravei um álbum de músicas de filmes – Cinema, com Erato Warner Classics – e tive muita alegria honrando essas peças magníficas.
O que mais falta lhe fez, durante o confinamento, e que o senhor reencontrou com tanto mais alegria, quando terminou o confinamento?
Eu me dei conta, até do ponto de vista físico, que aquilo que mais me faltava era o palco! E quando digo palco, não é num sentido narcisista ou supersticioso (as viagens, a celebridade, as condecorações!), mas o fato de tocar com outros, de “musicar juntos”, segundo a bela expressão alemã. A partilha, a interação, a troca, a transmissão... é isso que me faz viver. Na véspera da organização das Metamorfoses de Strauss, na Filarmônica de Paris, em maio, eu estava lá como um adolescente: tremendamente impaciente, e nervoso com a ideia de reencontrar meus 22 amigos solistas com os quais tinha montado o projeto. Como se fosse a primeira vez! E, de fato, esse primeiro concerto pós-confinamento, foi muito emocionante...
O senhor conta sua história num livro, Movimento perpétuo. Esse movimento, que o senhor sente por dentro, não nasce justamente da sua paixão de partilhar?
Mouvement perpétuel, de Renaud Capuçon
Eu gosto do silêncio, do recolhimento – tenho mesmo necessidade dele. E eu posso deixar descansar meu violino duas semanas, quando viajo para férias com a família. Não estou agarrado à música, no mau sentido da palavra. Minha hiperatividade não vem, portanto, para preencher um vazio. Eu sou simplesmente curioso, e tenho uma sede insaciável de encontrar e de ouvir o outro, de transmitir, de criar, de elaborar projetos, programas e festivais. Neste sentido, sim, creio que este gosto da partilha é que me animou sempre!
Ele herdou um precioso violino de 1737 do grande Isaac Stern, e esse presente não deixa de o emocionar. Quem pertence ao restrito clube dos solistas virtuoses do planeta sabe todo o preço da transmissão artística. Homem de ligações, sensível, generoso, trabalhado por uma infância de grande calor (no livro há belas páginas sobre sua avó Léa!), Renaud Capuçon foi impulsionado, desde bem pequeno, pelo amor da música compartilhada. Ele tem o dom de suscitar encontros entre compositores, solistas, diretores de festivais do mundo inteiro, para “servirem” entre si as partituras mais célebres. Modesto, mas inspirado, nesse livro pessoal, por todos os encontros amigáveis e artísticos que ele promoveu nos palcos e na vida, este enamorado de sua arte nos ostenta no livro um belíssimo movimento. E nos passa a emoção musical mais tocante e singularmente humana.
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“A música é minha oferta”. Entrevista com Renaud Capuçon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU