06 Novembro 2015
"A complexidade de Pasolini, que aos 14 anos entrou na Universidade de Bolonha para estudar Literatura, nasce dessa explosão de referências, extraídas das artes plásticas italianas tanto quanto de suas letras e de seu cinema", escreve Rosane Pavam, editora da Revista CartaCapital, em artigo publicado por CartaCapital, 05-11-2015.
Eis o artigo.
Quarenta anos não apagaram este crime. Cineasta, poeta, historiador da arte, crítico da acumulação capitalista e ensaísta de um novo humanismo, Pier Paolo Pasolini morreu em 2 de novembro de 1975, aos 53 anos de idade, tingido pela crueldade que combateu. Seus assassinos só poderiam ter sido aqueles abertamente acusados por ele, os burgueses que, à época como hoje, ditavam possuir as coisas em lugar de vivê-las.
Mas, bem representada pela máfia, a ala direita da Democracia Cristã, os capitalistas da corrupção, os moralistas de carteira ou os fascistas de sempre, a burguesia jamais estaria entre os suspeitos por esse crime. A polícia a substituiria por um invisível dos subúrbios, o garoto de programa Giuseppe Pelosi, de 17 anos. Ele teria esmagado os testículos de Pasolini com barra de ferro e, a bordo do Alfa Romeo do artista bolonhês, atropelado diversas vezes de modo a estilhaçar seus ossos, apenas por recusa a que o artista o sodomizasse da maneira vil.
A versão policial, contudo, não pareceu aceita por todos. Duas décadas após o assassínio, o diretor Marco Tullio Giordana filmou Pasolini – Um delito italiano, que, por expor contradições do processo, teria motivado Pelosi a negar sua antiga confissão. As investigações foram reabertas pela polícia romana em 2005, mas a Justiça não viu indícios suficientes para cravar a autoria do crime.
A morte do poeta, cujas últimas 24 horas vêm apresentadas em uma ficção cinematográfica a estrear no Brasil dia 5, o Pasolini de Abel Ferrara, permanece um mistério que ele próprio talvez tivesse intuído. “Eu sei os nomes dos responsáveis pelo que tem sido chamado de golpe”, escreveu no poema O Romance dos Massacres (1974) sobre o conservadorismo crescente. “Eu sei. Mas não tenho provas. Não tenho nem sequer indícios. Eu sei porque sou um intelectual, um escritor que tenta acompanhar tudo o que acontece, conhecer tudo o que se escreve a respeito, imaginar tudo o que não se sabe ou que se cala.”
Publicado no livro Relatos Corsários, o poema chega ao Brasil acompanhado de uma cuidada seleção de versos (Poemas, de Pier Paolo Pasolini, Cosacnaify, 320 págs., R$ 59,90) organizada por Alfonso Berardinelli e pelo tradutor Mauricio Santana Dias, que expõe a verve incomum do artista. Assemelhava-se a um “poeta cívico”, como o queria o amigo e escritor Alberto Moravia, um artista de intento revolucionário que unia o tom de manifesto ao profundo lirismo. Mas era também um artífice da contradição, aquela que, por exemplo, o fez apoiar os policiais pobres diante dos estudantes burgueses nas manifestações de 1968 (O PCI aos Jovens!).
Em outra manifestação talvez paradoxal, ele se disse encantado por Antonio Gramsci, que, pessimista em pensamento, morreria em 1937, aos 46 anos, sem jamais declinar do combate antifascista. Contudo, por conta talvez dos inúmeros erros da ação comunista, um deles a culminar com a morte de seu único irmão, o partigiano Guido, em 1945, Pasolini algo se distanciasse do pensador, a mais respeitada face do partido, como escreve em As Cinzas de Gramsci, de 1957: “O escândalo de me contradizer, de estar com e contra ti; contigo no peito, à luz, contra ti nas negras entranhas”.
Como lembra Santana Dias, Pasolini é um poeta “absolutamente fundamental” do século XX, e não só em âmbito italiano. “Sua poesia desconcerta o leitor, o coloca diante de impasses e situações-limite, nos leva a pensar com ele as questões mais cruciais de nosso tempo, que ainda estão na ordem do dia, especialmente em um país como o Brasil. Isso tudo com uma força e um vigor raramente superados.”
