28 Outubro 2022
“Nós, que temos o hábito de falar, pensar e escrever, a única coisa que podemos fazer é provocar a escuta de muitas vozes, compartilhar a experiência humana, que às vezes explica melhor a realidade do que um montão de teorias”. O filósofo, jornalista e escritor Josep Ramoneda (Cervera, 1949) considera que a reflexão a partir das humanidades é crucial para enfrentar os problemas contemporâneos.
Sobre a necessidade de criar espaços para o pensamento coletivo, o diretor da revista de pensamento La maleta de Portbou reúne, em Dénia, Espanha, um painel de especialistas em ciência, tecnologia, saúde, geopolítica, economia, escrita e arte para abordar as preocupações humanas em seu sentido mais amplo, atravessadas por conflitos presentes, que nos fazem sentir “presos em um presente contínuo”.
Durante três dias, o Festival d’Humanitats, coordenado pelo filósofo com o apoio do governo de Dénia e da Comunidade Valenciana, propõe alguns encontros para debater a relação humana com a natureza, a crise do modelo patriarcal, o futuro da saúde e as derivas autoritárias.
A entrevista é de Laura Martínez, publicada por El Diario, 26-10-2022. A tradução é do Cepat.
O título dá uma pista, mas o que se pretende com este festival?
Em um momento em que o peso da tecnologia é muito forte, em que estamos sendo superados por sistemas de comunicação e expressão que de alguma forma vão além de nós, e em um momento em que estamos cercados por um sentimento de mudança, de fim de uma era, uma reflexão que venha das humanidades como um genuíno discurso da experiência humana nos parece interessante.
Sobretudo, consideramos interessante pensar juntos. Pretendemos colocar em diversas mesas cientistas, filósofos, artistas e escritores para debater as grandes questões que transmitem a sensação de estarmos em um mundo que não sabe bem em que direção caminha, preso em um presente contínuo.
Na primeira mesa, intitulada ‘A imensidão da alma humana’, levanta-se a ideia de que escolhemos um paraíso privado onde nos sentaremos sozinhos, com a serpente como nossa única companhia. O que você quer dizer com esta metáfora?
Penso que temos de nos conectar uns com os outros, estabelecer certa capacidade de reflexão compartilhada que nos abra perspectivas, que nos abra campos como humanidade em um momento em que o mundo é menor, caminha mais rápido de um lado para o outro, as comunicações ocorrem de forma mais rápida, mas estamos mais conscientes do que nunca de que não estamos constituídos como humanidade.
Estamos isolados?
Isolados ou não, há um certo sentimento de inquietação. Viemos de gerações que foram alimentadas pela ideia de progresso, após a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Há uma espécie de queda nas expectativas de futuro, vergada por um progresso que, às vezes, parece descontrolado pelas grandes tecnologias.
E nas democracias liberais, quais são os efeitos que essa inquietação pode ter?
Há um problema subjacente, que é o que estamos falando: a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro global. Isso levanta problemas muito sérios. A democracia liberal foi algo que funcionou em um ponto relativamente inesperado: a conjunção do capitalismo industrial e o Estado-nação. Agora, o capitalismo industrial não existe. O Estado-nação não se sabe muito bem.
E a democracia? Segue no jogo? Ou todos esses sinais que anunciam, de diferentes posições, de diferentes perspectivas, de Putin à extrema direita europeia, uma espécie de evolução para o autoritarismo pós-democrático... São uma ameaça real? Estamos cientes disso? Estamos vivendo situações semelhantes às dos anos 1930? São questões que estão sobre a mesa, como algumas colocadas pela ciência, que às vezes as humanidades evitam pela dificuldade de torná-las suas. São temas sobre os quais é preciso falar, pensar coletivamente.
E depois há duas questões estruturais que estão em questão e que precisam ser enfrentadas. Uma é um mundo construído sobre estruturas patriarcais que não se sustentam mais. Como reverter isto? Como se chega a um mundo com padrões mais equilibrados? A segunda é o que fazemos com uma natureza que está escapando de nossas mãos, com um mundo que ameaça ser cada dia mais inabitável. Temos que falar a esse respeito, pois o negacionismo não serve para nada.
Em outros momentos históricos, mesmo em outros continentes, as crises, o mal-estar, levaram a mudanças sociais, a revoluções...
É claro. Não iremos descobrir agora que a humanidade tem momentos ruins, é um ciclo constante.
Mas parece que isso agora nos leva a um bloqueio.
É um sentimento que devemos superar, ir além. Por isso, é preciso levantar questões. Sentar-se com pessoas razoáveis, capazes de fazer contribuições importantes. No roteiro do festival, estão do homem biônico à questão da imigração, passando pela atenção à natureza e as estruturas patriarcais. Continuaremos tentando avançar em um território que deve ser pensado. Sobretudo, considero que é importante trazer diferentes perspectivas.
Entre os temas do programa estão as fronteiras, o binômio saúde-doença, o feminismo-modelo patriarcal e a relação do ser humano com o planeta. Traz uma agenda clara de prioridades, de desafios de longo prazo. Mas, em suma, isso corresponde à agenda institucional?
Este não é um encontro político, é um encontro para refletir e permitir que diferentes pessoas falem e se entendam. Não vamos mudar o mundo, vamos falar, pensar, dar pontos de vista e ver se, desta forma, vamos contribuindo para criar espaços de comunicação que permitam gerar consciência dos problemas que temos pela frente.
Do ponto de vista da consciência, dá a sensação que tomar medidas demora, que se depara com outras questões urgentes, como a pandemia.
Este é o problema. A política tem dificuldade para atuar porque há interesses em jogo, interesses conflitantes ou interesses representados por poucas pessoas com muito poder, o que dificulta encaminhar as coisas de um modo racional e razoável. Vivemos em uma cultura que fez do sucesso e do dinheiro um horizonte possível e isso pode levar a becos sem saída, como esse em que estamos agora, com tanto comportamento niilista, guiado pela perda de limites. É o que vemos em representantes como Putin ou no poder econômico global, e algo essencial à condição humana são os limites, nunca se pode perder a ideia de limites.
Parece que o urgente desloca constantemente o importante, nesse presente contínuo que você comentava. Nesse contexto, como é possível pensar, se não há tempo, nem espaço?
É o que tentamos criar: pequenos espaços nos quais a reflexão seja possível. Que pouco a pouco vão atraindo os cidadãos e vão gerando um certo espírito crítico, um estado de opinião para enfrentar as coisas.
Com a pandemia, aventou-se que poderia ocorrer uma mudança social, embora você tenha se mostrado cético a essa ideia, e que essa crise contestava o modelo neoliberal. No entanto, em algumas partes da Europa, na Itália, no Reino Unido... não parece ser assim.
A pandemia foi um aviso importante que deveria nos fazer tomar consciência de nossas limitações. Em um mundo que acreditávamos estar carregado de potência química, física, tivemos que fazer algo tão primitivo como fechar as pessoas em casa. Isso foi um choque, uma lição de humildade para a humanidade.
É verdade que vivemos em um momento acelerado, em que as coisas acontecem tão rápido que é difícil que as lições se firmem. Por isso, propomos debates como esses, para não deixar as coisas passarem, para tentar aprender com as experiências que vivemos. Acontece que isso coincidiu com a pandemia e com uma ruptura trazida pela crise de 2008, com o fim da fantasia do neoliberalismo econômico, que está produzindo um crescimento espetacular das vias autoritárias em muitos lugares.
As democracias europeias estão preparadas para este enfrentamento? Por essas fissuras, os neofascistas estão se fixando nos governos.
Terão que provar que sim. Ou irão se submetendo, como às vezes dá certo medo, com políticas de apaziguamento que lembram as dos anos 1930. Fico surpreso que Macron vá tão depressa cumprimentar Meloni. O que fazemos com isso? É uma espécie de Chamberlain? É preciso ir com cuidado com essas coisas.
Existem setores para os quais não se pode fazer concessões, é preciso combatê-los. Neste momento, todas as direitas europeias estão se adaptando muito facilmente à radicalização. E não é por acaso que expressam certa cumplicidade com Putin. São duas formas de autoritarismo.
Qual o motivo para essa adaptação?
No atual sistema econômico e político, há razões para suspeitar que a via autoritária acabe se impondo.
Acerca dos temas dos debates, há outra questão que planeja que é a segurança-insegurança. A insegurança é um sinal de nossos tempos? Os muros, o medo...
A insegurança é um elemento estrutural da espécie humana. Partimos da condição precária da espécie, com sorte, nascemos e morremos em cem anos, não é sequer um microssegundo do universo. Temos que ser conscientes. Em um mundo em que foi criado um bem-estar amplo, com uma parte dos cidadãos bem acomodada, em crises e momentos de choque como o atual, a tentação autoritária se torna mais fácil.
Há pessoas que pensavam que nunca estariam do lado dos perdedores, que se sentem ameaçadas e temem que as deixem cair. Já aconteceu em outros momentos da história, de alguma forma, são fases cíclicas. Agora, deveríamos tentar fazer com que essa fase se abra para novos caminhos e recuperemos certo horizonte de expectativas e de esperança, mas para isso devemos encarar abertamente os problemas que temos pela frente.
Para interromper essa espiral de vulnerabilidade, é preciso ter consciência dessa vulnerabilidade.
É o ponto de partida. Se acreditamos ser deuses, estamos perdidos.
Um dos temas que se destacou, principalmente durante a pandemia, foi o aumento do mal-estar nos Estados de Bem-Estar. Os problemas de saúde mental aumentaram consideravelmente nos últimos cinco anos, principalmente na população mais jovem. Uma sociedade em que seus jovens não querem viver, com altos índices de suicídio entre eles, que futuro tem?
Sentem-se desesperados, com poucas expectativas, porque pesa sobre eles uma ideologia meritocrática que exclui diretamente a população. Por isso, estamos em um momento em que as áreas de marginalidade, de perda de posição, estão se ampliando. É evidente que há um fracasso político da esquerda e da direita liberal.
A meritocracia é uma armadilha em que se cai constantemente.
E é uma armadilha ridícula. O que se quer dizer com mérito? Alguém escolheu a situação em que nasceu, as oportunidades que lhe couberam? É realmente ideologia no sentido mais triste da palavra: querer fazer acreditar em uma coisa que é completamente falsa.
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“Um mundo que não sabe bem em que direção caminha, preso em um presente contínuo”. Entrevista com Josep Ramoneda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU