19 Janeiro 2022
O “pequeno tratado sobre o Espírito Santo”, fruto de “muitos anos de pesquisa e reflexão”, data de 2013 e foi escrito por Leonardo Boff para libertar a pneumatologia [1] de ser a Cinderela das Ciências da Religião e para dar ao Espírito uma centralidade fundamental no cosmos, na humanidade, nas religiões, nas Igrejas e em todos os seres humanos, especialmente nos pobres.
O comentário é de Antonio Greco, publicado por Manifesto 4 Ottobre, 10-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Karl Barth defendia que é “impossível falar” do Espírito, mas também “impossível calar”. Cabe à reflexão teológica tentar iluminar lá onde o horizonte se escurece, defende Boff, porque o Espírito se revela, mas ao mesmo tempo se vela.
Foto: Capa do livro | Divulgação
“Esconder-se é próprio do Espírito. E é próprio do ser humano descobri-lo. Ele sopra onde quer, e nós não sabemos de onde vem nem para onde vai (cf. Jo 3,8). Mas isso não nos exime da tarefa de desvendá-lo (...) também nestes dias em que cabe a nós viver e sofrer” (p. 17).
O livro [2], publicado pela EMI e reimpresso em 2019, tem uma introdução, 13 capítulos e uma conclusão. De modo sistemático, Boff aborda a natureza, as manifestações e as revelações do Espírito nas vicissitudes do mundo, do Big Bang até a libertação dos oprimidos. Ele é dedicado “às mulheres, geradoras de vida ou que deram a vida nos lugares mais recônditos do nosso país... Elas têm uma conaturalidade com o Espírito Santo, porque ele, assim como elas, é doador de vida”.
No primeiro capítulo – “Vem, Espírito Santo. Vem, é urgente” – Boff traça uma leitura da história contemporânea, como se depreende dos títulos dos oito parágrafos que o compõem:
1. A presença do Espírito Santo nas grandes crises
2. A erosão das fontes de sentido
3. O Espírito na história: a queda do Império Soviético, a globalização, os Fóruns Sociais Mundiais e a consciência ecológica
4. O enrijecimento das religiões e das Igrejas
5. A irracionalidade da razão moderna
6. A contribuição do feminismo mundial
7. Renovação Carismática Católica: a missão de renovar a comunidade
8. A Renovação Carismática Católica: a missão de evangelizar a Igreja hierárquica?
Os tempos conturbados em que vivemos exigem uma séria reflexão sobre o Spiritus Creator, e Boff indica o motivo: “A criação se encontra hoje ameaçada. Os pobres e os marginalizados sofrem grandes opressões, que exige processos de libertação”. A ameaça não vem de fora da Terra, mas “do Homo sapiens e demens, duplamente demens. (…) Diz-se com razão que inauguramos uma nova era geológica, chamada de Antropoceno: ou seja, o ser humano como o grande perigo para o sistema-Terra e para o sistema-vida” (p. 15).
O tratado teológico continua com:
II – No princípio era o Espírito: novo modelo de pensar Deus
III – Espírito: as interpretações das experiências de base
IV – A passagem do espírito ao espírito de santidade
V – O salto do espírito de santidade ao Espírito Santo
VI – Do Deus-Espírito à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade
VII – Os caminhos de reflexão sobre a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade
VIII – Os pensadores do Espírito (Joaquim de Fiore; Hegel; Illich; Comblin; Hildegard de Bingen; Juliana de Norwich)
IX – O Espírito, Maria de Nazaré e o feminino pneumatizado
X – O universo: templo e campo de ação do Espírito Santo
XI – A Igreja: sacramento do Espírito Santo
XII – Espiritualidade: vida segundo o Espírito
XIII – Comentários sobre os hinos ao Espírito Santo
Conclusões
Os objetivos dessa pesquisa teológica são: reconstruir com rigor a identificação na história das experiências humanas que permitem captar o espírito; sondar os textos da fé cristã para passar do Espírito de Deus ao Espírito Santo, Terceira Pessoa da Santíssima Trindade; repassar com um esforço rigoroso como esses textos foram lidos, interpretados e debatidos na história do cristianismo.
Mas o tratado tem um ponto mais alto: alcançar uma densidade paradigmática “diferente e nova” em relação à própria tradição cristã ocidental muito “cristocêntrica”. Segundo Boff, não foi reconhecida suficientemente (e ainda não o é na teologia e na vida da Igreja) “a missão do Espírito: criar de novo; ser, na história, a fantasia de Deus para tornar a mensagem de Jesus continuamente boa-notícia” (p. 251).
Em outras palavras, a intuição de fundo que Boff expõe no livro é a de traçar um paradigma segundo o qual o “novo cristianismo” (com a consequente espiritualidade) ou será pneumacêntrico ou não será.
“Pensar o espírito é pensar o movimento, a ação, o processo, a história e a irrupção do novo e do surpreendente. É pensar o devir, o constante vir a ser. Não se pode chegar a isso servindo-se das categorias clássicas com as quais foi elaborado o discurso ocidental, tradicional da teologia. Deus, Cristo, a graça e a Igreja foram pensados dentro de categorias metafísicas de substância, de essência e de natureza. Ou seja, através de algo estático e sempre já circunscrito em uma forma imutável. É o paradigma grego oficializado pela teologia cristã” (p. 16).
O paradigma teológico estático, introjetado não só em muitas consciências cristãs, mas sobretudo nas estruturas eclesiásticas, teve o seu tempo. Imobilismo, resistência a qualquer novidade, fechamentos, defesa radical do passado, prioridade à uniformidade geraram uma teologia do Espírito que pode ser interessante para um livro de história ou talvez para um museu, mas certamente não para o ser humano e a sociedade contemporânea.
Somos obrigados a pensá-lo por meio de outro paradigma, afirma Boff, para poder entender adequadamente para onde está indo rapidamente uma sociedade humana e universal com os seus fenômenos estranhos e que fim pode ter o Anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, que parece cada vez mais se reduzir a uma oferta sem demanda ou no máximo apenas a uma oferta de doutrina e de ritos a quem lhes é indiferente.
Foto: Capa Livro | Divulgação
Assinalamos dois aspectos desse novo paradigma pneumatológico, traçado de modo muito amplo no livro de Boff: o aspecto histórico-bíblico e o aspecto concordístico-científico.
“Com a execução judicial de Jesus na cruz, a comunidade dos seus seguidores se desfez. Cada um começou, decepcionado, a voltar para casa. (…) A força, porém, para a reconstituição da comunidade foi obra do Espírito Santo” (p. 112). “O Espírito está nos fundamentos da comunidade nascente. Introduz uma nova prática de convivência, chamada até mesmo de comunismo primitivo, visto que assim é testemunhado. (…) O Espírito é gerador de outro estilo de vida comunitária” (p. 116).
Jesus não fundou uma religião. O movimento religioso que leva o seu nome começa logo após a sua crucificação. Um grupo de pessoas, que haviam conhecido Jesus e o seu estilo de vida, inicia um fenômeno histórico muito complexo, caracterizado pela ruptura dos estreitos limites do judaísmo, projetado para o vasto mundo cultural romano e europeu, encaminhado por Paulo de Tarso, apoiado pela posterior redação dos Evangelhos e orientado pelo primeiro Concílio de Jerusalém.
Surpreendentemente, os protagonistas iniciais dão um nome à fonte do seu entusiasmo e ao seu fundador: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós impor-vos...” (At 15,28).
O cristianismo, fruto mais do Espírito do que de Jesus (histórico), ao se institucionalizar como religião cristã, daria muito mais espaço à cristologia e muito menos à pneumatologia (embora, historicamente, a católica fará isso de modo diferente da ortodoxa), isto é, ao novo, à profecia, à energia vital, à força transformadora presente no cosmos, na história, nas Igrejas, no povo e na vida de cada um, em particular dos pobres.
Em vez disso, é apenas o Espírito, defende Boff, que impulsiona o universo para cima e para a frente, embora escondido no coração de todos os eventos. Porque “é típico do Espírito não fazer alarido, ser como a água que humildemente se adapta a cada solo, a cada recipiente e que, para escorrer, escolhe sempre o caminho mais baixo” (p. 253).
Os 13 capítulos do livro desenvolvem de modo lógico e linear um novo modelo para pensar Deus e a fé nele.
As implicações mais inovadoras desse modelo, a partir de um ponto de vista pastoral (isto é, como diria Italo Mancini, de “como viver juntos com os outros”) são expostas, a meu ver, nos capítulos XI (“A Igreja: sacramento do Espírito Santo”) e XII (“Espiritualidade: vida segundo o Espírito”).
O novo relato pneumatológico de Boff nasce também do inevitável debate com a cosmologia moderna e se esforça para superar o dissídio entre as verdades cristãs reveladas e a nova cultura científica. Por um lado, o relato cristão do mundo e da vida. Por outro, o relato do universo, do seu nascimento e da sua evolução até o ser humano, de acordo com as aquisições científicas.
Para Boff, um objetivo importante é alcançar uma solução concordístico-científico entre os dois relatos. Apesar desse esforço, na comparação entre o relato cristão e o relato científico, a divergência não me parece superada devido às duas abordagens metodológicas totalmente diferentes subjacentes aos dois relatos.
A prática científica e as teorias nela baseadas pressupõem um relato fundador da existência humana que entra em rota de colisão com aquele que dá origem à existência de um fiel. O que está em jogo não é este ou aquele resultado da prática científica (origem do universo, origem da espécie humana etc.), mas o pressuposto metodológico: não aceitar qualquer autoridade alheia à que vem do controle intersubjetivo.
Tentar desfazer esse nó, procurando concordâncias possíveis entre os elementos individuais dos respectivos relatos, não nos leva muito longe. Além disso, a situação atual do espírito humano está marcada por uma rejeição cada vez mais acentuada de qualquer forma de dualismo: alma-corpo; céu-terra; sagrado-profano; horizontal-vertical; crente-ateu. E consequentemente pela necessidade, na linguagem e também na doutrina católica, de rever o conceito de “transcendência”, que, nas religiões do Ocidente, muitas vezes recebeu o rosto antropomórfico de Deus e do seu Espírito.
Mesmo sem esquecer aquilo que me parece um limite, o trabalho de pesquisa teológica feito por Boff para um debate sério entre o relato cristão e o relato científico me parece digno de atenção. Assim como parecem merecedoras de atenção outras pesquisas que buscam caminhos mais radicais (sem perder de vista “as raízes”) ao abordar o debate entre o relato cristão e o novo relato cosmológico e científico.
A linguagem do texto de Boff é simples e divulgativa. Mas continua sendo sempre um tratado de teologia. Para quem experimenta a luta cotidiana da vida e continua buscando o seu sentido com “lágrimas e sangue”, o texto de Boff não é de fácil leitura, porque permanece, apesar das muitas novidades, em um contexto de “cristandade teológica”.
Nos últimos meses, foi iniciado um problemático caminho sinodal por parte da Igreja italiana. Para quem crê que mesmo a história da Igreja é imprevisível e pode ser marcada por novidades inesperadas, até mesmo por meio desse sínodo, o livro de Boff ajuda a fundamenta, a estar atento e a investigar as multiformes expressões do Espírito Santo, ativo nas inumeráveis dobras dos dias humanos. Vem, Espírito, e “sopra onde quiseres”, sobretudo fora das vestes suntuosas e imperiais do magistério e do seu vocabulário doutrinal, que sabe não se deixar ouvir pelo mundo.
[1] Ramo da teologia que estuda o Espírito Santo, que não deve ser confundido com a pneumologia – ciência médica que estuda os pulmões.
[2] BOFF, Leonardo. Soffia dove vuole, Lo Spirito Santo dal Big Bang, alla liberazione degli oppressi. Verona: EMI, 2019, 285 páginas.
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A fantasia de Deus. Leonardo Boff e o Espírito Santo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU