24 Janeiro 2023
"O Diário de Etty, escrito no mesmo momento histórico e na mesma Amsterdã atormentada em que Anne Frank escreveu a dela, menos conhecido mas não menos importante que aquele da adolescente 15 anos mais jovem, é muitas coisas juntas. É um documento inesquecível da ferocidade da ocupação nazista e da escalada da perseguição contra os judeus; ao contrário de Anne, Etty circulava pela cidade que se tornava mais hostil a cada dia - dos bancos aos parques, das lojas de frutas aos ônibus: tudo proibido aos judeus", escreve Elisabetta Rasy, jornalista, escritora e ensaísta italiana. O artigo foi publicado por Il Sole 24 Ore, 20-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Etty Hillesum. A partir da coragem expressa em seu "Diário" foi possível encontrar escritoras e personagens igualmente intensos, de Marguerite Duras a Katherine Mansfield, da Micol de Bassani à Tatiana de Pushkin.
"Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem", escrevia, em novembro de 1903, Franz Kafka a um amigo. Eu não concordo com essa frase e me sinto mais propenso à afirmação que Marcel Proust faz, em seu pequeno e veemente ensaio sobre a leitura, ao definir a leitura "uma amizade pura e tranquila" porque, explica então, "entre o pensamento do escritor e o nosso não se interpõem os elementos irredutíveis, refratários ao pensamento, dos nossos diferentes egoísmos". Mas gostaria de fazer a mesma objeção a ambos: a leitura nem sempre é igual porque os livros são diferentes uns dos outros, não apenas em qualidade, obviamente, ou poder, ou criatividade, mas por sua própria profundamente diferente natureza, tão variada quanto a natureza humana. Para resumir isso, há livros, perfeitos na sua leveza, que nos acompanham serenamente ao dormir e outras, maravilhosos por profundidade, que nos mantêm acordados. Mas a partir de suas diferentes posições o escritor da Recherche e o autor do Processo descobrem-se dizendo algo semelhante. Kafka: “Um livro deve ser um machado que quebra o mar de gelo que está dentro de nós”. Proust: “Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar”.
E talvez mais do que salutar: a primeira vez que li o Diário de Etty Hillesum, em meados dos anos 1980, parecia-me que suas páginas fossem uma mensagem dirigida para mim pessoalmente, apenas para mim, de modo que certos pensamentos que eu não conseguia formular, aqueles pensamentos que se esgueiram, obscuramente no fundo da mente, pudessem encontrar forma e vir à luz, e que a garota holandesa quisesse explicar algo sobre minha juventude que eu tinha dificuldade para decifrar. Ela tinha 27 e 28 anos quando, entre 1941 e 1942, cobriu seus cadernos com anotações diárias. Jamais chegaria a passar dos 29: nasceu na província holandesa em janeiro de 1914, teria morrido em Auschwitz em novembro de 1943. O Diário certamente me forneceu chaves mágicas, e sem crueldade abria-se uma passagem no gelo do coração, que nada mais é do que uma inconsciência descuidada, mas acima de tudo, começou a fazer parte da minha paisagem interior como uma presença amiga. Por isso, acredito, que muitos escritores escreveram sobre outros escritores: por um apego que surge de uma relação estritamente pessoal, de uma intimidade imprevista à qual se deseja dar seguimento. Existem alguns livros que são encontros que nunca terminam.
O Diário de Etty, escrito no mesmo momento histórico e na mesma Amsterdã atormentada em que Anne Frank escreveu a dela, menos conhecido mas não menos importante que aquele da adolescente 15 anos mais jovem, é muitas coisas juntas. É um documento inesquecível da ferocidade da ocupação nazista e da escalada da perseguição contra os judeus; ao contrário de Anne, Etty circulava pela cidade que se tornava mais hostil a cada dia - dos bancos aos parques, das lojas de frutas aos ônibus: tudo proibido aos judeus. Um documento tanto mais preciso do que é a perseguição de uma ditadura na vida cotidiana porque escrito quase com distanciamento, algumas vezes até com ironia. E é definitivamente o testemunho extraordinário de sua força espiritual e de sua original resistência aos que ela chama de "os tempos selvagens": Etty Hillesum é certamente uma mestra da não-violência em sua rejeição ao ódio contra o ódio, em seu esforço para abraçar sob o mesmo olhar o inferno e o paraíso que ela acredita existir dentro de cada ser humano. Finalmente, suas páginas contêm a voz de uma crente especial, que diante do horror não se revolta contra Deus, argumentando que os homens deveriam ajudá-lo e não o contrário.
Mas o que me levou a escrever uma espécie de diário de leitura do Diário foi sobretudo a fisionomia especial de mulher contra a tempestade, entre fragilidade e força, entre medo e coragem, que Etty encarna na defesa da sua juventude, com todas as suas paixões e também com os seus tormentos. Não uma mística, como alguém a definiu: intolerante e alheia aos jogos de papeis tradicionais, sempre à escuta inteligente e irreverente de si mesma, buscando a verdade no amor, no sexo, na relação com a família e com a religião, esta jovem holandesa justamente do coração mais tenebroso do século lega ao futuro um modelo de liberdade feminina e não só feminina. Uma liberdade baseada na responsabilidade, numa sintonia à distância com outra jovem mulher judia, Simone Weil, que afirmava a presença dos deveres ao lado dos direitos. Também Simone morre em 1942, destruída no exílio pela tuberculose e pelo desespero: como Etty, ela é uma figura daquela destruição da inteligência judaica perseguida pelos nazistas, que priva a Europa, pela morte ou pela emigração, de precioso patrimônio de pensamento – basta pensar, exemplos entre os muitos, em Hannah Arendt que foge para os EUA, ou a Walter Benjamin que tira a própria vida porque sabe que não pode se salvar.
O Diário, portanto, parece-me como um extraordinário romance de formação ao feminino. Por isso, no meu livro, dialogando com as páginas de Etty, convoquei outras figuras que me pareciam pertencer a uma mesma constelação de inquietação, intensidade espiritual e liberdade: escritoras como Marguerite Duras ou Katherine Mansfield, mas também personagens literárias, a Micol do Jardim dos Finzi-Continis de Bassani, ou a Tatiana de Eugene Onegin de Pushkin, ou escritores e poetas, Rainer Maria Rilke ou Joseph Conrad. Nas primeiras páginas do Diário, Etty definia seu coração como "um novelo emaranhado": escrever partindo de suas páginas significou retomar os diferentes fios do novelo, agarrar a herança que eles contêm e trazê-la de volta para o aqui e agora do meu presente. É assim que funcionam os clássicos, sempre contemporâneos, muitas vezes um passo à nossa frente.
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Mulher na tempestade da humanidade. Artigo de Elisabetta Rasy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU