"A reflexão do autor exprime, em uma prosa muitas vezes lírica e poética, o imenso e jubiloso mistério da encarnação que realiza a assunção do humano pelo divino, sem nenhuma espiritualização indevida", escreve em artigo Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 02-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O monge beneditino da Congregação Sublacense Cassinese (Fasano, 1964), doutor em Teologia Espiritual, fundador da Koinonia de la Visitation em Rhême-Notre-Dame (AO), em outubro de 2021 foi nomeado prior da abadia de Novalesa, fundada em 726 e localizada em Val Cenischia (Susa), pertencente à Cidade Metropolitana de Turim, que cuida dela. Ele pretende conjugar a vida monástica com a escuta dos sofrimentos dos homens e mulheres de nosso tempo.
Com o seu estilo impregnado de espiritualidade bíblica e sensibilidade humana, traça um caminho de preparação e celebração do mistério do Natal. Vinte e duas breves meditações preparam a celebração refletindo sobre as nove auroras que separam o dia 16 de dezembro do Natal, sobre a luz suave que aparece no dia 25 de dezembro e sobre as doze noites que prolongam a adoração e realização do mistério até a Epifania.
O Natal não celebra o evento do nascimento do Senhor, mas o memorial da encarnação do Verbo nos limites do espaço e do tempo. Esse mistério exige que se pense na divinização do homem não em termos espiritualizantes, mas em termos de "encarnação", isto é, de transformação e de comunicação da vida divina à vida dos próprios homens. É a troca maravilhosa entre o humano e o divino celebrada pelos Padres com a imagem do divinum commercium.
Na celebração do Natal do Senhor, todos os anos é oferecida ao homem a possibilidade de "verificar o quanto Cristo - que trazemos dentro de nós como uma semente que vem do Espírito - cresceu em nós" (p. 6).
Na escuta amorosa da Palavra de Deus e na celebração dos sacramentos, pode-se verificar quanto e como nosso desejo de Deus está se transformando em presença de Deus em nós. Essencial na economia da salvação é justamente o nascimento de Cristo na alma, em cada um de nós, afirma o autor. E o confirma com as palavras deslumbrantes de Angelus Silesius: "Ainda que Cristo nascesse mil vezes em Belém, se não nascer em ti, tua alma ficará perdida".
DAVIDE, Michael. Nove aurore e dodici notti: meditazioni quotidiane dal 16 dicembre all’Epifania. Pádua: Edizioni Messaggero, 2022, p. 112
Foto: divulgação
Cada capítulo do livro inclui parte do texto bíblico do Evangelho do dia, uma breve meditação, uma oração que retoma o tema principal da meditação e uma invocação orante que implora intensamente a vinda do Senhor Jesus.
De 17 a 24 de dezembro, a invocação retoma as Antífonas do Ó, próprias da liturgia das Vésperas.
Depois do Natal, a oração final, ao contrário, concentra-se na troca maravilhosa que se realizou com a encarnação, favorecendo ainda mais a contemplação.
A reflexão do autor exprime em uma prosa muitas vezes lírica e poética o imenso e jubiloso mistério da encarnação que realiza a assunção do humano pelo divino, sem nenhuma espiritualização indevida.
Deus se encarna na vida humana, fazendo desabrochar a vida e a luz, em vista de um movimento de vida que conduz à plena expressão do desejo de vida e de felicidade do homem.
Nas passagens bíblicas encontramos personagens que acompanham o caminho orante do homem.
João Batista é a lâmpada que prepara a vinda da Luz, que exorciza o medo de que as trevas tenham a última palavra. A expectativa messiânica de Israel, através da obra iluminadora do Batista, torna-se uma preparação íntima para dar lugar à carne do Verbo na palavra do Evangelho. A invocação só pode ser dirigida ao anunciado pelos profetas, desejado pelos patriarcas, indicado presente pelo Batista. A alma não deve se abandonar à sonolência, mas deve ser amorosamente vigilante. Deve ser aurora de salvação.
Na genealogia de Jesus, nada mais da nossa humanidade é estranho à vida divina, pois o Verbo é a sua origem e o seu magnífico fim. Nada das nossas histórias deve ser subestimado. Cada momento, doce ou amargo, alegre ou triste, cada anélito pelo futuro compõe a história da salvação. Que o Natal seja a aurora de histórias! “Ó Sabedoria que saístes da boca do Altíssimo, / e atingis até os confins de todo o universo / e com força e suavidade governais o mundo inteiro: / oh vinde ensinar-nos o caminho da prudência!”.
José coloca-se com fé na aventura humana de Deus feito homem. Ele dará o nome a Jesus, o guiará em seus passos, com seu silêncio de presença e de amor tenaz lhe transmitirá o nome e a realidade ensinando-lhe os "gestos do ofício", o serviço ao cliente aliado à oração da oficina.
O Emanuel aprenderá com José a ser "Deus com" as coisas, a natureza, os irmãos e irmãs na humanidade, dos quais Maria e José são os primeiros ícones. Eles dão a Jesus a coragem para atravessar as situações e as relações menos vivíveis e amáveis.
Esperamos por ti como uma criança que traz para dentro de casa um choro de criança que coloque em movimento os gestos e as palavras de amor para reencontrar o que nos parecia perdido. “Seja aurora de encontros!
Com o seu silêncio, Zacarias é um homem que ensina a espera e, ao mesmo tempo, a capacidade de fazer esperar os outros para dar tempo a Deus de se revelar. Não deve haver pressa em explicar o dom antes que o outro o receba e o abra maravilhado. O ser silente é a forma de Zacarias levar adiante a gestação de João no ventre de Isabel. “Fecha os nossos lábios e abre os nossos corações... faça estremecer a nossa carne ao perfume inebriante da tua descida entre nós... Seja aurora de silêncios!”.
O anúncio do nascimento de um filho apresenta Maria como “o melhor da nossa humanidade, oferecido à divindade para que encontre a emoção das alegrias da nossa carne”. A Palavra de Deus não está "encartada", mas "encarnada" no dinamismo do crescimento e da mudança de um amor sempre novo.
O "sim" de Maria é o consenso de toda a nossa humanidade para não mais querer conhecer, muito menos buscar a Deus longe de nossas humanas aventuras.
Maria é virgem de corpo barrado a qualquer estranheza, mas ela já está aberta ao casamento ao qual sua virgindade é diretamente ordenada. Está fechada como um botão que deseja ardentemente apenas se abrir. O Senhor compraz-se a ponto de fazer dela a morada do seu grande laboratório da encarnação do Verbo.
O "sim" de Maria foi possível porque, antes mesmo o Senhor que vem disse "sim" à nossa carne, ao nosso sangue, à nossa história. “Seja aurora de concretudes!”.
A preparação para o Natal é auxiliada pela figura de Isabel que encontra Maria. É uma aurora. Àquela que anuncia as flores, Isabel só pode elogiar os frutos. Maria já está habitada pela luz do Verbo, que está tecendo sua vestimenta humana. A luz é irradiada por esta sua nova voz e marcada por uma inconfundível fecundidade.
Em Isabel temos um sinal seguro para discernir a verdade e autenticidade da presença de Deus em nossos corações e em nossas vidas. “Dá-nos o gosto pelo outro e aumenta o desejo por abraços humanos [...] ]. Seja aurora de humanidade".
“No canto de Maria damos glória ao Senhor que vem tomar nas mãos os nossos destinos, para revelar a exultação do seu coração pela alegria de misturar a natureza divina com a nossa realidade humana”, escreve o autor. Maria proclama a grandeza de Deus e a beleza para nós de sermos servos alegres e satisfeitos. O olhar de Deus fez Maria Mãe do Senhor e nos torna capazes de gerar a presença de Deus através de nossa vida humilde, pobre e verdadeira. Podemos fazer isso traduzindo a Anunciação em visitação, em bênção e glorificação.
O Magnificat é o canto dos já salvos que se seguram pelas mãos. O Senhor que vem inaugura os novos tempos do resgate dos pobres, dos humildes, dos famintos, dos servos. Ele convoca “todos os pobres da terra para derrotar – com amor, mas sem inúteis gentilezas e temores – os soberbos e os poderosos. Seja aurora de justiça!”.
A imposição do nome João é marcada pelo “não” de Isabel a toda mera repetição obsessiva do passado. “Trata-se de dar espaço ao evangelho da vida acolhida como aposta no futuro e não como sobrevivência do passado”.
A antevéspera de Natal lembra-nos que “os nascimentos [...] precisam sempre de acolhimento e cuidados para desabrocharem na vida com a sua cor inconfundível e o seu perfume único”. A longa e dolorosa esterilidade fez com que Zacarias e Isabel experimentassem a consciência de seus limites e os tornassem capazes de compreender e acolher a plenitude da intervenção salvífica de Deus em suas vidas e em sua história como inenarrável e inesperada. “Seja aurora de novidades!”.
A véspera da celebração do nascimento do Verbo faz também a nossa vida se dissolver no louvor e na bênção, no acolhimento de uma misericórdia que guia os nossos passos no caminho da paz.
Que o Natal se torne para nós "uma oportunidade para revigorar o 'princípio sensual' da nossa fé: Deus se faz carne e é segurado nos braços de uma mulher!". "Há tanto espaço em meu coração, meu Deus", escrevia Hetty Hillesum. E Michael Davide reza: “Não permita que nossos olhos se voltem para as faixas de tua humilde humanidade de forma distraída, mas com o tremor de quem reconhece o calor e as cores de uma esperança renovada de ser mais humano. Seja mais uma vez Natal!”.
A luz suave do Natal faz-nos ver a imagem de um Deus que se faz recém-nascido e nos permite imaginar um diálogo com o Altíssimo de outra forma impensável. Estamos perante “o grande desafio e o dom magnífico de poder ensinar a Deus a nossa língua, para que possa falar conosco não só de forma compreensível, mas também íntima”. Não precisamos mais aplacar uma divindade irascível com oferendas. Deus se doa na discrição e na emoção de um recém-nascido.
Podemos redescobrir o diálogo que nos permite renovar ou intensificar os laços que tornam a vida bela e amável. "Como os anjos, como os pastores, como os magos, como as estrelas [...] somos chamados a nos colocar em caminho em direção os outro".
Obrigado pela tua tenda entre nós, “em nossa profundeza, onde só tu podes ‘armar a tua tenda’ para nos fazer sentir em casa. Ajude-nos a libertar nossos corações para abrir espaço para ti, como os pastores te acolher com todo o amor que pudermos. Emanuel, Deus conosco!”.
Doze são as noites que separam a celebração do Natal do Verbo na carne da Epifania, manifestação de Deus feito homem a todos as gentes.
A Epifania está para o Natal assim como o Pentecostes está para a Páscoa. São dias de contemplação e reflexão sobre as consequências concretas, inclusive muito exigentes, que o mistério do Natal traz para a nossa vida.
Contemplado em seu nascimento, agora é o tempo de seguir o Senhor e deixar amadurecer sua presença na vida, na força inabalável e na fidelidade que ele nos doará.
A oração final do monge sempre repete: “Tu és Emanuel, Deus conosco” e as últimas invocações começam sempre com as palavras: “Ó troca maravilhosa!”.
A liturgia apresenta-nos a companhia de Estêvão que dá a vida pelo seu Senhor. O amor incondicional de Jesus exige uma postura que revele o que realmente habita e domina o nosso coração. O Espírito que presidiu à encarnação do Verbo é também o modelador do discípulo em toda a conformidade com o Mestre. Estevão é modelo e critério de discernimento para intuir e buscar a autenticidade de um discipulado sereno e confiável.
A festa do protomártir Estêvão dá profundidade evangélica às nossas celebrações natalinas - observa o autor - ajudando-nos a acolher a provocação que é a encarnação do Verbo, em cujo mistério a lógica do mundo se inverte radicalmente em favor da lógica divina do um amor perfeitamente doado. "Do que teríamos medo? Tu és Emanuel, Deus conosco; a noite é como o dia."
O evangelista João mostra-nos a sua juventude interior, disponibilidade e curiosidade perante a vida, indo além das aparências e confiando nas intuições do coração. Aquele que colocou a cabeça no peito de Cristo – ho espisthetios – interceda para que também nós possamos colocar o nosso ouvido no seu coração “para que o ritmo da seu sentir se torne o ritmo da nossa intuição. Emanuel, Deus conosco!”.
O mistério e o drama da dor inocente devem ser aceitos como parte integrante do mistério da vida. O monge reza: “Pedimos-te que guardes as lágrimas derramadas principalmente em segredo e que transformes cada dor numa estrela silenciosa que as trevas não podem calar. Emanuel, Deus conosco!”.
Os idosos Simeão e Ana nos confrontam com nosso relacionamento com Jesus como uma criança que precisa continuamente ser acolhida. Só nos resta tentar segurar o Verbo que se fez carne nos braços da nossa alma para que toda nossa velhice seja inundada com a energia da sua força de humanidade que nos torna parentes de Deus É um acolhimento e um abraço que é luz e paz, cumprimento da promessa, confirmação de um longo caminho: “Um abraço que marca todo começo, todo retorno, todo perdão invocado e concedido. Emanuel, Deus conosco!”. “Ó troca maravilhosa! Mistério do amor que pede para ser acolhido no abraço de humanidade a humanidade, de juventude a velhice, entre o já e o ainda não”.
Jesus que retorna para Nazaré submisso a Maria e José é o sinal da nossa humanidade divinizada, ou seja, a paixão de servir a Deus e de se colocar ao serviço de todos, especialmente dos pequenos. A profetisa Ana nos ajuda a dar mais um passo no caminho. “Senhor Jesus, estamos tão felizes por poder sentir o perfume da tua presença no templo das nossas relações humanas marcadas e transformadas pelo fermento do teu Evangelho. Concedei-nos envelhecer como Ana num espírito de serviço cada vez mais ardente e perenemente alegre. Emanuel, Deus conosco!”.
A luz do Verbo Encarnado é como a luz do sol que precisa ser acolhida, assim como o Verbo de Deus que se oferece como nosso irmão precisa ser reconhecido. A luz habita as trevas, vencendo sem suprimi-las: gentil e amavelmente.
O Verbo de Deus encarnado torna-se uma oportunidade para crescer naquela inteligência do coração que nos torna capazes de habitar a vida com consciência e plenitude.
Maria é virgem e mãe: “… uma mãe que permanece virgem de si mesma para não identificar o filho como fruto da própria carne e da própria vida, mas como um dom dado ao mundo inteiro [...] O desafio não é se tornar senhores ou mães, mas ser filhos". "Virgem mãe, filha de teu filho!" exclama Bernardo de Claraval.
O ano se abre sob o manto protetor de Maria, ventre que gera e regenera vida nova no amor do Emanuel Deus conosco! “Ó troca maravilhosa! Mistério de amor que nos torna como mães sempre prontas a dar espaço à vida até dar toda a vida”.
O Batista radicaliza a atitude de espera e de acolhimento, mas se empenha também a dar espaço para a salvação. O Verbo que se fez carne não pode viver em nós sem o nosso consenso e o nosso amor.
Através da imagem do Cordeiro, daquele que tira o pecado do mundo, João aprofunda a sua meditação no mistério da encarnação. Em Jesus que passa, ele reconhece o filho de Deus. A aparição silenciosa do Verbo feito carne, viandante discreto e luminoso, é significada pelo cordeiro e pela pomba, mansos em se apresentarem e generosos em se doarem. O Batista ajuda-nos a ser cada vez mais verdadeiramente filhos de Deus:
“O que procurais?”. Jesus interroga-nos sobre as nossas perguntas de sempre, sem nos deixar temer o desejo que nos habita. Emanuel Deus conosco! “Ó troca misteriosa! Mistério de amor que se torna olhar para cada um para dar a todos a possibilidade de responder à vida sem nunca esquecer o desejo que nos habita”.
Com Simão e André, com Filipe e Natanael, Jesus parece mostrar que o seu objetivo não é ter discípulos, mas permitir, através do discipulado, encontrar-se e reconhecer-se como irmãos. A troca misteriosa é um mistério de amor que nos torna irmãos e irmãs e desejosos de tornar possível a comunhão e a solidariedade.
A Epifania está para o Natal como o Pentecostes está para a Páscoa. A explicação do mistério da ressurreição a todos os povos exige cinquenta dias. Doze, por outro lado, são as noites necessárias para que a criança, anunciada pelos anjos e descoberta pelos pastores na noite de Natal, seja encontrada com grande alegria pelos personagens misteriosos que vieram de longe.
A Epifania é a festa da ampliação cordial que começou com a encarnação do Verbo, mas ainda em ato porque envolve a nossa capacidade de nos colocar em viagem para Belém, aceitando deixar Jerusalém para trás.
A Epifania é uma festa da ampliação cordial porque faz contemplar a amplitude do desígnio divino e porque lança a cada homem e mulher o desafio de abrir-se cada vez mais ao reconhecimento no outro do próprio rosto do Altíssimo. Dois verbos guardamos depois de doze noites, afirma o autor: adorar e compartilhar.
“Aqui estamos, Senhor Emanuel, Deus conosco! Nós te buscamos e só a ti desejamos: ensina-nos a ampliar o espaço do coração, a acolher-te em silencioso agradecimento, na escuta da tua vontade, em comunhão com todos os irmãos e irmãs e sempre prontos a partir. […]. Ó troca maravilhosa!”.