13 Junho 2023
“Esse atrator tem várias faces, mas uma delas é particularmente interessante: pode ser chamada de ‘seca’. E sua resposta indefensável: ‘garantir o monopólio da água’. O poder da seca é que ela nos restitui à nossa condição de seres vivos, e nos alinha em um destino comum com os demais seres vivos – sem a necessidade da teoria”. A reflexão é de Baptiste Morizot, publicada por L’Obs, 09-06-2023. A tradução é do Cepat.
O que faz com que pessoas tão diferentes se reúnam em torno de uma megabacia artificial para denunciar sua existência e colocá-la fora de perigo? Apesar das diferenças de filiação política, geracional ou de corporação? Camponeses e ecologistas, zadistas e políticos, forças que se cristalizaram voluntariamente como adversárias. Como podem se alinhar numa mesma ação, por exemplo, a Confédération Paysanne e naturalistas, em âmbito local, para formar uma frente comum? É como se um novo atrator gravitacional tivesse entrado na paisagem e distorcido o campo de força, de modo a desdobrar de outra forma os caminhos de convergência e divergência da ação política.
Esse atrator tem várias faces, mas uma delas é particularmente interessante: pode ser chamada de “seca”. E sua resposta indefensável: “garantir o monopólio da água”. O poder da seca é que ela nos restitui à nossa condição de seres vivos, e nos alinha em um destino comum com os demais seres vivos – sem a necessidade da teoria.
A seca é um trauma transespecífico: ela circula através da barreira das espécies. Vemos uma árvore sedenta, uma pradaria seca, e sentimos isso em nossa carne. Na Botânica, fala-se de estresse hídrico para as plantas, fazendo circular um conceito que pensávamos ser apenas animal, que conhecemos bem em nossos corpos, para formas de vida muito distantes. A seca da vegetação estressa todo o ambiente à nossa volta. Toda a vida o compartilha. Nada liga melhor o ser humano à sua condição de ser vivo do que a seca. Na roda de conversa dos Asséchés anonymes, todas as formas de vida têm seu assento.
Na herança da tradição moderna, construída sobre a oposição entre natureza e sociedade, podemos amar e proteger a natureza, mas é sempre vista como algo exterior a nós. As estruturas mentais e econômicas dominantes são tais que devemos escolher entre dedicar energia e tempo aos interesses humanos ou à biodiversidade. São essas estruturas inconscientes que os atratores, de maneira natural, neutralizam. Chamo de atrator vital qualquer objeto político que visibiliza destinos comuns e alianças objetivas através de fronteiras ontológicas herdadas: entre seres vivos humanos e não humanos, entre natureza e sociedade, uso e proteção de ambientes. O atrator vital reconstitui frentes comuns interespécies. É um atrator tudo o que nos permite lutar de maneira natural pelos seres vivos não humanos e por formas de justiça e igualdade entre humanos.
A habitabilidade é um atrator desta ordem, é mesmo o seu arquétipo. Quando falamos em lutar pela habitabilidade da Terra, ou de um ambiente vivo, nunca se trata da habitabilidade apenas para os humanos, porque é a tessitura dos seres vivos que torna o ambiente habitável para todos. É isso que o declínio dos polinizadores, da fauna dos solos e dos insetos europeus torna dolorosamente sensível hoje. É sempre a vida que torna o mundo habitável para a vida. A habitabilidade é um atrator político que une indistintamente os seres vivos humanos e os não humanos. E não se trata de formular lutas ecológicas de “proteção da natureza” de um lado, e lutas sociais de outro, para depois fazê-las convergir (embora isso faça sentido). Trata-se de deixar emergir no campo questões de luta que são atratores espontaneamente terrestres.
Para construir uma estrada inútil, artificializar solos agrícolas, pradarias e florestas: eis outra ação acima do solo que entrelaça um ataque aos usos humanos terrestres e ao mundo vivo não humano. Esses ataques fazem emergir atratores políticos cuja originalidade é esta: eles nos mobilizam como humanos em nossa condição de seres vivos entre os seres vivos. Eles reformulam o “a favor” e o “contra” da luta. Compartilhar a água entre humanos e com outros seres vivos, contra o seu monopólio pela agroindústria. Deixar a terra, agrícola e selvagem, respirar e florescer, em vez do seu concretamento. Cada ser vivo está aí por suas razões, muitas vezes preocupados primeiro com uma questão do que com a outra, mas reconhecendo a existência e a relevância de cada dimensão.
Então, sindicalistas se metem a falar de salamandras e protetores de áreas úmidas selvagens sobre justiça social. E é aqui que os problemas das divergências ideológicas e as tradicionais obsessões pela hierarquização das causas (“primeiro temos de defender a agricultura, as áreas úmidas são secundárias” – ou o contrário) não fazem mais sentido. Não é que sejam resolvidos e priorizados com clareza, é que são colocados em segundo plano. Esta é a força desses atratores vitais que criam frentes comuns entre os seres vivos, sem contrapor selvagens e domésticos, natureza e interesses humanos.
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“Nada liga melhor o ser humano à sua condição de ser vivo do que uma seca”. Artigo de Baptiste Morizot - Instituto Humanitas Unisinos - IHU