15 Setembro 2015
Quando, em 1955, os dardos do Vaticano caíram sobre Jacques Gaillot, Testemunho cristão, por iniciativa de seu diretor Georges Montaron, foi em primeira linha para apoiar o bispo de Évreux. Hoje, o convite fraterno do Papa Francisco àquele que se tornou “o bispo dos excluídos” é um verdadeiro reconhecimento para todos aqueles pelos quais se empenhou há vinte anos e uma boa notícia para aqueles que creem que Cristo é para os pobres. Agradecemos a Jacques Gaillot por ter aceitado compartilhar conosco a sua alegria suscitada por aquele belo encontro.
A entrevista é de Agnés Willaume e Jean-Baptiste Willaume, publicada por Témoignage Chrétien, 10-09-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis a entrevista.
Pode contar-nos o que sucedeu terça-feira, dia 2 de setembro?
Tudo começou com uma mensagem. O Papa Francisco me havia telefonado por diversas vezes, mas de cada vez eu estava ausente. Eu encontrava sobre minha secretária telefônica a seguinte mensagem: “Sou o Papa Francisco!” Queria encontrar-me. E, pouco tempo depois, recebi este bilhete muito coerente com seu modo de ser: Dirigi-me, portanto, terça-feira passada, à Casa Santa Marta com o meu amigo Daniel Duigou. Quando chegamos, um leigo nos acompanhou à sala de espera, uma peça muito simples, sem conforto, e nos disse que viriam chamar-nos. Menos de dois minutos após abriu-se a porta e era ele, o Papa, sozinho, sem aqueles “monsenhores” que assistem tradicionalmente aos colóquios pontifícios. Entra e senta-se junto a nós, pegando a primeira cadeira que encontra. Sugiro-lhe que tome a minha, mais cômoda. Recusa gentilmente a minha oferta, recordando-me que “somos irmãos”.
Então me disse simplesmente: “Tenho que agradecer-lhe por acolher-nos e dizer-lhe que sabem que vim para cá são verdadeiramente muito felizes. São seguramente ainda mais felizes do que eu! Acham que a coisa seja maravilhosa porque me dizem que os represento. A todos: os sem teto, os sem papéis, os refugiados... Eu nada tenho a pedir-lhes, mas eles têm muitíssimas coisas a dizer-lhe!” O Papa sorriu. Falei-lhe daquele rapaz num hospital psiquiátrico que se alegrava tanto: “Quando te receber, será como se eu fosse reconhecido!”. “Veja, recebendo-me, você faz bem a tanta gente”.
O Papa mostrou-se muito interessado pela experiência de Daniel, pároco de Saint-Merry, paróquia-piloto na acolhida dos migrantes. Repetiu com força uma expressão que para ele é essencial: “Os migrantes são a carne da Igreja”. Recordou que também ele é um imigrado. E eu concordei: Francisco está longe do seu país, longe do seu povo, como eles. Não é fácil, mas resiste. Expliquei-lhe que faz vinte anos que tenho estado afastado, excluído... “Mas, excluindo-me, a Igreja me deu um bom passaporte para ir em direção aos excluídos”. Riu e nos recordou aquela imagem do Apocalipse que havia usado no conclave antes de ser eleito: “Cristo bate à porta da Igreja, mas bate do lado de dentro! Quer que se escancarem as portas! Para deixá-lo sair! Para ir encontrar o mundo e a humanidade”. Respondi-lhe que, com efeito, não era preciso encerrar Aquele que veio libertar-nos.
Quando o deixamos e saímos de Santa Marta, Daniel me disse: “Volta-te, ele ainda está ali!”. E, efetivamente, estava de pé na soleira e nos olhava ir embora, esperando, como se não quisesse reentrar. Talvez não seja muito respeitoso, mas lhe faço um pequeno aceno com a mão afastando-me. Deixamo-lo como se deixa um amigo, um amigo que que se encontra numa situação um pouco pior do que a nossa: ele é um pouco o prisioneiro do Vaticano! Estava visivelmente contente pelo tempo passado conosco. Não o fatigamos! Levamos-lhe a esperança. Um belo encontro com um homem muito simples, autêntico, absolutamente livre. É assim que deveria ser a Igreja.
Você sempre permaneceu fiel e leal com a Igreja em todos estes anos. Como o conseguiu
Em primeiro lugar, há em todo caso Cristo, a pessoa de Jesus! É por ele que deu a minha vida. A Igreja, de acordo, mas não é um absoluto! A instituição não está no primeiro lugar na minha vida. Eu sempre disse que o que vinha antes era interessar-se pela história das pessoas, pelas transformações da sociedade. Não fomos feitos antes de tudo para a Igreja, mas para o povo. Um dia eu estava no metrô na hora do pique e era realmente tanta gente que eu não sabia mais onde agarrar-me. Apoiava-me, portanto, nas pessoas, conforme as sacudidas, empurrado à direita e à esquerda. Descendo, eu disse a um homem que ria de minha situação precária: “Veja, aquilo que faz estar de pé um bispo, é o povo!”
Então, é verdade que não tenho mais sido convidado pela Igreja, mas tenho sido convidado de outro lugar, por fiéis, por descrentes, por muçulmanos, maçons, detidos, iranianos, bascos, nas grandes cidades e nas periferias, em pequenas coletividades e em associações em luta. Sempre para encontrar pessoas às margens. Quando eu ia a algum lugar, era sempre em nome da solidariedade, dos direitos humanos, da paz... E é evidente que não poderia ter feito todos aqueles encontros se eu tivesse permanecido como um bispo clássico. Tenho sido impelido por tudo o que é institucional. Agradeço Roma! Desde quando sou bispo de Partenia, aprendi a “pregar fora”. É uma coisa diversa, mas é tão lindo. Agrada-me ir encontrar as famílias do DAL [1] na Praça da República. As mulheres me querem bem: eles me acolhem como se eu fosse a dar-lhes, quem sabe, que coisa e aplaudem quase antes que eu fale! Hoje, faço Igreja com pessoas como eles, com o povo de praça da República. Num certo sentido, é uma bênção. Eu o disse ao Papa: “Se você pudesse ler no meu coração, veria milhares de pessoas!”
Você pensa que o Papa esteja em condições de transformar a instituição, de liberar a palavra da Igreja?
Certamente ele tem vontade. Tive certeza disso logo que vi que havia assumido o nome de Francisco de Assis, reformador radical que vivia na pobreza, impregnado de Evangelho! Nenhum Papa antes dele havia ousado assumi-lo. O Papa quer realmente ir em frente, tenha até a sensação que queira fazê-lo de pressa. Não se concede períodos de férias, trabalha até o esgotamento. Eu procurava dar-lhe coragem, dizendo-lhe que continuasse: “Estamos com Você, somos um povo numeroso! Você suscitou por toda parte uma esperança enorme, não é preciso desiludi-la! Você é uma das raras pessoas ou talvez a única, cuja palavra pode ser escutada em todo o planeta, por todos os homens. Os que creem ou não”.
Falamos do Sínodo, e do fato que nos encontramos hoje ante uma multiplicidade de configurações familiares. Disse-lhe que eu pensava ser preciso chegar às pessoas assim como são e não como se quereria que fossem! Assim como me agradam os casos concretos, contei-lhe ter abençoado, neste verão, um casal de divorciados redesposados. Era o dia 15 de agosto, ao ar livre, tendo em torno uma centena de pessoas. Que belo matrimônio! Eu estava em vestes civis e abençoei aqueles espososo. Também abençoei, sempre neste verão, um casal de homossexuais. Estavam juntos há nove anos, tinham casado civilmente e desejavam, sendo cristãos praticantes, ser abençoados pela Igreja. Todos os padres haviam recusado. Então me escreveram uma carta tão linda que não pude fazer outra coisa senão ir abençoá-los. Estávamos ao ar livre, havia umas 80 pessoas, e era muito lindo! Abençoam-se as casas... por que não as pessoas? O Papa anuiu: “A bênção é expressar a bondade de Deus a todos!” Teria podido fazer pontualizações, fazer censuras. E ao invés não. Não ponhas em primeiro lugar as regras, escuta, contente-se de dizer que a bênção de Deus é para todos. Isto faz pensar que é favorável à abertura, que quer liberar as pessoas, liberar a palavra. Aonde nos levará isso? Não sei!
No que diz respeito à lei, se pode interpretar este encontro com o Papa Francisco como uma reabilitação?
Sim, podemos dizê-lo. Pessoalmente não pensei muito nisso, porque o simples fato de encontrá-lo me parecia importante. Eu não imaginava que o anúncio deste encontro teria tais repercussões. O meu telefone trabuca de chamadas e de mensagens. Recebo muitíssimas cartas de pessoas que se alegram por mim. Mas, muitas delas estão desiludidas:
“Como? Não te disse nada? Não te propôs nada? Esperavam-se coisas concretas!’
É-me difícil explicar-lhes a atmosfera daquele encontro com o Papa Francisco: não houve anúncios particulares, limitou-se a falar-nos em toda simplicidade. No entanto, estou muito feliz pelo nosso colóquio. Não muda a minha vida, mas estou contento por constatar que a Igreja, no seu nível máximo, acolhe tudo aquilo que pude vivenciar nestes últimos vinte anos e manifesta que há uma comunhão com o sucessor de Pedro. É importante e, sem dúvida, menos para mim do que para muitas pessoas que me conhecem.
Mas, o que o atingiu mais neste encontro?
É lindo constatar que, numa instituição como a Igreja, o Papa Francisco continua sendo um homem livre. Ele não é um homem de aparato, não é absorvido por sua função, é simples, é exatamente como é. Em qualquer âmbito. Na noite subsequente ao nosso encontro, no meu quarto no terceiro andar de Monte Mario, no convento dos espiritanos, olhei através da janelinha que dá na cúpula de São Pedro e percebi que havia alguém perto de mim, que o Papa vigiava, como um custode da humanidade.
O que gostaria de dizer a todos aqueles que o mantiveram nestes vinte anos, entre os quais também os leitores de Témoignage Chrétien [Testemunho cristão]?
Gostaria de dizer-lhes que o futuro está aberto. Não penso muito no passado e parece que sequer o Papa o faça. É o futuro que nos espera. É o amanhã que precisa ser construído e toca a nós escrever o futuro. Aos cristãos que podem perder a esperança perante a Igreja francesa, direi que não é preciso jogar a esperança às ortigas! A esperança está em nós, é preciso ir em frente, porque Cristo nos precede. Força, andemos!
Notas
[1] DAL: Direito ao alojamento, ou seja: direito à casa.
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Jacques Gaillot: “O futuro está aberto!” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU