20 Dezembro 2022
"Mais uma vez a liturgia nos confronta com um contraste com uma finalidade claramente cristológica: o Criador que nasce, a Virgem que se torna trono, Ela que acolhe Aquele que não pode ser contido", escreve o teólogo e padre Manuel Nin, exarca apostólico e professor do Pontifício Colégio Grego, de Roma, em artigo publicado no seu blog pessoal, 18-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Olhemos para a Virgem, trono glorioso dos querubins. A tradição bizantina celebra de modo especial os dias que precedem as grandes festas, dias chamados proeòrtia ("pré-festa", "dias que antecedem as festas"), nos quais encontramos os tropários, textos litúrgicos que preparam, introduzem pedagógica e teologicamente para a grande festa que está sendo celebrada.
Para o Natal, os dias de pré-festa começam no dia 20 de dezembro e duram até o dia 23, sendo o dia 24 o dia da grande Véspera de Natal. Detenho-me por um momento em alguns tropários das vésperas desses quatro dias pré-festivos, textos em que se ressalta o mistério central da fé cristã, isto é, a encarnação do Verbo eterno de Deus do Espírito Santo e da Santíssima Virgem Maria. São textos que, recorrendo a belas imagens poéticas, usam sobretudo textos e imagens do Antigo Testamento para falar da virgindade de Maria, do nascimento na carne do Verbo eterno de Deus e de sua manifestação aos homens.
Vários dos tropários começam com a exortação a subir para Belém, uma subida com mente e coração para celebrar o mistério da Encarnação do Verbo de Deus: “Celebremos, ó povos, as festividades da vigília da Natividade de Cristo: e elevando o intelecto, subimos a Belém com a mente e com os pensamentos da alma contemplamos a Virgem que se prepara para dar à luz na gruta o Senhor do universo e nosso Deus..., e contemplamos na gruta o grande mistério”.
Um dos tropários das vésperas do dia 20 torna-se depois profissão de fé na Santíssima Trindade, e o faz com uma leitura em chave claramente trinitária do Trisagion, leitura que encontramos noutras grandes festas do calendário bizantino: "Celebremos, ó povos, as festividades da vigília da Natividade de Cristo: e elevando o intelecto, subamos com a mente a Belém e contemplemos na gruta o grande mistério: o Éden finalmente se abriu, porque Deus vem de uma Virgem pura, perfeito na divindade e na humanidade. Aclamemos, pois: Santo Deus, Pai que não teme princípio; Santo Forte, Filho Encarnado; Santo imortal, Espírito Paracleto. Santíssima Trindade, glória a ti".
É um tropário em que reencontramos a ligação entre o nascimento de Cristo e a reabertura do Éden, apresentando o Natal quase como uma prefiguração da Páscoa de Cristo; e, por outro lado, apresenta-nos uma confissão de fé nas verdadeiras naturezas divina e humana de Cristo. Num outro tropário do dia 20 encontramos novamente essa ligação entre o nascimento do Verbo de Deus Encarnado e a manifestação do mistério trinitário: "Ouve, ó céu, e inclina o teu ouvido, terra: eis que o Filho e Verbo de Deus Pai vem nascer da jovem que não conhece o homem, segundo o beneplácito de quem o impassivelmente gerou, e com a sinergia do Espírito Santo. Prepare-se, Belém, abre a porta, ó Éden: porque Aquele ‘que é’ se torna o que não era, e o artífice de toda a criação é formado: aquele que concede a grande misericórdia ao mundo". Vários textos desses dias e depois também durante o período do Natal, estabelecerão paralelos com Belém que acolhe o novo Adão e o Éden que reabre as suas portas à humanidade redimida.
Abside da Catedral da Santíssima Trindade, em Atenas | Foto: Pe. Manuel Nin Guell/Blog pessoal
Dois dos tropários do dia 21 celebram a figura de Maria, a Mãe de Deus, com imagens verdadeiramente profundas e tocantes. O primeiro dos tropários aplica a Maria a imagem do trigo que nela germina e que será alimento - será pão de vida - para os homens: "Ó toda imaculada Mãe de Deus, em teu seio reconhecemos o monte de trigo, que inexprimivelmente, além do intelecto e da razão, traz a espiga que não foi cultivada: aquele que gerastes na gruta de Belém e que com graça alimentará toda a criação de divino conhecimento, e redimirá o gênero humano da fome que destrói a alma".
O segundo dos tropários apresenta Maria com a imagem da novilha dando à luz o bezerro cevado, com uma clara referência àquele bezerro cevado que depois será sacrificado quando o filho pródigo voltar para a casa paterna: "A novilha imaculada carregando o cevado bezerro em seu ventre avança para a gruta sagrada, em virtude de uma disposição admirável, para dar à luz a ele e envolvê-lo em panos como um mortal, e colocá-lo em uma manjedoura como um menino...”. Os textos litúrgicos, como aliás a própria tradição exegética dos Padres, justapõem, colocam em paralelo imagens e textos bíblicos de diversas origens, para fazer deles uma única exegese cristológica.
Os tropários dos dias 22 e 23 se detêm para contemplar o mistério da encarnação do Verbo de Deus, e o fazem com imagens cristologicamente contrastantes, fazendo assim uma verdadeira profissão de fé na verdadeira natureza divina e na verdadeira natureza humana do Verbo de Deus feito carne: “O Verbo de Deus, que é levado sobre os ombros dos querubins, unido à carne de acordo com a hipóstase, tomou morada em um ventre totalmente imaculado, tornou-se mortal e vem à terra de Judá para ali nascer.
Prepara-te para o Rei universal, ó gruta sagrada, como palácio sublime, e tu, manjedoura, como trono de fogo no qual a Virgem Maria o colocará como criança, segundo o seu beneplácito, para que chame a sua criatura de volta para si. Três imagens poéticas aplicadas à Mãe de Deus podemos encontrá-las também em outro dos textos litúrgicos; é uma nuvem luminosa portadora de chuva à terra, a andorinha espiritual, o palácio que acolhe o Rei: “A nuvem viva e luminosa que traz a chuva celestial vem para deixá-la gotejar sobre a terra e irrigar sua face. A andorinha espiritual que traz em seu seio a primavera da graça, por disposição inefável a faz nascer, dissipando o inverno ateu. O palácio puro e incontaminado introduz o Rei encarnado em uma gruta”.
Um último dos tropários desses dias pré-festivos retoma a ligação entre Belém e o Éden, e já nos apresenta o nascimento do Verbo de Deus encarnado como início da nossa libertação, da nossa redenção: a espada retirada da porta do Éden; o muro de separação derrubado; os anjos junto com os homens. Mais uma vez a liturgia nos confronta com um contraste com uma finalidade claramente cristológica: o Criador que nasce, a Virgem que se torna trono, Ela que acolhe Aquele que não pode ser contido:
"O Criador do universo nasce em Belém e abre o Éden, o Rei que existe antes dos tempos; a espada flamejante volta; o muro de separação que existia é derrubado; os poderes celestiais se misturam com os habitantes da terra; os anjos junto com os homens formam uma poderosa reunião festiva. Aproximemo-nos puros ao puro, olhemos para a Virgem como um glorioso trono de querubins, ela que acolhe o Deus que nada pode conter e traz aquele que os querubins carregam com temor, para que distribua a grande misericórdia ao mundo".
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A preparação para o Natal na tradição bizantina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU