10 Junho 2023
"O jovem Silvestrini ingressou na Secretaria de Estado em 1953 quando, após a morte de Josef Stálin e o fim da Guerra da Coreia, começaram a se perceber os primeiros tímidos sinais de uma possível distensão entre Leste e Oeste", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 06-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Achille Silvestrini (1923-2019) foi uma testemunha muito especial da Ostpolitik da Igreja na segunda metade do século XX. Colaborador próximo do secretário de Estado Domenico Tardini, depois de seu sucessor Amleto Giovanni Cicognani e, em outra função, de Agostino Casaroli, tornou-se também o homem do diálogo com o Partido Comunista Italiano. Diálogo mantido aberto do lado do PCI – especialmente nos anos em que foram secretários primeiro Palmiro Togliatti, depois Enrico Berlinguer, muito sensível a essa questão – por Franco Rodano. Posteriormente por Tonino Tatò, Carlo Cardia, pelo vaticanista da “Unità” Alceste Santini e por Massimo De Angelis. E por Paolo Bufalini que, em nome das Botteghe Oscure, acompanhou o trabalho de revisão da Concordata. O universo já bem explorado por Daniela Saresella em Cattolici a sinistra: d modernismo ai nostri giorni (Laterza). Temas que agora são objeto de uma acurada investigação histórica por Emma Fattorini com o livro Achille Silvestrini: la diplomazia della speranza (Achille Silvestrini: a diplomacia da esperança, em tradução livre), nas livrarias a partir de 15 de junho pela Morcelliana.
Capa de Achille Silvestrini: la diplomazia della speranza, de Emma Fattorini. (Foto: Divulgação)
Um estudo impecável que se vale muitos dos testemunhos em primeira mão do cardeal a quem o livro é dedicado. Cardeal que a autora teve ocasião de entrevistar com bastante intensidade: “Era quase um hábito”, escreve Fattorini, “com dom Achille – como queria ser chamado o Cardeal Silvestrini – registrar a sua voz, comentários, balanços, histórias e principalmente memórias que eu transcrevia e ele relia e corrigia”.
O primeiro personagem importante com quem Silvestrini mantém uma relação intensa é Domenico Tardini, destinado a ser nomeado secretário de Estado por João XXIII em 1958. Mas sua personalidade já havia se imposto há muitos anos, durante o pontificado do Papa Pacelli. Tardini havia sido contra o partido único dos católicos (ele achava que deveria haver duas formações católicas: uma maior de centro-direita, uma "menor" mais deslocada à esquerda). Mas depois cedeu aos desejos de Pio XII, de Giovanni Battista Montini e Alcide De Gasperi. O seu “tenaz anticomunismo... se fundava na ideia de que a Igreja, e somente ela, era e deveria permanecer a única depositária de uma natureza ‘totalitária’ senão mesmo ‘totalizadora’ da Christianitas”. E não deveria ser “jamais obrigada a rebaixar-se ao nível da sociedade leiga e política". No final dos anos 1950 Silvestrini seguiu com "consciência vigilante" a "nova orientação da Democracia-cristã" surgida das viagens a Moscou de Giorgio La Pira e Amintore Fanfani. Tardini morreu em julho de 1961, quatorze meses antes da abertura do Vaticano II e, portanto, é impossível até mesmo formular hipóteses sobre que repercussões teria sobre ele a experiência conciliar.
O jovem Silvestrini ingressou na Secretaria de Estado em 1953 quando, após a morte de Josef Stálin e o fim da Guerra da Coreia, começaram a se perceber os primeiros tímidos sinais de uma possível distensão entre Leste e Oeste. Sinais realmente quase imperceptíveis. Algo mais tornou-se claro em meados dos anos cinquenta. Mas com honestidade intelectual Silvestrini reconhecia mesmo décadas depois de não lembrar “que naquelas circunstâncias tínhamos demasiadas esperanças de mudanças positivas para a Igreja, cuja situação nos países atrás da Cortina de Ferro continuava sendo sempre a mesma dos anos 1948-49". Isso para dizer que não é culpa de Pio XII se a distensão entre a Igreja de Roma e os países comunistas não começou após o XX Congresso do PCUS (1956), as reuniões em que Nikita Khrushchev expôs os crimes de Stalin. Além disso, naquele mesmo 1956 a URSS esmagou no sangue a revolução – obrigando – como veremos em breve – o cardeal Mindszenty recém-libertado da prisão comunista a se refugiar na embaixada estadunidense.
Na obstrução das passagens táticas daquele diálogo se destacava a figura do cardeal Jozsef Mindszenty, arcebispo metropolitano de Esztergom e primaz da Hungria desde 1945. Um gigante na história da Igreja nos países da Europa oriental que, recorda Fattorini, podia ostentar um passado glorioso de mártir. Já preso em 1944 pelos nazistas, Mindszenty foi novamente trancado em uma cela pelos comunistas. Aconteceu em 1949, depois de um processo farsa durante o qual o cardeal foi drogado, torturado e condenado à prisão perpétua por alta traição. Depois ele foi solto em 1956 como resultado da insurreição húngara e mal teve tempo de se expressar a favor do governo de liberalização de Imre Nagy. A liberdade durou, porém, poucos dias. A intervenção dos tanques soviéticos, que esmagaram a revolta em Budapeste, obrigaram-no, como já foi dito, a refugiar-se na embaixada estadunidense onde permaneceu por quinze anos. Em 1971, por intercessão do presidente dos EUA Richard Nixon, ele recebeu permissão de deixar a embaixada e se mudar para a cidade do Vaticano.
A posição de Mindszenty foi, segundo Emma Fattorini, totalmente semelhante à de Pio XII que – como contou Lucia Ceci em La Fede Armata. Cattolici e violenza politica nel Novecento (il Mulino) – diante da repressão soviética da revolução húngara, chegou a se perguntar se não seria lícito e oportuno chamar os católicos para uma cruzada contra o comunismo. Com João XXIII e Paulo VI – como veremos – o vento mudou. Mas o cardeal húngaro, afirma Fattorini, sempre se manteve "intransigentemente hostil" a uma política de diálogo com os comunistas; “contrário a qualquer tipo de diálogo” com os governos da Europa de Leste, considerava-se vítima da própria Ostpolitik, chegando a protestar junto ao secretário de Estado do Vaticano, Jean-Marie Villot: “Por que vocês nomeiam bispos nos países do Leste? Seria melhor se não houvesse nenhum do que deixar aqueles que os governos lhes permitem nomear”, foi sua dura repreensão.
O novo clima de diálogo com os países comunistas era intolerável para Mindszenty: ele permaneceu no Vaticano por um período muito curto e logo depois mudou-se para Viena. Onde morreu em 1975 não sem ter entrado em conflito com o Papa Montini no momento em que este o dispensou do cargo de Metropolita de Esztergom. A sua figura, escreve a historiadora, “continua a ser difícil de enquadrar". Foi sem dúvida “o porta-voz de uma ideia tradicional de nação que encarnou na plena fidelidade à Hungria e à defesa da religião católica". Seus perseguidores o marcaram como um "nacionalista paranazista". Em 2012, a Procuradoria-Geral da República húngara, após longa e minuciosa investigação, desmontou todas as acusações feitas pelo regime comunista contra o cardeal e em fevereiro de 2019 o Papa Francisco o declarou "venerável".
Mais flexível que Mindszenty foi outra personalidade da Igreja que se viu vivendo em condições semelhantes àquelas do cardeal húngaro: o arcebispo de Praga Josef Beran. Ele também prisioneiro dos nazistas (e deportado para o campo de concentração de Dachau, onde permaneceu por quase três anos) foi posteriormente encarcerado pelo regime comunista. Por catorze anos.
Em 1963 foi libertado após “negociações exaustivas” (Fattorini). Uma vez livre, Beran teve oportunidade de chegar a Roma, onde em 1965 foi nomeado cardeal, e teve chance de participar da última sessão do Concílio Vaticano II.
E neste ponto encontramos a figura de Agostino Casaroli, que em nome da Igreja de Roma conduziu as negociações para Beran e foi o primeiro a explorar as vias de diálogo com os comunistas. Para conhecê-lo mais de perto, dois livros são indispensáveis: o de Roberto Morozzo della Rocca, Tra Est e Ovest. Agostino Casaroli diplomatico vaticano (San Paolo) e aquele assinado por ele mesmo, Agostino Casaroli, Il martirio della pazienzia. La Santa Sede e i paesi comunisti (1963-1989) organizado por Carlo Felice Casula e Giovanni Maria Vian (Einaudi).
A Ostpolitik vaticana foi iniciada por decisão de João XXIII em junho de 1963 com uma missão de Casaroli a Budapeste e Praga (as cidades de Mindszenty e Beran). Ao começar essa estratégia, segundo o testemunho de Silvestrini, “pesou muito a concreta vontade de Roncalli de ter em Roma os bispos do Leste como participantes do Vaticano II". Houve, é verdade, algum sinal de distensão vindo da URSS: os cumprimentos de Nikita Khruschev pelo octogésimo aniversário da Papa Roncalli, a visita ao pontífice da filha de Khrushchev (acompanhada de seu marido, Aleksej Adjubei, diretor do jornal “Izvestija”), a libertação do metropolita ucraniano Josyp Slipyj do gulag de Dubravlag. Mas, ainda segundo Silvestrini, para João XXIII era "prioridade" fazer o possível para garantir a presença, mesmo que em número limitado, de prelados da Europa Oriental no Concílio. Na busca dessa presença “deve ser buscado, ainda que de forma circunscrita, o início dessa estratégia que teria sido estruturada em termos mais sistemáticos e teria dado seus frutos no final dos anos 1970".
Casaroli naquele momento estava em Viena – no papel de subsecretário da Congregação para o Assuntos eclesiásticos extraordinários – para uma conferência diplomática. João XXIII pretendia responder a um apelo (na verdade, um pedido de ajuda) enviado a ele pelo arcebispo Josef Beran segregado em local desconhecido na Tchecoslováquia. Teria sido o próprio Casaroli a contar depois sobre da sensação de "desorientação" pela qual foi acometido desde o início daquela missão. Com a sua viagem a Budapeste e Praga, escreve Emma Fattorini, “começou uma aventura diplomática que parece uma história de espionagem, muitas vezes vivida em solidão e em condições materiais precárias, tão distantes de fantasias imaginativas sobre a eficiência e a riqueza dos representantes pontifícios no mundo".
Nas memórias de Silvestrini, Casaroli encontrou o diálogo que não pôde ter com Mindszenty – não sem dificuldades iniciais – com Beran, que se estabelecera “numa linha possibilista". E com o cardeal polonês Stefan Wyszynski “um verdadeiro príncipe de sua Igreja, uma espécie de soberano eslavo, capaz de lidar tanto com as autoridades do governo local quanto diretamente com Moscou, inspirando respeito e temor geral” (Fattorini). Em 1971 Casaroli pôde ir a Moscou, onde, no entanto, não lhe foi permitido encontrar seu homólogo Andrej Gromyko. Teve contato com católicos russos dos quais "filtrava claramente o medo de que nossos esforços enfraquecessem ainda mais a sua já difícil situação e aumentassem o prestígio do regime".
O estudioso alemão Hubert Jedin escreveu – em Storia della mia vita (Morcelliana) - “o fato de o Vaticano firmasse com aqueles estados totalitários e em princípio hostis ao cristianismo convenções que não seriam respeitadas" poderia provocar em um historiador da Igreja "apenas um menear da cabeça". Especialmente porque a Igreja concedia muito e recebia "muito pouco de concreto" em troca. E a situação às vezes levava à nomeação de bispos "ambíguos, cooperadores do regime". O que fez de Casaroli em muitas ocasiões um incompreendido.
Felizmente, alguns anos depois, o contexto mudou. O marco fundamental foi a Conferência de Helsinque (1975): ao contrário de todos os céticos, Karol Wojtyla era de opinião que “era necessário fazer pesar aos governos comunistas aquele acordo”. “Os comunistas”, sustentava Wojtyla, “aceitaram esses direitos e agora têm que aplicá-los, acreditem ou não". George Weigel – no livro La fine e l’inizio. Giovanni Paolo II: la vittoria della libertà, gli ultimi anni, l’eredità (Cantagalli) – descartou Casaroli como “um velho burocrata” que foi “um obstáculo à ação libertadora do comunismo de João Paulo II". Silvestrini (assimilado por Weigel a Casaroli) obviamente não concordava com essa avaliação.
Grande é a admiração de Silvestrini por Paulo VI, o Papa “com quem teve talvez mais sintonia". O juízo sobre João Paulo II é mais articulado. Por sinal é marcante uma lembrança do discurso que o Pontífice polonês faria nas Nações Unidas em 2 de outubro de 1979.
No avião que os levava a Nova York, o Papa pediu para Casaroli reler o texto daquele discurso. "O chefe da Secretaria de Estado cortou as passagens mais duras relativas à liberdade religiosa e aos direitos humanos nos países comunistas, amplamente presentes na assembleia". Mas Wojtyla "colocou todas de volta".
Depois, em 1988, o Papa Wojtyla nomeou Silvestrini cardeal e o designou para a Assinatura Apostólica ("uma tarefa", dizia dom Achille, "que realmente não me agradava"). “Promoveatur ut amoveatur?”, perguntava-se Silvestrini sobre aquela “promoção”. "Não sei", era a sua resposta.
Eloquente.
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A distensão no Vaticano. Artigo de Paolo Mieli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU