20 Junho 2023
"Se aqui está a linha divisória, se existe uma espécie de iluminismo cristão, pode-se ter certeza de que os solitários que compõe essa caravana representam realmente o sal da terra, dão sabor à sua substância à luz daquela perspectiva metodológica que tem a aparência de um desafio nunca concluído: aquele de colocar-se na margem oposta do grande rio da fé, fazendo dela a eterna aventura nas sendas difíceis da espiritualidade ou, para ser mais preciso, nas inquietações de um cristianismo na virada de um século XX que tentou propor-se como a época em que o reino de Deus e a cidade do homem precisaram dialogar entre si usando as linguagens da contemporaneidade", escreve Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 18-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Liberi di credere (Livres para acreditar, em tradução livre). Bruno Quaranta compõe uma série de rostos imersos em um desafio nunca concluído: fazer da fé a eterna aventura nos meandros da espiritualidade.
Parafraseando um título de Pier Paolo Pasolini, ao terminar de ler Liberi di credere, cabe se perguntar qual seria a religião do tempo em que estamos imersos, se ela se limitaria a um abstrato enunciado de regras e preceitos ou se não haveria necessidade mais ou menos latente de dar cumprimento a um horizonte de promessas e expectativas, aquela infinita luta entre as profecias da história e as inadimplências da história. O livro se situa no ponto de contato entre esses dois extremos escolhendo a fórmula do diálogo, da entrevista (todas datadas do período anterior e posterior ao advento do terceiro milênio) com figuras carismáticas de uma parte do século XX que acreditou na Palavra, apesar da natureza problemática das suas epifanias, como manifesto de uma renovação espiritual sentida em torno do Concílio Vaticano II.
Liberi di credere, de Bruno Quaranta (Foto: Divulgação)
O que orienta a mão de Bruno Quaranta essa espécie de investigação sobre o Deus contemporâneo é a busca de testemunhas ligadas entre si por um projeto de cristianismo vivido com alto índice de laicidade – de Carlo Maria Martini para Paolo De Benedetti, de Arturo Paoli a Gianfranco Ravasi, de Ermanno Olmi a Luigi Bettazzi, de Raniero La Valle a Bartolomeo Sorge, de Walter Kasper a Giorgio Bouchard, de Enzo Bianchi a Eugenio Corsini, só para citar alguns - vozes claras de um debate voltado a inverter a própria noção de civilização cristã, talvez perseguindo a ideia de que Deus está presente quando mais se cala e até no crepúsculo de uma sociedade que acreditou cegamente na perfeição tecnológica, espelhando-se na doutrina do útil e do pragmático, deve-se manter firme o preceito de Isaac B. Singer quando declarava: “Creio na misericórdia, não no rigor da lei". Nesse núcleo encontra-se a essência do livro, declarada em uma página que Bruno Quaranta coloca como um limiar: viver a fé colocando-se do lado de quem não acredita, a partir daquilo que imaginava o cardeal Martini durante os anos à frente da diocese de Milão.
O resultado é uma “caravana de solitários”, como afirma uma belíssima definição que se poderia assumir como rótulo “figuras tão enraizadas no mundo, mas não invadidas pelo mundo”; solitários sim, mas não exíguas em número e, acima de tudo, nomes de primeira linha em reivindicar uma liberdade, a mesma evocada no título do livro, precisamente, que é a pedra angular do Evangelho de todos os tempos, a inevitável encruzilhada que faz da experiência cristã a sua cruz e o seu deleite.
Justamente Martini, o homem que dirigiu a igreja ambrosiana por mais de vinte anos, transportando-a das águas perigosas dos anos de chumbo (será a ele que os terroristas entregarão as armas) à passagem do milênio, indica a essência deste diálogo com Deus: “A diferença relevante não é entre crentes e não crentes, mas entre pessoas que pensam e pessoas que não pensam". Pareceria uma provocação e, ao contrário, se trata de um paradigma indispensável caso se queira chegar, de uma vez por todas, à explicitação de uma fé adulta.
Se aqui está a linha divisória, se existe uma espécie de iluminismo cristão, pode-se ter certeza de que os solitários que compõe essa caravana representam realmente o sal da terra, dão sabor à sua substância à luz daquela perspectiva metodológica que tem a aparência de um desafio nunca concluído: aquele de colocar-se na margem oposta do grande rio da fé, fazendo dela a eterna aventura nas sendas difíceis da espiritualidade ou, para ser mais preciso, nas inquietações de um cristianismo na virada de um século XX que tentou propor-se como a época em que o reino de Deus e a cidade do homem precisaram dialogar entre si usando as linguagens da contemporaneidade. E é exatamente essa a perspectiva a partir da qual Bruno Quaranta decide observar os rostos de seus interlocutores, com o objetivo de descortinar neles não afirmações de verdade, mas dúvidas, não respostas para perguntas, mas pistas de pesquisa.
Ao fazer isso, compõe uma galeria de retratos que precisam apenas de uma pequena definição para fornecer a chave de leitura de toda a obra: como não citar os apelidos fulgurantes atribuídas a Carlo Carena ("o último solitário de Port-Royal") ou a Adriana Zarri ("uma guardiã da vida não ajoelhada") ou Camillo De Piaz ("uma das últimas sentinelas da sarça ardente")?
Como se tudo isso não bastasse para ilustrar bem a riqueza moral desse livro, acrescenta-se outro detalhe.
Falando de Deus, passamos a entender melhor o tempo que atravessamos, os recursos e fragilidades que acompanham a nossa existência como ocidentais imperfeitos, inclusive as questões através das quais transitou o espírito do século: o advento de uma sociedade mais igualitária e o fim das ideologias, a consciência do mal e a busca da graça, os erros e os remédios da modernidade. “A confusão do coração humano”, como teria escrito Manzoni, citando Pascal à sua maneira.
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Uma caravana de solitários em suas dúvidas. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU