24 Outubro 2022
"Cada dia mais de guerra é um dia de mais degradação para toda a sociedade. Os conflitos começam como confrontos militares, mas logo começam a ‘contagiar’ toda a vida de uma nação. Os crimes se multiplicam, os massacres se tornam mais hediondos. Nós, colombianos, sabemos bem disso: lutamos entre nós por mais de meio século. Por isso, levantamos nossa voz para pedir a Kiev e Moscou que encontrem um caminho para a paz”. Francisco De Roux, 79 anos, conhece até bem demais a "geografia da dor" da Colômbia transformada em campo de batalha pelo mais longo conflito civil do Ocidente.
O jesuíta e reconhecido intelectual dedicou sua vida a percorrer o país, curando as feridas deixadas no corpo e no espírito dos sobreviventes. Por isso, ninguém se surpreendeu quando, há quatro anos, o sacerdote foi encarregado de presidir a Comissão da Verdade, criada como parte dos acordos de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) para reconstruir a memória histórica da "Grande Guerra". Uma experiência comparável em alcance àquela sul-africana. Com algumas características originais, no entanto, como a escolha de montar 28 “sucursais” para ir ouvir as vítimas em suas comunidades. Em 28 de junho, a entidade estatal, de nível constitucional, apresentou seu relatório final. Uma obra titânica para a qual a Comissão foi selecionada entre os três finalistas do Prêmio Sakharov 2022.
Nas 900 páginas do documento, horrores de toda a espécie sucedem-se. No entanto, nas entrelinhas, pode se ler uma "mensagem de esperança e de futuro para nossa nação dilacerada e quebrada", mas também para o resto do mundo.
A entrevista é de Lucia Capuzzi, publicada por Avvenire, 22-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Padre Francisco, qual é a lição que o planeta e agora a Europa, novamente dilacerada pela guerra, podem aprender com a Colômbia?
Que as armas não resolvem nada. Ao contrário, pioram o cenário. Mais cedo ou mais tarde devem ser postas de lado. Quanto mais tempo, porém, forem mantidos na mão, mais profundas são as feridas infligidas ao corpo social. E os civis pagam o preço mais alto, como vimos na Colômbia. Vou dar um exemplo. Tivemos 47.000 policiais e militares mortos em combate e um número semelhante de baixas entre guerrilheiros e paramilitares. Calculamos cerca de 120 mil vítimas em ação. Para cada uma delas, oito civis foram mortos. A isso devemos somais mais 7,8 milhões de deslocados internos,
120.000 desaparecidos, 51.000 sequestrados. A outra grande lição colombiana é, portanto, que o conflito assola com particular crueldade os mais frágeis. Estamos vendo isso agora na Ucrânia. Por isso, espero e rezo para que em breve se chegue à mesa de negociações. A paz é a única alternativa à barbárie.
O que a comunidade internacional pode fazer em contextos desse tipo?
Novamente, volto ao caso da Colômbia. Meu país foi considerado por décadas como uma democracia sitiada por um "inimigo interno". Várias nações nos "ajudaram" enviando-nos tecnologia militar, treinadores, armas. Como percebemos dramaticamente, isso não resolveu o problema. Apenas o agudizou. Como Comissão da Verdade, pedimos e estamos pedindo ao mundo que não ajude mais a Colômbia a se manter em guerra. Queremos um exército ao serviço dos cidadãos para a paz.
Você e a Comissão registraram os crimes do conflito colombiano. Isso não acaba fomentando o ódio e o desejo de vingança?
Pelo contrário, reconstruir e conhecer a verdade é o único caminho para uma autêntica reconciliação.
Mas é realmente possível reconciliar depois de infligir tanta dor um ao outro?
A Colômbia prova que sim. Vimos e estamos vendo vítimas de sofrimentos incalculáveis encontrarem forças para perdoar. Não para pedir vingança, mas para que tais atrocidades nunca mais aconteçam. Claro, não se pode obrigar uma vítima a perdoar. Sua dor deve ser acolhida e ouvida. É a única forma de ajudar a pessoa a colocar-se numa perspectiva de futuro, encontrando a capacidade de dizer: "Nunca mais". É preciso tempo e paciência. Mas se está acontecendo na Colômbia também pode acontecer em outros lugares.
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'As armas não resolvem nada, só a paz pode parar a barbárie'. Entrevista com Francisco De Roux - Instituto Humanitas Unisinos - IHU