14 Abril 2023
"Gaillot não se movia um centímetro de suas posições. Ele certamente não era um herege (Card. Coffy), mas algumas das suas atitudes causavam mal humor e descontentamento. Ficou claro que ele queria seguir seu próprio caminho de cavaleiro solitário, evangelicamente teimoso e obstinado. Foi impedido pela Santa Sé. O Papa João Paulo II assinou a ordem de remoção. A Conferência Episcopal Francesa sofreu o golpe de não ter tido capacidade para gerir o caso".
O comentário é do cientista político italiano Francesco Strazzari, professor de Relações Internacionais na Scuola Universitaria Superiore Sant’Anna, em Pisa, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 13-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nascido em 11 de setembro de 1935 em Saint-Dizier, diocese de Langres, foi ordenado sacerdote em 18 de março de 1961, consagrado bispo de Evreux em 1982. Visitei-o várias vezes em Evreux e sobretudo em Paris. Ele morava na rue Cardinet, 131, em um apartamento simples e digno, onde havia instalado a base de sua atividade.
Ele foi destituído da autoridade em 13 de janeiro de 1995 e continuou a empenhar-se entre as pessoas mais desesperadas e a lançar suas mensagens por uma Igreja, que – repetia sempre – não se fazia entender pelas pessoas. Lembro-me de seu rosto de homem bom. Sorriso doce e olhos brilhantes. Nunca me deu a impressão de ter aquela força dentro de si que o havia imposto à atenção das mídias por anos.
Em 1996, um ano após seu afastamento, eu o encontrei ainda sereno, cordial, sempre desejoso para regularizar a sua situação o mais rápido possível. Ele havia se encontrado com o Papa João Paulo II em Roma, antes do Natal de 1995.
“Foi um encontro pastoral de um bispo com outro bispo. O papa demonstrava muita simpatia e fraternidade. Ele queria saber como eu estava e como estava vivendo. Ele me ouviu. Eu disse a ele que estava morando em uma casa de ocupação em Paris com pessoas despejadas. Uma vida de rua apaixonante e difícil. Eu não queria mudar de caminho. Ser bispo de Partenia, sede titular, era magnífico. Disse-me: “Mas Partenia não existe!”. Eu respondi: “É isso que é interessante. Como não existe, pode estar em todo lugar e todos podem fazer parte”. Ele olhou para mim e disse: "Felizmente não há muitos bispos como você". Eu respondi: “Sim, é verdade”. Então ele me disse: “Sabe, os bispos me dizem que você aparece muito, demais, na mídia”. "Ouça - respondi -, tento imitar o senhor". Depois sorriu: “Mas eu nunca assisto televisão”. “Nem eu”, respondi. "Espero que a televisão tenha lhe prestado um serviço".
Depois conversamos sobre várias outras coisas. Ele acrescentou: “Vá visitar a cúria, o prefeito da Congregação dos Bispos. Precisamos regularizar a situação, não pode ficar assim”, repassando a questão à administração da Cúria.
Em Reims, depois da missa, o papa veio tomar o café da manhã no refeitório do seminário. Ele veio diretamente para o café e depois saiu quase imediatamente para descansar. Aproximando-se do assento reservado para ele, parou na minha frente e pegou meu braço. Ele me sussurrou: 'Que Deus lhe abençoe' e foi embora”.
Recusando-se a trabalhar nas prisões e no hospital de Longjumeau, Gaillot continuou a trabalhar entre os despejados, "sans papiers", as pessoas mais marginalizadas:
“Por que procurar em outro lugar uma solução? Na verdade, devo agradecer ao Vaticano pelo que está fazendo. Nunca imaginei que estaria ligado a tantas pessoas marginalizadas. Considero tudo isso uma graça. Falei com os bispos sobre tudo isso. O diálogo é aberto. Certamente, não estou procurando uma diocese".
Muitos de nós nos perguntamos o que Gaillot havia feito para ser removido de Evreux. O “dossiê Gaillot” foi aberto em 1987 em duas frentes: a Nunciatura Apostólica de Paris e a Conferência Episcopal Francesa. O próprio Gaillot me confessou que cartas desaprovando seu comportamento chegavam continuamente à nunciatura. Gaillot naqueles anos era, sem dúvida, uma personalidade que causava discussão. Ele era um cavaleiro solitário.
Mas quando foi obrigado a deixar a diocese de Evreux, ficaram do seu lado muitos bispos da própria Conferência Episcopal, teólogos conhecidos, homens de cultura, que não aprovaram a decisão romana. Houve uma contínua troca de cartas entre a direção da Conferência Episcopal e a Santa Sé e encontros em Roma.
Gaillot não se movia um centímetro de suas posições. Ele certamente não era um herege (Card. Coffy), mas algumas das suas atitudes causavam mau humor e descontentamento. Ficou claro que ele queria seguir seu próprio caminho de cavaleiro solitário, evangelicamente teimoso e obstinado. Foi impedido pela Santa Sé. O Papa João Paulo II assinou a ordem de remoção. A Conferência Episcopal Francesa sofreu o golpe de não ter tido capacidade para gerir o caso.
Por que não bateu o pé se estava convencido de que tal sanção abalaria o país, os fiéis, provocaria protestos, agravaria o clima às vésperas de duas viagens papais à França? Lembro-me do que me disse na época o grande teólogo Yves Congar: “É preciso resolver de maneira diferente as questões e também os conflitos. Além disso, de que adianta confiar uma sede in partibus infidelium (Partênia)? Mas que história é essa? Não lhe parece ridículo?”
Gaillot estava convencido de que era o ministro do Interior francês, Pasqua, quem queria a sua cabeça por causa de um livro que havia escrito contra a lei de imigração.
“Fiquei sabendo disso por um padre que trabalhava na Secretaria de Estado. O Ministro do Interior pressionou a Secretaria de Estado. Eu não acreditava nisso por causa da longa tradição do regime de separação entre igreja e estado. Agora tenho certeza. Certamente não me arrependo de ter escrito esse livro. Hoje vemos as consequências dessa lei.
No máximo, lamento uma atitude que tive no início do meu episcopado: a de ter mediado demais. Eu tentava ir ao encontro de toda a área do catolicismo tradicional. Por exemplo, no lado das escolas católicas: participava de suas manifestações... Não serviu para nada. E também lamento pela declaração conjunta que assinei com card. Decourtray, presidente da Conferência Episcopal em 1989.
Certamente era uma situação difícil; diziam-me para não esticar demais a corda... Lamento, embora no texto tenha me reservado a liberdade de expressão, porque foi percebido como se eu não tivesse permanecido fiel a ela. Em geral, lamento que sempre tentei consertar as coisas durante meu trabalho episcopal em Evreux. Não vai ser mais assim".
O bispo Gaillot continuou na linha de frente da justiça. Os problemas internos da Igreja o preocupavam cada vez menos: a ordenação de homens casados, o lugar da mulher, a readmissão dos divorciados aos sacramentos, a autoridade do papa e seu serviço, que tanto espaço tiveram em suas acaloradas declarações e em suas frequentes aparições na televisão.
“Meu problema é a justiça. Estamos em uma sociedade e em uma humanidade profundamente injustas. É a zona dos 'sem': sem-abrigo, sem documentos, sem trabalho, sem cuidados de saúde... Os marginalizados. É um problema decisivo. Não se pode ser feliz sem eles; não podemos sair das dificuldades se não estivermos com elas. Meu papel é fazer com que sua dignidade seja respeitada e torná-los atores da sociedade para dar-lhes a palavra”.
Estava teimosamente e lucidamente convencido disso. Quando o encontrava, ele sempre tinha o Evangelho na mão e seus olhos se iluminavam.
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Um livro de memórias de Gaillot, o bispo deposto. Artigo de Francesco Strazzari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU