22 Junho 2023
“Quando meu pai morreu, escolhi o sacerdócio. Fugi não por culpa da castidade, mas pela autoridade”. O filósofo fala de si sem filtros. Aqui explica por que a espiritualidade é essencial para o homem. E o que aconteceu 25 anos atrás.
Umberto Galimberti, 81 anos, filósofo e psicanalista.
Em 1882, sete anos antes de enlouquecer na Piazza Carignano de Turim, onde em lágrimas abraçou e beijou um cavalo açoitado pelo cocheiro e depois caiu no chão em convulsões, o filósofo Friedrich Nietzsche havia proclamado: “Deus está morto”.
Umberto Galimberti, de 81 anos, tem o mesmo ofício do pensador alemão, além de psicanalista e psicólogo, e acredita que a confiança no futuro começou a vacilar com aquele anúncio: “Não estava em discussão se Deus existia ou não: quando alguém morre, significa que antes estava vivo. Mas se cancelamos a palavra Deus, ainda assim entenderemos o nosso tempo? Sim. Não será o mesmo se tirarmos as palavras dinheiro e técnica”.
Se Galimberti, escritor de best-sellers amado pelas multidões (84 conferências realizadas em toda a Itália em 2022, 21 já programadas para este mês de junho), pensa assim, por que decidiu tratar do Filho de Deus? O seu novo livro, destinado ao público jovem, intitula-se Le parole di Gesù (As palavras de Jesus, em tradução livre, Feltrinelli). São 51: anjos, diabo, fé, felicidade, alegria, doença, morte, paz, medo, pecado, perdão, oração, ressurreição, tentação, tristeza, verdade, vida, só para citar algumas. Ele o escreveu com o biblista Ludwig Monti, um ex-monge da Comunidade de Bose.
Disso parte o diálogo com este padre que não deu certo, já autor de um ensaio sobre o cristianismo: “É a religião do céu vazio, perdeu o sentido do sagrado, e isso me dá muita raiva. A dimensão espiritual é essencial no homem".
A entrevista é de Stefano Lorenzetto, publicada por Oggi, 20-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você é ateu ou agnóstico?
Grego. Levo a morte a sério, não tenho esperanças num outro mundo, e isso cria em mim a ética do limite.
Como se tornou grego?
Conhecendo o meu mestre Emanuele Severino. Durante anos, no verão, passei um mês inteiro na Grécia, numa tenda. Agora fico por uma semana no máximo. Tornou-se uma imenso Rimini. Só a reencontro em Patmos, onde João escreveu o Apocalipse.
Por que você publicou um livro sobre Jesus?
Eu estava cansado de ouvir figuras da direita que se declaram cristãs e brandem rosários e crucifixos nos comícios, mas depois barram os refugiados. Isso demonstra que as palavras de Cristo ficaram letra morta. Além disso, o Nazareno não fundou uma religião. No máximo, foi Paulo de Tarso que fez isso.
Você tem algo contra as religiões?
Não. Mas representam o contrário da fé, porque sacralizam uma cultura. Começou Constantino, transformando o cristianismo na religião do Império Romano. Carlos Magno continuou com o Sacro Império Romano. Em vez disso, Jesus apenas pedia que confiássemos na sua palavra.
Você está subindo no ranking graças ao Nazareno.
Ninguém acreditava nesse livro, nem mesmo o editor Carlo Feltrinelli: espera que eu lhe entregue L’etica del viandante, com lançamento previsto para outubro.
No Cristianismo, você escreveu que o acontecimento cristão esgotou seu impulso propulsor.
Todo o Ocidente é cristão. Até os ateus, até os agnósticos o são. Com Jesus a ordem do tempo mudou: o passado é ruim, o presente é redenção, o futuro é salvação. A ciência raciocina da mesma forma: o passado é ignorância, o presente é pesquisa, o futuro é progresso. O mesmo vale para a sociologia: o passado é injustiça social, o presente é reforma ou revolução, o futuro é justiça na terra. O mesmo vale para a psicanálise: o passado é marcado por neuroses e traumas da infância, a psicoterapia é o presente, a cura é o futuro.
O que há no seu passado?
O número 8, o oitavo de 10 filhos. Meu pai Ernesto vendia chocolate. Tornou-se bancário. Abriu em Biassono a primeira agência de Crédito para artesãos. Ele morreu de câncer no dia da inauguração e eu desisti do meu sonho: ser médico.
Você é psicanalista e psicoterapeuta. Bem perto…
Oh não. Eu escolhi o sacerdócio. Acostumado às privações na família, me sacrifiquei pela causa. Aos 12 anos entrei no seminário de Seveso. Saí daquele de Venegono Inferiore em 1958, no segundo ano do liceu.
Por que razão?
Não tinha a ver com o sexo. Devo ter sido um pouco imaturo, mas era um pensamento que não me passava pela cabeça. Não, fugi porque não suportava a autoridade, a hierarquia, encarnada por personagens como monsenhor Arturo Parolini, que ensinava letras e latim. Já adulto, enviei-lhe um bilhete quando se aposentou. Ele me respondeu: ‘Galimberti, você não é capaz de escrever em italiano nem os cumprimentos’. No entanto, sou grato a ele, ao reitor Guidotti e ao padre Molon, professor de grego: se aprendi a falar em público, devo isso às suas homilias matinais.
O cardeal Gianfranco Ravasi, no seminário com você, diz que seus dias eram cadenciados "pela tríade oração - estudo - recreação".
Os dele. Nos intervalos entre as aulas, eu corria para a igreja para tocar as fugas de Bach no órgão.
Quem é Jesus?
O homem que pôs o amor em circulação no mundo antigo. Um sentimento desconhecido. Na época a relação era amigo-inimigo, as pessoas se matavam.
Galimberti poderia se tornar um de seus discípulos.
Se eu olhar minha biografia, nunca segui ninguém. Tive mestres, sim. E ainda os venero: Emanuele Severino, com quem me formei; Karl Jaspers, que me apresentou à psicopatologia; Mario Trevi, que me acompanhou no caminho psicanalítico; Eugenio Borgna, que foi meu médico chefe por três anos no manicômio de Novara.
Deus existe ou não?
Para mim não existe. O mundo acontece como Deus quer? Não. Então significa que Deus está morto, o mundo não está mais sujeito às suas leis.
"Não existem mais os ateus do passado", queixou-se comigo o cardeal Ravasi. “Hoje os ateus insultam quem acredita em Deus, para eles a descrença é uma bandeira. Mas Nietzsche não usa um ateu para anunciar que ‘Deus está morto’. Faz um louco dizer isso, porque sem Deus não existe a ordem do mundo, perdemos o horizonte de referência, já não temos um alto e um baixo”.
O que é pecado para você?
Mais do que uma culpa, é o efeito de certas condições. Aquela transexual massacrada pela polícia de trânsito em Milão pode até ter feito algo absurdo, mas a situação em que ela se encontrava foi compreendida ou não importava? Não é justificacionismo. Veja bem, nem sou muito a favor do perdão. Não se pede a quem sofreu um trauma, talvez a morte de um ente querido, para passar por cima. Não vamos exagerar.
Para a saúde mental é melhor crer ou não?
Sou absolutamente a favor da espiritualidade. A vida é tão difícil. Se a fé te ajuda, por que não? É bem-vinda quando atenua o cansaço e o sofrimento.
Você vê mais crentes ou mais ateus em teu divã?
Sempre pergunto a quem me procura qual seu background religioso. Também tive em terapia uma freira de 40 anos com problemas relacionados à sexualidade. Hoje, a análise é impossível. O último que acompanhei por cinco anos foi o diretor Luca Ronconi, mas apenas porque era um homem que refletia, curioso sobre a própria vida. Os pacientes querem que eu resolva os seus problemas. Em vez disso, a psicanálise é autoconhecimento: saber quem é você é melhor do que viver sem conhecimento. A dor não pode ser apagada com medicamentos.
E como eles respondem à pergunta sobre a religião?
Não encontro neles nem a força da fé nem o antagonismo. A resposta óbvia é: ‘Acredito em Deus, mas não vou à missa’. Mas então que tipo de cristão você é?
Você me confessou: "Sinto saudade da Missa com três sacerdotes".
Sim, celebrada solenemente por três sacerdotes. Se a fé é irracional e se chega a ela com um ato de vontade, como diz São Tomás, então precisa de ritos, paramentos, cantos, incenso, velas. Hoje você vai à igreja e vê os efeitos do Concílio Vaticano II: um padre sozinho no altar, sem o coroinha, que resmunga palavras em italiano. A fé perdeu sua beleza.
Seus pais tiveram um funeral religioso?
Certamente. A do meu pai, que morreu de câncer em 1956, foi aterrorizante. Na igreja de San Carlo, em Monza, foram enfileirados 40 orfãozinhos vestidos de preto, buscados numa instituição. Que sadismo inútil.'
Sua esposa, Tatjana Simonic, professora titular de biologia molecular, também morreu de câncer.
A minha vida acabou em 2008. Hoje só faço as coisas porque sou capaz de as fazer. Eu perdi minha alma. O dever permanece. Moro sozinho, vou ao supermercado, levo a roupa na lavanderia. Mesmo o menor problema se torna grande quando você não consegue diluí-lo em uma conversa. A solidão é pesada.
Como conheceu Tatjana?
Em Trieste, durante o serviço militar. Ela era ateia como seus pais, criada sob o regime de Tito. Não podia pronunciar o ato de fé, então nenhum padre queria nos casar. Mas eu queria o matrimônio religioso. Fomos falar com o padre David Maria Turoldo, na abadia de Santo Egídio em Fontanella. Depois de conversar, ele me disse: ‘Umberto, Tatjana tem um senso de justiça inato. Case com ela! É importante sermos justos, não santos’. E em 1970 celebrou o nosso casamento.
Quando sua esposa morreu, em quem você encontrou conforto?
Dediquei-me a escrever o Novo Dicionário de Psicologia, 1.640 páginas. Tenho um lado paranoico.
Onde Tatjana está enterrada?
Em Milão, no cemitério de Lambrate, não muito longe da nossa casa. Fiz para ela um lindo túmulo, com Atena, a deusa grega da sabedoria, chorando apoiada em um caule. Se eu estou confuso comigo mesmo, eu vou lá. Detesto a cremação, sou a favor da sepultura. Ela olha para mim da foto, me obriga a refletir. É a minha terapia. De vez em quando eu me lembro que eu também vou morrer. Mas eu sou grego, então já sabia disso, não é uma surpresa.
É um encontro que lhe assusta?
Não. A dimensão trágica da morte não consiste em perder os afetos e as posses, mas sim aquele amor-próprio amadurecido à força de viver consigo mesmo.
Em que você tem esperança?
Pier Paolo Pasolini havia removido a palavra esperança de seu vocabulário. Se você quer tornar o mundo melhor, você tem que fazer coisas. A esperança é passividade.
Você tem três netos de 22, 14 e 12 anos. Você já falou com eles sobre Jesus?
Muito ocupados. Não concordo com aqueles, a começar pela minha filha Katja, que exoneram os filhos da aula de religião na escola. Se você não sabe nada sobre o cristianismo, como pode entender a arte italiana?
A que você se refere?
Ao imenso Cristo morto de Andrea Mantegna.
Você não acha que o mundo hoje parece um hospício?
É sim. Sulco em latim é lira. Delirar significa sair do sulco. Sempre recomendo aos pais: não usem a expressão ‘na minha época’, pois eram tempos áureos comparados aos de seus filhos. Esta é a época do niilismo. Os jovens carecem de propósito. Para eles, o futuro, de uma promessa, tornou-se uma ameaça. Bebem, usam drogas, ficam acordados à noite para não saborear sua insignificância social durante o dia. Ninguém os convoca. Eles não podem fazer nada além de corroer a riqueza acumulada por seus pais.
Expansión, o jornal econômico espanhol, escreveu: "Umberto Galimberti afirma que a nossa sociedade tomou um desvio preocupante em sua relação com a realidade". Qual desvio?
Nega que a realidade seja niilista. Mas Martin Heidegger ensinava que você tem que olhar bem na sua cara se a quiser mudar. Eu a observo e vejo que a tecnologia escravizou o mundo. Confundiu desenvolvimento com progresso. Perseguir o máximo de objetivos com o mínimo de meios. Isso coloca o homem fora da história. Mas o amor não é racionalidade, como também não o são a fé, o sonho e a dor.
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Entrevista com Umberto Galimberti: “Minha vida acabou em 2008, vou lhes contar o porquê” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU