Pós-teísmo: Deus não é a resposta, é a pergunta. Artigo de Sergio Paronetto

Foto: Ante Hamersmit | Unsplash

29 Abril 2023

"Na minha opinião, hoje o esforço dos crentes, empenhados em atualizar ou modificar a ideia de Deus, consiste precisamente na assunção da não-violência como substância e estilo da própria vida pessoal e comunitária e, portanto, como busca comum para enfrentar os desafios do mundo moderno injusto, violento e ferido", escreve Sergio Paronetto, formado em filosofia da religião, professor de literatura e história e vice-presidente da Pax Christi. É membro do Grupo para o Pluralismo e o Diálogo (Verona) que adere à Rete dei Viandanti.

O artigo é publicado por Viandanti, 27-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O repensamento pós-teísta da fé, à luz da ciência moderna, levanta temas importantes orientados à afirmação de uma nova ideia de Deus. O assunto, como costuma se dizer, é tão vasto e complexo que causa vertigem. Só podemos balbuciar. Diante de um uma questão tão grande, parece-me crucial nunca fechar a pesquisa (antropológica, filosófica, teológica, científica), não se deter em novos conceitos de Deus consideradas mais credíveis, com o risco de produzir novos dogmas atrelados a uma visão científica considerada conclusiva.

A , como a ciência, é sempre itinerante, aberta ao inédito, entrelaçada com a "maravilha" como raiz da sabedoria. Não oferece respostas definitivas. Ama a fecundidade de dúvida. Cultiva a inteligência da pergunta.

Tradição e tradições

Certamente é necessário superar a velha imagem tradicional de Deus, proposta por grande parte da Cristianismo "oficial", distante do dinamismo do pensamento humano. Mas isso pode ser feito também recuperando e desenvolvendo o que na própria tradição cristã havia várias vezes sido imaginado (mesmo que inicialmente rejeitado ou polido). Matthew Fox escreveu bastante a esse respeito no livro Original blessing [Bênção original] onde lista as várias teologias ou formas de espiritualidades que floresceram ao longo dos séculos. Ele as coloca, por um lado, na espiritualidade da queda-redenção, por outro na espiritualidade da criação.

Original blessing

Muito espaço é dado, obviamente, às visões dos místicos e das místicas antes, durante e depois da Idade Média, entre os quais Eckhart, Cusano, outros ou outras até o amado Teilhard de Chardin e as teologias da libertação. Muitas vezes acontece que diferentes imagens de Deus podem ser encontradas também em autores incluídos, por assim dizer, entre os "tradicionalistas", como Agostinho e Tomás. Acontece, às vezes, que algum tradicionalista seja um inovador e que um místico radical, defensor de uma profunda espiritualidade (como São Bernardo), resulte muito reacionário como defensor do "malicídio", da "guerra santa".

É óbvio que são diferentes, aliás opostas, as visões quase contemporâneas de Francisco de Assis e Inocêncio III, Celestino V e Bonifácio VIII, sem falar nas diferenças e contrastes entre o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano II, entre Descartes e Pascal, entre filosofia neoescolástica e personalismo cristão, entre modernistas e intransigente do início do século XX ou entre católicos ultratradicionalistas e o Papa Francisco. Tais posições convivem em todas as religiões e muitas vezes no mesmo sistema cultural de pertença, sobretudo nas suas relações com a política que condiciona toda expressão religiosa.

Textos bíblicos e simbolismo

Um discurso semelhante pode ser feito, a meu ver, analisando os textos bíblicos, escritos ao longo de cerca de oito séculos, e contendo várias formas de conceber Deus. De forma esquemática, de um lado encontramos um deus guerreiro e violento, onipotente e senhor, nacionalista étnico, ciumento e irado, machista e patriarcal, sacrificial e excludente. Do outro, um Deus pai e mãe, cosmopolita e inclusivo, espírito e verdade, sábio e justo, não violento “príncipe da paz”, misericordioso, feminino, identificado nos pobres (Mateus 25), encarnado em Jesus, celebrado em Cristo.

O Papa Francisco resumiu as velhas ideias ultrapassadas de Deus no domingo 16 de novembro de 2022 baseando-se em Lucas 4 e propondo uma presença de Deus como amor libertador e espírito amoroso. Nos textos bíblicos, escritos em diferentes épocas e lugares, inevitavelmente se cruzaram diferentes culturas, alicerçadas em diferentes critérios de pensamento que é necessário conhecer para evitar interpretações literais e superficiais, boas para todos os usos.

Existe o critério mitológico, o nacionalista étnico, o patriarcal patronal, o teocrático monárquico, o sagrado vitimário, o doloroso expiatório, o sexofóbico e machista, o apocalíptico em sentido catastrófico. Ao lado ou dentro dessas modalidades, surgem outros critérios: o espiritual e contemplativo, o profético e sapiencial, o humanístico e cosmopolita, o evolutivo e itinerante, o relacional e agápico, o apocalíptico voltado para a esperança. De qualquer forma, na minha opinião, é bom ter em mente a linguagem simbólica dos textos, diferente daquela racional ou científica.

Representa uma outra forma de pensar e viver que não pode ser avaliada em relação à racionalidade científica. Não pode ser transferida imediatamente no raciocínio crítico sobre o caráter antropomórfico ou arcaico, não aceitável, das imagens de Deus. O símbolo, como escreve Paul Ricoeur, "dá o que pensar", contém uma "superabundância de sentido" (cf. Della interpretazione e A simbólica do mal), transmite pensamentos-experiências-sentimentos poéticos, estéticos, éticos e culturais ligados, como diria Husserl, ao "mundo da vida" que é sempre diferente de qualquer argumentação racional, antiga ou moderna. Está sempre além ou, se preferir, dentro da profundeza do humano, portador de emoções e desejos que se expressam em várias formas poéticas e nos símbolos. E o coração, conforme Pascal, sempre tem razões que mesmo a mais refinada razão científica desconhece.

Ciência e fé

A , portanto, para ser credível, certamente deve fazer referência às ciências modernas (física quântica, biologia molecular, neurologia, cosmologia e outras), mas não pode derivar deles por três motivos: porque elas também são relativas, sempre em evolução e poderiam daqui a alguns anos fazer novas descobertas (parciais); porque existe sempre o risco de cientificismo ou, como escreve a Laudato Sì, de um "paradigma tecnocrático" defensor de uma modernidade redutiva, injusta e violenta; porque também existem outras realidades culturais com as quais se confrontar, como a psicologia, a ética, a estética, e a poesia que escava na profundidade do humano.

A esse respeito, na minha opinião, toda nova ideia de Deus (incluindo aquela dos pós-teísmos) será sempre limitada, parcial, superável diante do infinito mistério de Deus e da pessoa humana cujas profundezas ainda não conhecemos. Alguns pós-teístas escrevem que Deus não pode ser antropomórfico como o imaginamos e transmitimos. Segundo as indicações das ciências, só poderia ser concebido como "impessoal". A tal respeito, sinto a necessidade de fazer uma distinção.

Forma humana e pessoa não são a mesma coisa. Antropomorfismo significa dar-ter uma forma humana, pessoa indica uma identidade relacional em construção baseada na consciência, conscientização, liberdade, desejo, vontade de bem. Superar um deus antropomórfico não significa, portanto, abandonar a ideia ou, melhor, a experiência de um Deus pessoal. Inclusive porque é impossível para nós, pessoas, não ser pessoais. Na minha opinião, sempre pensamos em Deus em termos pessoais, mesmo quando o negamos ou vemos como transpessoal. Se falamos que é apenas energia pura, fluido vital ou fundo do ser, ultimação (ou usamos metáforas semelhantes), corremos o risco de retornar aos mitos cósmicos, às hierofanias sagradas e aos modelos rituais da humanidade primordial, bem ilustrados nos volumes de Mircea Eliade ou Van der Leeuw (que estudei na juventude), ou seja, ao naturalismo arcaico, ou ao aristotélico "pensamento do pensamento", ao espinoziano "Deus sive natura", ao hegeliano "espírito absoluto", a formas de deísmo maçônico, expressões muito valiosas do pensamento que sinto, porém, distantes de uma visão ao mesmo tempo racional (leiga), evolutiva e apaixonada (ética) da vida, da paixão íntima à nossa itinerante humanidade.

É no humano que devemos escavar. É tornando-nos humanos que podemos cruzar o sentido de uma existência autêntica, bela e verdadeira, útil e boa, portanto sempre relacional e interconectada. A Bíblia fala do nosso "coração" como lugar da identidade pessoal mais secreta e infinita, capaz de sabedoria e misericórdia. No final de seu livro Deus due punto zero, Paolo Gamberini cita uma bela frase da Laudato Sì 239: “toda criatura carrega em si uma estrutura propriamente trinitária, tão real que poderia ser contemplada espontaneamente, se o olhar do ser humano não estivesse limitado, obscurecido e fragilizado".

Uma pergunta sempre aberta

O que é a pessoa humana? Na minha opinião, tendo um olhar sempre limitado, escurecido e fragilizado, nunca podemos sabê-lo bem, nem ter uma experiência completa. Há uma profundidade interior que ainda não conhecemos e que talvez, dados os nossos limites, não conseguiremos alcançar.

Quando eu era jovem me impressionou o título de um livro de Carrel, O homem este desconhecido. Ernesto Balducci observa que estamos caminhando para o homem inédito, inexplorado, planetário. O próprio Agostinho reconhece ser um "enigma" para si mesmo. Maria Zambrano ou Pablo Neruda declaram que "nós nascemos para renascer". Romano Guardini, em seu precioso Retrato da melancolia, fala da "semente de eternidade" presente em nós como inquietação perene. Emily Dickinson descobre um grande panorama dentro de si, diz que "habita o Possível", observa que "quem ama não conhece a morte porque o amor faz renascer a vida na divindade" e que a eternidade é como "o infinito dos mares" que podemos navegar.

Concordo com quem diz que a nossa identidade vem do futuro, que somos movidos pelo "princípio esperança" ou pela "promessa" do shalom bíblico, a ser acolhido como dom e empenho. Em suma, estamos sempre aquém de nós mesmos, às beiras do nosso poço interior. Nesse percurso entramos no mundo desconhecido da nossa intimidade mais secreta e autêntica. Penso que somos uma pergunta sempre aberta, como Deus. A evidenciar essa vocação são as testemunhas da não-violência, que vejo como profundidade inesgotável do humano, graça criativa e inédita, bem-aventurança a caminho, libertação de nossa humanidade. Resumindo, força de verdade, fome e sede de justiça, espírito de liberdade, paixão de amor (são as quatro características da paz presentes na Pacem in terris e repropostas por Francisco em seu discurso ao corpo diplomático de 9 de janeiro de 2023).

Fé como luta não violenta

Na minha opinião, hoje o esforço dos crentes, empenhados em atualizar ou modificar a ideia de Deus, consiste precisamente na assunção da não-violência como substância e estilo da própria vida pessoal e comunitária e, portanto, como busca comum para enfrentar os desafios do mundo moderno injusto, violento e ferido.

O mal que nos cerca é grande. Ele põe e irá pôr em crise qualquer nova imagem satisfatória de Deus e qualquer consideração triunfante da evolução ou do progresso. O tema do mal sempre foi a pedra no caminho de toda a filosofia e teologia. Convoca os crentes a testemunhar a fé como luta não violenta de libertação humana. Só assim, creio eu, no âmago dos problemas poderá renovar-se a própria fé como conversão ao bem, despertar de uma nova espiritualidade, luta pela paz, acolhimento, justiça, cuidado com a criação, felicidade das pessoas.

Francisco afirma isso tanto nos Encontros com Movimentos Populares (2014, 2015, 2016, 2021), quanto no famoso Documento de Abu Dhabi (2019) e nos encontros inter-religiosos no Cazaquistão (setembro de 2022) e no Bahrein (novembro de 2022), bem como na tentativa de abrir (desde 2015) um percurso sinodal, ainda pouco frequentado.

Toda busca de Deus deve ser parte integrante da busca de uma novidade de vida para a família humana onde Deus atua como hóspede silencioso de maneira pessoal, transpessoal, interpessoal (relacional e trinitária).

Assim escreve David Maria Turoldo: “Deus não é uma resposta, é a Pergunta. [...]. Tempos sombrios vivemos. Tempos sem amizade [...]. Estamos todos em um sistema em que o homem não conta mais nada. É o sistema mais desumano e ateu que se possa imaginar [...]. Como são heroicos esses jovens que ainda conseguem cultivar amizades. De fato, a fraternidade humana é a própria razão do existir [...]. A relação com o próximo é o ponto de partida absoluto e de chegada de toda convivência” (O drama é Deus).

São ideias que acompanham Etty Hillesum quando se propõe a ser "o coração pensante do barracão" (mundo), a "alternativa luminosa" na escuridão do extermínio, pronta para "desenterrar Deus dos corações devastada" e do imenso continente da nossa atribulada humanidade (Diário 1941-1943).

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