Dois filósofos do nosso tempo dialogam sobre o significado da fé. Um trecho de "Acreditar. Julián Carrón em diálogo com Umberto Galimberti" [Em tradução livre] (Piemme).
Em 2020, ano de início da pandemia, marcou muito a imagem do Papa Francisco em oração, sozinho, na praça São Pedro: “Deus, nos salve da tempestade”. Chovia, parecia uma visão apocalíptica. O que significa para vocês aquela imagem que encarna a solidão, não apenas do homem, mas talvez também da Igreja?
Os textos são publicados por La Stampa, 04-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Julián Carrón, teólogo e linguista espanhol sucessor do Padre Luis Giussani, fundador do movimento Comunhão e Libertação.
Umberto Galimberti, filósofo, antropólogo e psicólogo italiano. É autor do artigo 'O Ser humano na Idade da Técnica' publicado em Cadernos IHU ideias, no. 218.
O gesto marcante do papa em março de 2020, naquela praça São Pedro vazia, embaixo da chuva, em um cenário apocalíptico, ficará na memória de todos por muito tempo. A consciência de uma necessidade gerou um grito. A escolha de usar a passagem do Evangelho sobre a tempestade como modalidade para ajudar a entender e enfrentar o momento da pandemia foi genial para mim. “Naquele dia, ao anoitecer, disse ele aos seus discípulos: ‘Vamos atravessar para o outro lado’. Deixando a multidão, eles o levaram no barco, assim como estava. Outros barcos também o acompanhavam. Levantou-se um forte vendaval, e as ondas se lançavam sobre o barco, de forma que este foi se enchendo de água. Jesus estava na popa, dormindo com a cabeça sobre um travesseiro. Os discípulos o acordaram e clamaram: ‘Mestre, não te importas que morramos?’ Ele se levantou, repreendeu o vento e disse ao mar: ‘‘Aquiete-se! Acalme-se!’ O vento se aquietou, e fez-se completa bonança. Então perguntou aos seus discípulos: ‘Por que vocês estão com tanto medo? Ainda não têm fé?’ Eles estavam apavorados e perguntavam uns aos outros: ‘Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?".
O que me impressionou, voltando à cena evangélica da tempestade, reproposta pelo Papa Francisco, não é apenas o fato de que aquele texto documenta a necessidade dos discípulos, assustados como nós também estávamos pela pandemia, mas sobretudo o fato de que, naquela situação de medo, surgiu - como aconteceu naquela noite na Praça São Pedro - a figura de um, Jesus, em toda a sua excepcionalidade.
É uma diversidade documentada pelos detalhes do relato de Marcos. O primeiro: Jesus dormia pacificamente, como se a tempestade não o assustasse. O que o tornava tão imperturbável?
Não era a ingenuidade, mas o surgimento de sua autoconsciência, de modo que nem mesmo uma tempestade abalava a sua total confiança no Pai. Essa confiança inabalável explica sua permanência no sono mais profundo e também a pergunta atônita aos discípulos, diante de seu sentimento de se sentirem perdidos: "Por que vocês estão com tanto medo?". É um medo cuja origem é revelada pela segunda pergunta: "Ainda não têm fé?”. Como se dissesse: “Ainda não compreendeste quem sou? Se o tivesses compreendido, talvez não tivessem se assustado tanto a ponto de me perguntar: ‘Mestre, não te importas que morramos?’". A revelação da excepcionalidade de Jesus vai além da necessidade concreta que a tempestade desencadeou e, da mesma forma, vai além da nossa necessidade - muito compreensível - de sair da pandemia.
O quanto seja decisivo perceber esta excepcionalidade emerge de outra passagem do Evangelho, quando os discípulos se deparam com um novo desafio: "Eles haviam esquecido de levar pão e só tinham um pão no barco". Pelo que podemos ver que eles ainda não haviam percebido a diversidade de Jesus, justamente eles que haviam sido testemunhas das multiplicações dos pães? Do fato de que "discutiam entre si porque não tinham pão". Jesus se surpreende que eles ainda não entendam: “Por que vocês estão discutindo por não terem pão? Vocês não sabem e não entendem o que eu disse? Por que são tão duros para entender as coisas? Vocês têm olhos e não enxergam, têm ouvidos e não escutam? Não lembram dos cinco pães que eu parti para cinco mil pessoas? Quantos cestos cheios de pedaços vocês recolheram? Eles responderam: — Doze. Jesus perguntou outra vez: — E, quando eu parti os sete pães para quatro mil pessoas, quantos cestos cheios de pedaços vocês recolheram? Eles responderam: — Sete. Então Jesus perguntou: — Será que vocês ainda não entendem?"
Para mim este é o ponto crucial: naquela noite de março percebemos - na medida da abertura e do questionamento de cada um - que não estávamos sozinhos com nosso medo, que na história entrou uma Presença que nos acompanha também nas dificuldades, na dor, que nos permite viver cada circunstância com esperança. Foi como o retorno de um anúncio, através do testemunho do papa. Perceber a natureza da Presença que entrou na história é particularmente importante hoje, porque o problema que fica para além da pandemia - que acreditamos se atenue cada vez mais - é a falta de sentido: muitas pessoas, mesmo antes da pandemia e sem terem adoecido nesses anos, não sabem por que vivem.
Quando Jesus cura os dez leprosos, apenas um percebe que tê-lo encontrado foi mais importante do que a cura. Um homem também pode se curar da doença ou superar uma pandemia, mas se não descobrir o significado de viver, permanecerá na angústia ou no vazio.
É por isso que o gesto do Papa na Praça São Pedro foi significativo para mim, porque foi a ocasião de um anúncio que respondia ao medo profundo, causado pela "tempestade" da pandemia, mas que vai além da pandemia, diz respeito à vida. Nunca como naquele momento todos nós percebemos, crentes e não crentes, que estávamos unidos por uma necessidade e que diante de nós havia um homem carregando um anúncio cheio de promessa.
É o que está contido em uma passagem daquele discurso do papa: “Como os discípulos, experimentaremos que, com Ele a bordo, não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: transformar em bem tudo o que nos acontece. Ele traz serenidade às nossas tempestades, porque com Deus a vida nunca morre”. Só quem tiver a audácia de verificá-la em sua própria vida poderá ver a dimensão dessa promessa.
"Salva-nos da tempestade", pede o papa a Deus. Também Heidegger, quando questionado sobre a técnica pelo diretor do Der Spiegel, diz: "Só um Deus pode nos salvar". Então o homem, sozinho, não consegue.
Nesses tempos de pandemia, todos falam do medo. O homem tem medo. Mas esse é um termo errado, porque o medo, que é um excelente mecanismo de defesa, tem um objeto determinado. Tenho medo de um incêndio, então fujo. Se eu não tivesse medo, iria em direção ao fogo, como fazem as crianças que nunca viram um fogo. As crianças não têm medo de nada, tanto que devemos sempre cuidar delas, porque elas não veem os perigos, porque não têm medo. Mas elas têm uma angústia que, ao contrário do medo, não oferece nada a que se prender, nada a que se referir. A angústia, por exemplo, é o que uma criança sente quando a luz de seu quarto é apagada. Ela começa a gritar e aí vem a mãe, acende a luz, a criança recupera a paisagem e fica bem.
Nós teríamos que ter falado de angústia em relação ao vírus, porque o vírus não pode ser visto, não se sabe onde está e como podemos nos defender. É aquele indeterminado pelo que qualquer pessoa pode ser transmissora, qualquer pessoa pode ser portadora da doença.
Hoje, o que gera angústia é a técnica que nos faz viver não no tempo, mas na aceleração do tempo para alcançar os objetivos que o aparato de pertencimento nos impõe. Não é por acaso que a Itália, apesar de ser um país onde ainda existe vida social, onde as pessoas ainda falam - e falar é bom -, onde se come bem, onde o clima é bom e muitas vezes há sol, tenha 55% da população adulta que usa psicofármacos.
O psicofármaco, ao qual acrescentaria também a cocaína, tem a função de responder às exigências da técnica que pede ao homem que esteja sempre à altura da situação, para alcançar os objetivos de trabalho impostos pelo aparato. Aí todo ano eles sobem a exigência e você fica ansioso, e então você não dorme, porque você sempre tem que estar atualizado, pronto, você tem que levantar à noite para ver se tem e-mail, você não pode perder as informações.
Como dizíamos anteriormente, não vivemos mais no tempo, que é uma categoria antropológica, porque vivemos na aceleração do tempo, que é uma categoria absurda, que nos adoece. Não vivemos mais no espaço, porque eu posso falar com um amigo na Califórnia ou na Austrália e aí não conheço meu vizinho de casa, o amigo do bar, o colega de escola. Onde vai parar o homem?
Além disso, a técnica é a forma mais elevada de racionalidade já alcançada pelo homem, que consiste em obter o máximo de objetivos com o mínimo de uso de meios. Uma racionalidade que a técnica tem em comum com o mercado. Só que o mercado ainda tem uma paixão humana que é a paixão pelo dinheiro, da qual a técnica está totalmente isenta.
A técnica não visa um propósito, não promove um sentido, não abre cenários de salvação, não redime, não diz a verdade: a técnica funciona. E se o seu funcionamento se torna universal, e sobretudo se torna a mentalidade de cada um de nós, então o homem sai da história, porque o homem também é irracional. Irracional é a dor, irracionais são o amor, o desejo, a imaginação, a ideação, o sonho, que a técnica percebe como elementos de perturbação, porque atrapalham aqueles que são os seus valores: eficiência, velocidade e produtividade.