23 Dezembro 2022
"No Natal fica patente como somos ainda uma cultura completamente colonizada", escreve Durval Muniz de Albuquerque Jr, professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba, professor permanente dos Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em artigo publicado por Diário do Nordeste, 20-12-2022.
No final dessa semana comemoraremos o Natal, uma festa cristã, que nos chegou com os colonizadores portugueses, ainda nos primórdios do violento processo de conquista e apropriação que as terras ditas brasílicas sofreram. Como sabemos, o pensamento cristão e a religião católica foram a base ideológica, forneceu a explicação e legitimou o processo de extermínio, não apenas físico, mas cultural, dos povos indígenas, tidos não apenas como selvagens, mas como pagãos, quando não criaturas diabólicas e heréticas.
A celebração de uma missa foi um dos marcos simbólicos do “achamento” das novas terras para o poder e a glória del’Rei. Os padres jesuítas cedo desembarcaram nas novas terras e iniciaram a sua obra chamada de catequizadora, a conquista das “alminhas” para o reino e a glória de outro Senhor, o dos céus, representado e encarnado pelo Senhor da terra, o monarca português.
Considerada gentes sem fé, sem lei e sem rei, as criaturas que, num primeiro momento, pareceram dóceis, ingênuas, crianças grandes, gentes dispostas e fáceis de ser conquistadas para o reino do Pai, transformadas em gentes úteis, braços para fazer a riqueza do reino, se mostraram rebeldes, violentas, traiçoeiras, quando viram que os curiosos homens de pele branca, que aportaram fedendo a maresia, que lhe distribuíram, amistosos, bugigangas coloridas, brilhantes, começaram a se assenhorear das terras, a invadir seus espaços, a aprisioná-las, matá-las e escravizá-las.
Todo esse processo de expropriação e genocídio se fez em nome de Cristo (quantos não se fizeram ao longo da história), esse menino Deus que teria nascido pobre, sem nada de seu, sem mesmo um lugar para nascer, parido entre animais em uma manjedoura (lugar dos animais manjarem, comerem), depositado ao nascer num pequeno cocho, tendo vacas, ovelhas e um burrico como assistentes do parto. Ele teria nascido, coincidentemente, num data fundamental no calendário dito pagão de festas, aquelas que comemoravam, no hemisfério Norte, o solstício de inverno (que costuma ocorrer entre os dias 21 e 22 de dezembro), dia de menor incidência solar sobre a terra, um dia curto com uma longa noite (no hemisfério sul onde o Brasil se encontra ele ocorre entre 21e 22 de junho, quando no hemisfério Norte se comemora o solstício de verão, que é o motivo das chamadas festas juninas, que também recebemos de nossos colonizadores).
Os camponeses, muito antes do cristianismo se espalhar pela Europa, antes que a Igreja Católica cristianizasse o calendário de festas ditas pagãs, comemoravam nessas datas as colheitas dos produtos plantados na primavera e no outono, agradeciam a seus deuses e a natureza o nascimento e crescimento daquilo que ia alimentá-los.
O dia 25 de dezembro está ligado a essa simbologia do nascimento ou do renascimento da natureza, de sua fertilidade, de sua capacidade de ser mãe de tudo que precisamos para nos alimentar e prover. Por ser visto como um alimento para o espírito, o Cristo, aquele nascido ungido, escolhido, teria nascido nesse período de festejos da fertilidade da terra, que seria, por seu turno, uma dádiva divina.
Acreditemos em tudo isso ou não, sendo cristãos ou não, todo ano convivemos com as festas natalinas, cada vez mais transformadas pelo capitalismo numa boa oportunidade de vendas, de circulação das mercadorias, da produção de lucro. O Natal foi perdendo seu significado religioso e, por ironia, foi se tornando, novamente, uma festa pagã, mais uma festividade do que um momento de comemoração e celebração do nascimento daquele menino branco (embora fosse judeu), que tivera uma estrela (possivelmente o aparecimento de um cometa) a brilhar sobre sua humilde morada, indicando a um trio poderoso de reis magos (dotados de poderes sobrenaturais) onde se encontrava aquele que viera para salvar a humanidade inteira de seus pecados (tarefa hercúlea na qual parece ter malogrado completamente), a quem foram oferecer honras e dádivas dignas de um rei (incenso, ouro e mirra).
Esse sentido de culto foi, no entanto, transformado em uma mera obrigação social de se dar presentes as pessoas, de se movimentar o comércio gastando o décimo-terceiro salário, essa dádiva estratégica para essa época. É em recordo desse momento que se deve presentear, notadamente, as crianças, que, num país de milhares de meninos e meninas miseráveis, se torna um momento de tristeza, dor, revolta, por não se ter, a não ser através da caridade particular, a oportunidade de receber o presente almejado.
Do Natal como momento de comemoração do nascimento do Salvador, aquele que viera para mudar o mundo, livrá-lo do pecado, só resta o mudar de guarda-roupa, a obrigação que tanto sofrimento e vergonha causa aos mais pobres, por, muitas vezes, mesmo com muito sacrifício, não conseguirem luzir, na noite de festa, a fatiota nova, o calçado recém adquirido.
Mas o mais questionável das ditas tradições natalinas é o completo fora de lugar de grande parte de sua simbologia e de sua iconologia no país e, notadamente, na região em que vivemos. No Natal fica patente como somos ainda uma cultura completamente colonizada, como ainda reproduzimos, sem pensar, sem senso crítico, costumes, tradições que nos foram legadas pelos colonizadores portugueses, sem que nos demos conta do completo fora de lugar que elas representam.
A julgar pela simbologia e pela iconologia natalina, Cristo ainda pertence ao hemisfério norte, o nascimento de Cristo é algo que diz respeito e está ligado a apenas uma parte do mundo, a Europa, onde curiosamente ele não nasceu, onde nem mesmo surgiu o cristianismo, o culto a um Cristo que veio do oriente, mas que, aí se transformou em culto oficializado, em uma poderosa instituição com a conversão do imperador romano Constantino, em 313 d. C, àquela já influente “seita” orientalista.
Comemoramos o Natal ignorando a nossa natureza e a nossa cultura, importando signos de uma natureza que nunca foi a nossa condição de existência, importando ícones de culturas que nunca foi a nossa.
Se conseguimos abrasileirar e nordestinizar as festas juninas, as festas para os três santos de junho, completamente diferentes no interior do próprio Brasil, com peculiaridades em cada local de sua realização, até agora fomos incapazes de nacionalizar ou regionalizar o Natal. Ele continua sendo uma festa completamente fake, fora de lugar, um bárbaro estrangeirismo, prova de nossas subjetividades colonizadas, a sonhar com pinheiros, neves, picos gelados, trenós e renas, mesma que a maioria de nossas crianças nem saiba do que se tratam, pensam que são veadinhos (nacionalizando e dando um toque de ironia as figuras extraterrenas).
Toda a tradição em torno do tal Papai Noel, o homem que vem de uma casa no polo norte, é de um nonsense, de um fora de lugar, sem tamanho. Se um velhinho daquela idade, com aquelas roupas, viesse fazer uma excursão pelo sertão, com seu trenó e renas, possivelmente morreria por desidratação e teria muita dificuldade em encontrar gelo para sobre ele deslizar o seu veículo. O destino das renas nem é preciso imaginar, dessedentadas e esbaforidas, não fariam a viagem de volta.
Se no Ceará, nem os camelos importados a conselho da Comissão Científica, do século XIX, resistiram, imagine o destino dos pobres cervídeos vindos do extremo norte.
Só pelo sofrimento que os caboclos locais, que por essa época, desempregados, conseguem um bico para representar o bom velhinho, passam, já podemos imaginar se a figura, em carne e lã, desembarcasse em Caicó, Picos ou Quixeramobim. A tarefa mais difícil seria o pobre velhinho encontrar uma chaminé para poder descer com seu saco abarrotado de presentes e colocá-los sobre os calçados de cada morador da residência.
A narrativa lendária já é um tanto absurda, dada a corpulência do velhinho, imaginar ele se esgueirando por chaminés e saindo ileso da tarefa, é preciso muita credulidade (só mesmo a fantasia infantil pode não perceber tal paradoxo, embora não sei se hoje, mesmo as crianças geração internet e celular conseguem acreditar em tal lorota). Somos um país onde, hoje, milhares sequer têm um teto para se abrigar, que dirá chaminé, lareira e lindos calçados a esperar o presente solicitado em cartinha, entregue nos correios, com o endereço do polo norte.
Patética é também a árvore de Natal, hoje um amontoado de peças plásticas, encaixáveis e dobráveis, que jaz o ano inteiro guardada em sacos plásticos, em cima dos guarda-roupas e que desempoeirada se ergue na sala da frente das casas, a se encher de bolinhas coloridas, fitas, enfeites e piscas-piscas, que são excelentes para dobrar a conta de luz, nesse momento em que a privatização da Eletrobrás promete um aumento de 36% nas contas de energia.
Como não somos uma região aquinhoada com o nascimento de pinheiros, não temos a floresta das araucárias por aqui, vamos nos virando com os pinheiros industriais que fazem a festa dos hipermercados e casas especializadas em artigos natalinos (uma parafernália, uma bugiganga para todos os gostos e mal gostos). Também não somos uma região onde perus (bêbados ou não) e chesteres (uma linhagem de frango trazida da Escócia pela marca Perdigão, para concorrer com os perus da marca concorrente, a Sadia) seja um hábito de consumo (carne se tornou novamente um luxo em muitos lares brasileiros e nordestinos), mas no Natal temos que sacrificar o bolso e enriquecer mais os supermercados para atender a essa tradição, como se Cristo fizesse muita questão de uma ceia (afinal a única que sabemos a que ele compareceu foi para ter confirmada a sua morte e a traição de um discípulo, ceia, aliás, que se repete, através da missa, séculos e séculos, amém, haja masoquismo!).
Eu só espero que meu apelo para que nacionalizemos e regionalizemos o Natal não resulte em um Papai Noel vestido de cangaceiro, distribuindo tiros e facas no bucho, ao invés de presentes, acessando as casas não através das chaminés mas com pontapés na porta, a procura dos bruguelos e a árvore de natal sendo trocada por um pé de cardeiro, enfeitado com urupemas, abanos, quengas de coco, lamparinas de litro de óleo, cachos de banana, essas coisas que costumam “decorar” restaurantes tipicamente regionais.
Quanto ao cardápio, se todos tiverem o que comer nesse dia, já será motivo de festa e comemoração, afinal desde os tempos pagãos essa era a época de agradecer a dádiva da fertilidade da natureza que nos alimenta e nos dá a vida, o nascimento, o Natal.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nordeste, neve e trenó: quando vamos descolonizar o Natal? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU