06 Junho 2023
"Filho da mansidão é o perdão que nos convida a deixar cair das mãos a pedra que seguramos para ferir o inimigo, que transforma a espada em lâmina de arado e a lança em foice, como já sugeria o profeta Isaías (2,4)", escreve Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 28-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Virtude. Eugenio Borgna faz ressoar as palavras de Cristo: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” e recorda teólogos, poetas e autores que a celebraram “Nas horas tão escuras e tão dolorosas, em que escrevo este livro sobre uma das virtudes mais luminosas e fascinantes da vida, a mansidão, vejo em minha imaginação as cenas de um filme, e o rosto luminosa de Dominique Sanda, e o caminho que a levará ao suicídio adolescente”. Assim confessa um dos maiores mestres da psiquiatria italiana, Eugenio Borgna, um lúcido e criativo patriarca de 93 anos, repassando em sua memória as imagens de um admirável filme de Robert Bresson, Uma mulher delicada, filmado em 1969. Os protagonistas eram justamente Ela, uma mulher que se casou ainda muito jovem, e Ele, o marido empregado na casa de penhores, que agora está diante do cadáver da suicida, no ato extremo de libertação de um cativeiro existencial.
São muitas as evocações literárias que incrustam esse precioso livro das Vele da Einaudi, dedicado a uma virtude terna e delicada e por isso mesmo frágil, a mansidão. Aliás, antes de fechar a última página escrita “no silêncio de uma casa, imersa num grande jardim luminoso, numa pequena cidade, ladeada por dois lagos, de Orta e Maggiore”, Borgna enumera meticulosamente os autores que quase criaram o palimpsesto do ensaio: dos teólogos Bonhoeffer e do cardeal Martini a uma série de poetas (Leopardi, Dickinson, Rilke, Pozzi, Corazzini), de escritores famosos como Dostoievski (que compôs uma história dramática intitulada de forma emblemática Uma criatura dócil) e Tolstoj com sua trágica Anna Karenina, até um filósofo como Norberto Bobbio.
É precisamente a este último que devemos um Elogio della mitezza (1993), a virtude mais "impolítica" também em nossos dias, quando toda compaixão é ignorada e se opta por uma altivez orgulhosa pessoal e nacionalista que beira a agressividade e até se inspira no fascínio obscuro da violência. No entanto, como Bobbio observava, "a mansidão não renuncia à luta por fraqueza, por medo ou por resignação”, mas sem cessar coloca uma semente nas frestas da história para que cresça "no progresso, paz e respeito pela dignidade de cada pessoa". Ressoam então, do cume do Monte das Bem-aventuranças as palavras de Cristo: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra" (Mateus 5, 5).
Bonhoeffer, dócil vítima da brutalidade nazista, lembrará - e Borgna o cita - que “aqueles que agora possuem a terra pela força e injustiça, irão perdê-la, e aqueles que agora renunciaram totalmente a ela, que foram mansos até a cruz, dominarão a nova terra... A partir do Gólgota, que é um pedaço de terra, onde morreu o mais manso dos mansos, a terra deve se renovar”.
O apelo daquele homem, Jesus de Nazaré, crucificado na colina de Jerusalém, tinha sido claro e se baseava no seu autorretrato: "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mateus 11,29). Sugestivamente, Borgna encontra nessa virtude uma qualidade requintadamente feminina e o demonstra usando o Diário de outra mártir do nazismo, a jovem (29 anos!) judia Etty Hillesum com a estupenda parábola do jasmim citada nas páginas 35-36 do ensaio.
Nessa mesma linha, abrem-se capítulos verdadeiramente emocionantes que brotam da longa e amada missão de psiquiatra feminino e que se expressam em outro diário, o de Valéria, internada no manicômio de Novara, cujos trechos citados são “testemunhos pungentes da fragilidade e da riqueza humana, ainda hoje tão contestadas pelas palavras cruéis e áridas com que se fala da loucura". E aqui o pensamento vai para outro escritor psiquiatra, Mario Tobino, e ao seu Libere donne di Magliano de 1953, um livro nascido não só de uma competência profissional, mas também de uma vocação de amor paralela à testemunhada por Borgna: “A minha vida é aqui, no manicômio de Lucca. Aqui se desenrolam os meus sentimentos. Aqui eu vejo o nascer do sol, o pôr do sol e o tempo passa na minha atenção. Dentro de um quarto do manicômio estudo os homens e os amo”.
Percebe-se, portanto, que sob o manto desta virtude fraca, doce e feminina se amontoam outras sentimentos e valores, como sabedoria, consciência da própria fragilidade, nostalgia, respeito, ternura, caridade. Borgna escreve ainda: “A mansidão, em seus horizontes camaleônicos, é frágil como uma borboleta, mas tem força para sair do egoísmo e do individualismo escancarando as portas à sabedoria. Bem-aventurados os mansos, porque a mansidão é uma estrela da manhã". Não é à toa que o autor em uma série de pequenos livros anteriores seguiu um cortejo - semelhante a certas procissões do interior com suas flâmulas e estandartes – composto por figuras como a esperança, a solidão, a gentileza, a nostalgia, a ternura.
A essa fila ordeira e pacata, que ignora a gritaria, a violência e a vulgaridade reinante, acrescentamos uma figura. Filho da mansidão é o perdão que nos convida a deixar cair das mãos a pedra que seguramos para ferir o inimigo, que transforma a espada em lâmina de arado e a lança em foice, como já sugeria o profeta Isaías (2,4). Ou ainda mais intensamente Cristo: "Amai os vossos inimigos e orai pelos vossos perseguidores" (Mateus 5,44).
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A mansidão abre as portas para a sabedoria. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU