Como é subversiva a lei do Êxodo. Artigo de Marco Rizzi

Travessia do mar vermelho, em pintura produzida no século 17. (Foto: Domínio Público)

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05 Abril 2023

"Gerou-se (...) uma antinomia intrínseca, pela qual a religião revelada constitui um possível fator de crítica radical do poder humano e, ao mesmo tempo, um elemento superordenado a todos os aspectos da vida, pela proveniência divina de sua lei. Entre a heteronomia dos dispositivos políticos e a teonomia da revelação divina (seja judaica, cristã ou islâmica) como e onde se encaixa a autonomia do indivíduo?", escreve Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão, em artigo publicado por La Lettura, 02-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O Êxodo é o mito constitutivo do povo de Israel, que se constitui como tal quando, guiado por Moisés, rebela-se contra a escravidão sofrida na terra do Egito, coloca-se em caminho rumo à terra prometida e finalmente se estabelece naquele lugar. O Livro do Êxodo, assim como aparece na Bíblia judaica e cristã, não representa o relato efetivo daquele evento, mas uma profunda releitura do mito fundador, após a queda da monarquia davídica e do exílio babilônico.

Foi, portanto, composta entre os séculos VI e V a.C., por meio da reelaboração de materiais pré-existentes por expoentes de círculos sacerdotais ligados ao culto no Templo reconstruído no retorno da Babilônia (o “Segundo Templo”, destinado por sua vez a ser destruído pelo Romanos em 70 d.C.).

No centro da história do Livro do Êxodo está a autorrevelação de Deus: primeiro apenas a Moisés na sarça ardente; então no poder das pragas infligidas ao Egito e na derrota do exército de Faraó; finalmente, a todo o povo no Sinai, onde Deus entrega a lei e estabelece uma aliança com ele.

No coração da lei e da aliança está a singularidade do Deus do Sinai, que exige de seu povo uma fidelidade exclusiva e o abandono de toda mistura com o culto de outras divindades: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim" (Êxodo 20,2-3). No Sinai realiza-se o nascimento do monoteísmo, assim como é hoje o conhecemos no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, mas que no mundo antigo era um conceito desconhecido, no máximo apenas acenado naqueles sistemas religiosos que colocavam uma divindade em posição dominante sobre muitas outras, como no caso de , o deus-sol do antigo Egito.

Até aqui trata-se de temas amplamente compartilhados pela literatura acadêmica que analisa esse e outros outros livros bíblicos do ponto de vista histórico-crítico e filológico; temas, por sua vez, que passaram integralmente nos materiais levados em consideração pela exegese teológica do Livro do Êxodo.

É mais original a leitura da dupla dimensão do Êxodo - mito fundador e livro bíblico - proposta em 2015 pelo famoso egiptólogo alemão Jan Assmann, em uma espécie de comentário teológico-político sobre texto, agora traduzido para o italiano pela Adelphi com o título Esodo [Êxodo].

Esodo

Esquematizando aquilo que em suas obras anteriores Mosè l’egizio (1997) e La distinzione mosaica (2003), ambas traduzidas pela Adelphi, Assmann propôs uma leitura do líder do povo hebraico sob um ponto de vista egípcio: Moisés teria conseguido realizar o que o faraó Ekhnaton se propunha a fazer (reinou de 1353 a 1336 a.C.), ou seja, criar um sistema religioso exclusivo, centrado em uma única divindade da qual o faraó representa o único intermediário com os homens. Apesar do fracasso de Ekhnaton, a ideia permaneceu viva até se materializar após a revolta servil que deu origem do povo judeu. Ao contrário do que acreditava Sigmund Freud, que fazia dele um discípulo direto do faraó, o Moisés de Assmann mais que um personagem histórico, representa a figura central da "memória cultural" hebraica, ou seja, aquela em torno da qual se configura a identidade e a tradição de um povo.

Nesse contexto, a releitura pós-exílica do mito fundador de Israel teria marcado um passo adiante e decisivo. No modelo de Ekhnaton, e mais geralmente em todas as concepções políticas do Antigo Oriente Próximo, a lei é expressão da vontade do soberano, justamente porque ele se coloca numa relação privilegiada com o mundo divino. No episódio do Sinai, ao contrário, Deus dita a sua lei a Moisés e assim a afasta de qualquer mediação e manipulação humana.

Dessa forma, a releitura sacerdotal do Êxodo proposta pelo Livro do Êxodo preenche o vazio político e legislativo que se criou com o fim da monarquia e a autonomia estatal dos judeus, que continuavam a ser submetidos ao poder estrangeiro: nasceu uma ordem jurídica concreta, não simplesmente um sistema de valores morais, independente da mutabilidade da vontade dos soberanos e de condições históricas, diretamente relacionado a Deus, exclusivo e imutável.

Nessa perspectiva, o Êxodo torna-se o paradigma por excelência de toda revolução que visa à emancipação e à justiça dos oprimidos, como na famosa análise filosófico-política de Michael Walzer (Esodo e rivoluzione, 1985) ou naquela mais especificamente exegética da teologia da libertação latino-americana. Mas o Livro do Êxodo constitui também outro momento de virada, que Assmann não hesita em definir como decisivo ainda hoje, na medida em que o pacto do Sinai comporta o "monoteísmo da fidelidade", que se torna o traço característico das três religiões abraâmicas.

Gerou-se, assim, uma antinomia intrínseca, pela qual a religião revelada constitui um possível fator de crítica radical do poder humano e, ao mesmo tempo, um elemento superordenado a todos os aspectos da vida, pela proveniência divina de sua lei. Entre a heteronomia dos dispositivos políticos e a teonomia da revelação divina (seja judaica, cristã ou islâmica) como e onde se encaixa a autonomia do indivíduo?

Mais uma vez, é preciso voltar a São Paulo, que sobre o nexo entre lei e revelação, fidelidade e pacto, letra e espírito escreveu as páginas decisivas para a história de grande parte da humanidade. 

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