O tradutor trabalhou por dois anos ao lado do crítico Berardinelli, que fez uma primeira seleção de poemas, desde os primeiros produzidos em dialeto do Friúli, região de origem de sua família (como Poesia em Casarsa, de 1942), até as composições de Trasumanar e Organizar, de 1971. Santana Dias sugeriu-lhe o acréscimo dos poemas compostos durante sua viagem ao Brasil naquele ano. “A resignação nada tem a invejar ao heroísmo”, diz um dos versos de Comunicado à Ansa (Um cão), que parece falar de perto ao País.
O maior desafio do tradutor consistiu em verter os poemas compostos na língua do Friúli. “Parti das próprias traduções que Pasolini fez desses textos para o italiano, mas sempre tentando reconstituir em português brasileiro a forma e os ritmos dos versos. Consultei dicionários e gramáticas do friulano, escutei o próprio poeta lendo seus poemas dialetais”, conta. É preciso destacar como, para o leitor brasileiro, as dificuldades de compreensão parecem mínimas, enquanto os sentidos dos versos se multiplicam, como neste Dedicatória (1941), a insinuar uma aproximação com a poesia oriental: “Fonte d’água de minha vila./ Não há água mais fresca que em minha vila./ Fonte de rústico amor”.
Seu princípio, seu mundo. Nas primeiras manifestações poéticas ou nas obras teatrais de juventude, como I Turcs tal Friul, ele usou o friulano de modo a cultuar a autenticidade diante de um capitalismo uniformizante e aterrador. Mas, saído da Bolonha natal na juventude, residente nas áreas periféricas pobres da capital italiana e impressionado com a clareza de Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, assumiria o romano como sua língua cinematográfica, aquela que de certo modo criaria ao lado do escritor Sergio Citti. Em relação à poesia, segundo Santana Dias, o artista só alcançaria uma maior comunicabilidade, “quase prosaica”, nos últimos dois livros. Sua produção, de resto, seria bastante complexa, formal e conceitualmente.
“Eu sou uma força do Passado. Só na tradição consiste meu amor. Venho dos escombros, das igrejas, dos retábulos, das aldeias abandonadas nos Apeninos ou Pré-Alpes, onde viveram meus irmãos”, escreve em Poesia em Forma de Rosa, de 1962. (E o diretor norte-americano Orson Welles a interpreta no episódio A Ricota do filme Relações Humanas, de 1963.) O passado é também sua mãe, aquela que, diante do “fracasso anônimo do mundo”, penteia-se ao espelho, “pensando nesse filho já sem vida”. A complexidade de Pasolini, que aos 14 anos entrou na Universidade de Bolonha para estudar Literatura, nasce dessa explosão de referências, extraídas das artes plásticas italianas tanto quanto de suas letras e de seu cinema. Portanto, quando cita a figura do irmão, ele pode remeter a Guido, a si próprio ou ao Jesus bíblico de que trata em pelo menos duas ocasiões, com o requinte da pintura.
Em Mamma Roma (1962), seu segundo longa-metragem, que reestreia no Brasil dia 5, ele se inspira, como nota a pesquisadora brasileira Maria Betânia Amoroso, no Cristo Morto de Andrea Mantegna. O pintor do século XV lhe parece o ideal para expor, com paixão intensa, o martírio do jovem Ettore, a quem a mãe feirante, interpretada por Anna Magnani, deseja um impossível futuro melhor.
E em O Evangelho Segundo São Mateus (1964), a própria mãe do cineasta protagoniza Maria, o sorriso compassivo diante de seu Cristo descido da cruz muito semelhante ao que Susanna Pasolini expressaria durante o enterro do próprio filho, em 1975. Os ditos do evangelista, contidos no filme, algo explicam os seus: “Vós ouvireis com os ouvidos, mas não entendereis. Vereis com os olhos, mas não compreendereis. Pois o coração deste povo se tornou insensível”.
Pasolini é uma “figura angelical” para o cinema italiano e de todo mundo, como acredita Gian Piero Brunetta, um dos maiores historiadores da arte na Itália. “Com um dom extraordinário de Midas, ele transformou em matéria poética tudo em que tocou.” Foi um dos poucos a envolver os lugares e os personagens degradados com a grandeza da imagem clássica, próxima de um sentido do sagrado.
“E se revelou capaz de indicar aos artistas futuros um caminho a percorrer diante da marginalidade social, dos confrontos entre a civilização opulenta e consumista, do subdesenvolvimento, dos novos horizontes das identidades sexuais e das batalhas pela defesa da diversidade.” Nos 40 anos desde a sua morte, é como se Pasolini revivesse e se oferecesse, quase único, a uma comunhão entre os cineastas de muitos gêneros, dos cômicos populares aos difíceis autorais, em busca das transformações urgentes.
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