13 Mai 2020
"Deus não é o único destinatário da dimensão religiosa, assim como não o é um amor genérico pelo próximo. Porque o próximo não é o necessitado que precisa de nós, mas, como Enzo Bianchi escreveu em seu livro, o próximo somos nós quando "nos tornamos próximos" daqueles que precisam de nós", escreve o filósofo, antropólogo e psicólogo italiano Umberto Galimberti, em artigo publicado por La Stampa, 11-05-2020, comentando o resgate de Sílvia Romano, 23 anos, italiana, voluntária no Quênia, depois de 18 meses sequestrada e libertada na Somália pelo grupo terrorista. A tradução é de Luisa Rabolini.
Talvez Silvia tenha se convertido, talvez por necessidade, talvez por sobrevivência em tempo de cativeiro, talvez por convicção íntima. Não acredito tenha sido pela "Síndrome de Estocolmo", típica daqueles que sentem um sentimento pelo sequestrador, que se alimenta por todo o período de cativeiro até se traduzir em uma relação de amor e submissão voluntária, porque neste caso Silvia, assim que fosse libertada, não teria dito com orgulho: "Fui forte". E ao seu retorno, não teria abraçado alegremente sua família, depois de ter-se separado para sempre de seu amor.
Silvia Romano (Foto: Leggilo.org)
Então, por que a conversão? Nós não sabemos. E não devemos sequer investigar, a fim de não violar aquele segredo que cada um de nós guarda profundamente na própria alma, que é precisamente a nossa dimensão religiosa. Uma dimensão tão pessoal, tão própria, tão difícil de comunicar, porque quando lidamos com sentidos e significados que vão além da nossa experiência compartilhada, todo discurso, no momento em que se oferece à conversa corriqueira, corre o risco de ser mal interpretado.
Então, por que se preocupar com isso? Para inspirar-se nesse episódio para entender o que realmente é uma dimensão religiosa, para além daqueles que aderem por tradição, por necessidade de consolo ou, pior, por necessidade de pertencimento. Religiosa é aquela atitude que caracteriza aqueles que não aceitam que todo sentido e todo significado se esgotem na realidade existente em que vivemos cotidianamente. Religiosa é a busca de um algo a mais de sentido que aqueles que acreditam chamam de "transcendência" e que cada um de nós sente a cada momento de insatisfação, de desilusão, de desconforto ou até de não completude pelo que está sendo alcançado no curso da própria existência.
Silvia Romano (Foto: Sullastrada.org)
Talvez tenha sido precisamente essa experiência que levou Silvia a abandonar por um certo período seus projetos de vida na Itália e a ir prestar ajuda na África entre a população mais pobre e esquecida da Terra. E já essa sua escolha, que, para o nosso modo de pensar habitual, geralmente não encontra uma aprovação incondicional, fala de sua dimensão religiosa que talvez não encontrava uma resposta adequada e suficiente em sua dedicação ao cuidado das crianças da paróquia em que ela morava. É a mesma dimensão religiosa que promove a escolha de médicos sem fronteiras, de Emergency, das organizações não-governamentais que salvam no mar os desesperados da terra, de todos aqueles que se dedicam ao voluntariado, acreditando ou não em Deus. “Deus chegou na religião com grande atraso", escreve Gerardus Van der Leeuw, o maior historiador das religiões do século passado. Deus não é o único destinatário da dimensão religiosa, assim como não o é um amor genérico pelo próximo. Porque o próximo não é o necessitado que precisa de nós, mas, como Enzo Bianchi escreveu em seu livro, o próximo somos nós quando "nos tornamos próximos" daqueles que precisam de nós. Em seu longo cativeiro e coexistência com carcereiros muçulmanos, nas noites insones e nos longos silêncios que caracterizam toda reclusão, Silvia pode ter lido o Alcorão e, meditando algumas passagens desse livro, pode ter concluído que a religiosidade, como é vivida no Ocidente, perdeu, para muitos, todo contato com o mundo da transcendência, com esse algo a mais de sentido que caracteriza toda verdadeira dimensão religiosa. E a partir daí, ela pode ter aceito aquele Allah akbar, aquele "Deus é o maior", não para causar massacres, mas para reconhecer que há uma dimensão maior do nosso eu, dos nossos projetos, dos nossos sonhos, das nossas ambições. E quando não somos nós, como no caso de Silvia no cativeiro, que decidimos a nossa vida, pode acontecer que se vivencie aquilo que Freud, ateu, já constatava quando dizia que "o eu não é senhor em sua própria morada".
Silvia Romano (Foto: Vatican Media)
Se a conversão de Silvia, sobre a qual nada sabemos e não queremos saber, tivesse esse significado, aliás consistente com sua biografia, seria uma grande lição para nós também. Não para nos convertermos ao islamismo, mas para não esgotar nos projetos de nosso eu todo sentido de nossa existência, que, em todo caso, está sempre em busca de um significado adicional, em relação àquele predisposto pela hipertrofia de nosso eu. E isso com ou sem Deus.
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Naquela solidão, Silvia Romano encontrou o seu deus. Artigo de Umberto Galimberti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU