O que é o viver saboroso, eixo do governo Petro-Francia. As pautas inegociáveis: paz e reparação, reforma agrária e justiça social. O uribismo abatido, porém ainda vivo. A proposta de amplo diálogo com a sociedade, inclusive com a direita.
A reportagem é de Julian Gomez Delgado, publicada por Nuso e reproduzido por OutrasPalavras. A tradução é de Rôney Rodrigues, 04-07-2022.
Em 21 de junho, dois dias após às eleições, Francia Márquez Mina, a nova vice-presidente da Colômbia concedeu sua primeira entrevista para um noticiário nacional. A jornalista perguntou-lhe se o “viver saboroso”, uma das suas convicções comunitárias e mote de campanha, iria tornar-se uma realidade para ela agora que podia viver numa casa oficial. “Se vocês pensam que porque eu sou uma mulher empobrecida e que me dando uma casa presidencial eu já estou vivendo de forma saborosa, vocês estão muito enganados. Isso faz parte do classismo deste país (…) O viver saboroso para o negro, nas entranhas de nossa identidade étnica e cultural, é viver sem medo, viver com dignidade, é viver com garantia de direitos”, respondeu Márquez.
Em sua resposta, Francia Márquez não estava falando apenas com a jornalista, mas com o grosso da sociedade colombiana que acredita que o “viver saboroso” ou viver sem medo consiste em levar um estilo de vida opulento, no qual o objetivo é acumular dinheiro e ostentar alguns signos da classe abastada. Essa ideia equivocada, historicamente reproduzida e legitimada pela sociedade, é produto do fato de a Colômbia ser o segundo país mais desigual de toda a região.
Depois de se manifestar contra o pensamento extrativista, resistindo localmente e questionando o governo nacional em várias ocasiões, Márquez decidiu ir, em suas palavras, “da resistência ao poder”. Pela segunda vez aspirou a um cargo de eleição popular, apresentando-se em março deste ano às primárias de esquerda, como parte do movimento Soy Porque Somos e com o aval do partido Polo Democrático Alternativo. Márquez obteve uma votação superior à do vencedor na consulta de “centro” e ficou em segundo lugar na consulta do Pacto Histórico. Por esse e outros motivos, compôs a chapa de Gustavo Petro.
Petro e Márquez foram eleitos para governar a Colômbia – a primeira vez que uma aliança esquerdista, progressista e diversificada chega à presidência. O Pacto Histórico reuniu lideranças de partidos de esquerda e alternativos, alguns liberais e ex-políticos conservadores, além de lideranças e coletivos sociais, ambientalistas e algumas igrejas. Este é um momento de reivindicação democrática do campo popular porque a participação desses grupos era orgânica e não se reduzia a uma aliança eleitoral ou a uma necessidade clientelista.
A eleição de Petro e Márquez representa um possível “ponto de virada” , entendido como um breve momento em que se rompem as relações estabelecidas e se pode construir um novo regime sob diretrizes estáveis, neste caso de interação entre o Estado e a sociedade. É também uma oportunidade para a reinvenção progressista da região. Por isso, vale a pena explorar o cenário político em que se encontra (e quais os desafios que enfrentam) o novo governo, pelo menos durante a primeira fase. Um desafio fundamental é a tensão entre construir acordos, implementar reformas e alcançar uma verdadeira mudança social, cujo horizonte é cumprir a promessa de “viver saboroso”.
Petro e Márquez obtiveram 11.281.013 votos no segundo turno presidencial em 19 de junho. Este foi o maior número de votos para a Presidência, naquela que foi também a eleição com maior participação cidadã. A fórmula do Pacto Histórico derrotou o empresário e outsider de direita Rodolfo Hernández, que realizou uma campanha baseada em um discurso anticorrupção sem muito conteúdo, impulsado particularmente pelas redes sociais. Alguns tropeços durante o segundo turno da campanha e os processos que enfrenta por supostos atos de corrupção quando foi prefeito de Bucaramanga contribuíram para que ele obtivesse 700.061 votos a menos que Petro. No segundo turno, pesou muito o voto dos “primivotantes” (aqueles que votavam pela primeira vez), ou seja, um voto majoritário dos jovens. Somou-se a isso o voto que Francia Márquez conseguiu mobilizar em áreas empobrecidas da região do Pacífico e, especialmente, os votos populares na área do Caribe, onde os membros do Pacto Histórico ajudaram a ampliar a participação.
A coalizão “pluriplebeia”, que contou também com o apoio de parte da política tradicional – majoritariamente membros de setores social-democratas, mas também liberais e ex-conservadores –, conseguiu derrotar um arco político de direita que, há décadas, vem sendo hegemônico no país. A partir do governo, essa direita, liderada pela poderosa figura de Álvaro Uribe, promoveu políticas de desapropriação de terras, execuções extrajudiciais, concentração de riqueza, cooptação da mídia e perseguição à oposição e diversidades sexuais e étnicas, além de rasgar o acordo de paz com a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
Álvaro Uribe (Foto: Center for American Progress | Wikimedia Commons)
Para alguns, a vitória de Petro e Márquez representa o declínio definitivo da hegemonia uribista, que foi a que colocou o atual presidente Iván Duque como representante de uma versão supostamente moderada da direita. No entanto, certos valores conservadores que essa hegemonia reivindicava, como o racismo, o classismo, as visões hierárquicas da sociedade ou o papel de uma figura patriarcal de herói ou pai salvador – historicamente encarnado por Uribe, mas que agora sendo assumido por Rodolfo Hernández, que está fora do círculo político de Uribe – vêm se reciclando e transformando. O panorama político é, então, o de uma política eleitoral pós-Uribe, mas não necessariamente pós-uribista.
O paradigma uribista certamente ganhará um novo nome, buscando representar aqueles valores que encarnaram projetos de direita e que se instalaram em um setor da sociedade. Esse cenário impõe ao novo governo a necessidade de consolidar uma ampla aliança progressista realize transformações profundas no projeto excludente de nação, construído tanto por políticos tradicionais quanto por uma série de tecnocratas que, apresentando-se como apolíticos, têm conduzido as políticas estatais.
Nesse sentido, é importante afirmar que, como lembra Camila Osorio, a lenta vitória da esquerda foi catapultada por uma longa história de luta, na qual a exclusão, a perseguição e até o extermínio estiveram presentes. Parte do questionamento das práticas políticas do establishment e seus valores vieram de manifestações populares recentes como a greve nacional dos estudantes em 2011, a greve nacional agrária em 2013, a desmobilização das FARC e as mobilizações pela paz após a plebiscito em 2016. A isso se somaram a greve cívica na cidade de Buenaventura durante 2017, a greve nacional de 2019, que conseguiu uma aliança urbano-rural, os protestos de dois anos atrás contra a polícia em Bogotá e a greve nacional de 2021, que expressou a desigualdade histórica, agravada pela crise econômica aprofundada pela pandemia.
Essas manifestações demonstraram o esgotamento da lógica autoritária do Estado colombiano e do modo de funcionamento de suas elites. Também expôs o fato de que os ricos e poderosos vivenciam uma realidade social e política muito diferente da que os pobres e marginalizados enfrentam, excluídos das riquezas geradas pelo crescimento econômico e alguns dos quais foram desprezados, tratados como insurgentes em potenciais. De fato, a exclusão da dissidência – que reduziu a discordância a mero “terrorismo comunista” – deveria nos convidar a refletir sobre a natureza da democracia colombiana, muitas vezes apresentada como a mais estável do continente.
A erosão dessa lógica abriu caminho para a ideia impulsada por Petro de considerar o oposto como adversário político — e não mais como inimigo. Por exemplo, em 23 de junho Petro convidou Uribe para uma conversa, que foi aceita pelo ex-presidente. Petro tem insistido com frequência que o acordo de paz não deve ser feito apenas entre o Estado e grupos organizados ilegais, mas entre homens e mulheres colombianos, com suas divergências e apesar da violência do passado.
O panorama político é, portanto, o de uma reconfiguração da política nacional, num contexto em que Petro tem apelado de “Grande Acordo Nacional”. Este acordo é pensado como um grande diálogo nacional que terá suas variantes em nível territorial. Com base na participação cidadã e com uma metodologia que terá que ser discutida, os diálogos são planejados como uma contribuição ao plano nacional de desenvolvimento. Esse plano, foi dito, expressará o acordo alcançado e, depois, será tramitado no Congresso. Com isso, o Pacto Histórico busca estabelecer algo inédito na Colômbia: dialogar com o diferente ao invés de eliminá-lo. Segundo Petro, isso resultará em um novo clima de diálogo. Poderia ser o caminho para alcançar, como diz o filósofo Estanislao Zuleta, uma sociedade em que os conflitos não terminam ou são suprimidos, mas que aprende a ter outros melhores.
Tanto Petro quanto Márquez sabem que têm um compromisso com seu eleitorado. Este baseia-se, em primeiro lugar, na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Para tanto, adotaram uma agenda baseada em três linhas gerais: a garantia de uma transição para um país pacífico, um compromisso ambicioso com a justiça social e um programa de justiça ambiental.
Uma das principais apostas de Petro-Francia, que lideram a Colômbia, é a implementação dos acordos de paz com as FARC, compromissos incontornáveis de reforma agrária, mudança na política de drogas e implementação de um verdadeiro sistema de justiça e reparação. A agenda deste novo governo, no entanto, não se esgota no que foi acordado anteriormente, mas também aposta na paz com os guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional (ELN), bem como na mediação com grupos ligados aos cartéis de drogas como o Clã do Golfo, que opera em todas as Américas.
A justiça social, uma das principais preocupações do novo governo, visará, pelo menos inicialmente, melhorar as condições de vida de uma maioria muito empobrecida. A possibilidade de entregar uma “renda vital” aos setores mais pobres repercutiu fortemente durante a campanha. Da mesma forma, propõe-se subsidiar insumos para a agricultura a partir do dinheiro que se pretende arrecadar com uma reforma tributária que compõe um novo “pacto fiscal” progressivo. Esse é um ponto crucial, pois Petro e Márquez terão o maior déficit fiscal de toda a história do país.
Por fim, o novo governo marcou fortemente sua vocação em firmar a partir do progressismo ambientalista. Nesse sentido, houve declarações de Petro-Francia a favor de abandonar a exploração de petróleo e carvão. Nessa decisão, que resta saber se será efetivada, pesaram muito as lutas sociais e ambientais das comunidades em territórios como a Amazônia, onde há um forte impacto ambiental dessas atividades, além da poluição causada pelas atividades do Norte global. Sem dúvida, avançar nessa direção não será fácil. Petro e Márquez terão que negociar com o grande capital e, sem dúvida, terão uma batalha de interesses no que também será um debate transnacional.
O triunfo de Petro e Márquez gerou mudanças no tabuleiro político colombiano. Naturalmente, é de se esperar que a direita tente bloquear algumas dessas iniciativas de reformas no Congresso. No entanto, políticos com mais experiência, e que já apoiaram Uribe e, depois, outros como Santos e Roy Barreras, sabem trabalhar em um cenário de conflitos. Negociador dos acordos de paz e ex-braço direito de Juan Manuel Santos, Barreras é hoje um ativo político de Petro, a ponto de ter sido indicado à presidência do Senado pelo atual presidente. Gestores como Barreras, que agora pertence ao Pacto Histórico, são velhos conhecidos do establishment e podem ter as chaves para garantir consensos. Para alguns dos eleitores de Petro e Márquez, no entanto, esses atores representam “mais do mesmo”, embora até agora tenham se curvado às regras da coalizão.
Juan Manuel Santos (Foto: Ministerio TIC Colombia | Wikimedia Commons)
No entanto, os políticos tradicionais que manifestaram interesse em participar do acordo convocado por Petro poderiam cooptar a agenda reformista de mudança, devido às suas conhecidas habilidades no mundo da realpolitik. Mas Petro e Márquez, mesmo sabendo dessa possibilidade, precisam obter a maioria no Congresso em sua primeira fase. Os liberais e o Partido de la U [Social de Unidade Nacioanl] já anunciaram que apoiarão Petro — e outros grupos se declararam não-oposição. E o novo gabinete deverá ser variado e moderado, com números ligados a esses partidos.
Outro desafio é aquele que surgirá no interior do oficialismo entre as diferentes organizações e tendências que o compõem. Parte do que ainda não está definido é o tipo de organização que o Pacto Histórico será, já que a plataforma funcionou no momento de fazer campanha, mas agora enfrentará o desafio de governar a Colômbia. Ainda não está claro o quanto Petro está disposto a negociar no interior da organização, mesmo que ele tenha esclarecido que, embora as reformas não sejam negociáveis, haverá debates sobre seu conteúdo.
O eleitorado de Petro e Márquez, e da esquerda em geral, representará outro desafio para a coalizão governista. As expectativas de mudança são altas, mas Petro já mostrou um alto nível de pragmatismo político. Mesmo sem assumir o cargo, ele já sugeriu que a busca por acordos o levará a reduzir algumas das promessas de campanha, principalmente aquelas feitas ao que se poderia chamar de público multiplebe. A forma de superar esses desafios poderia ser a definição de uma agenda clara de mínimos e máximos. O estabelecimento de uma agenda mínima baseada no plano ambicioso para alcançar a paz, a justiça social e o progressismo ambiental poderia ser a base para evitar decepções.
Nesse sentido, o novo governo deve definir o conteúdo das políticas, o que aspira e o que está disposto a negociar. Em segundo plano, fica a questão de saber se está disposto a realizar reformas radicais e, em especial, por que seria “radical” nesse contexto. Da mesma forma, será importante ver o que resulta da interação entre Petro e Marquez. Enquanto Petro está inscrito em uma agenda de esquerda do século passado, Márquez, vindo dos movimentos sociais, representa parte de uma nova sensibilidade popular. A aliança entre os dois tem o desafio de explorar o vínculo entre o campo popular e o da burocracia estatal, com as tensões que isso implica.
É provável que, ao atingir um mínimo de reformas, Petro e Márquez cumpram pelo menos parte da plataforma que os elegeu, ao mesmo tempo em que alcançam governabilidade e legitimidade social. Isso poderia permitir-lhes consolidar uma nova hegemonia progressista no futuro. De qualquer forma, a simples colocação de alguns temas há muito esquecidos na agenda pública já é um avanço no horizonte democrático.
Este momento de reinvenção progressista deve ser levado a sério, não apenas pelo processo de realinhamento de forças e pelas altas expectativas que se mantêm na Colômbia, mas também pelo que pode representar no exterior, à medida que o país ingressa em uma nova “virada progressista” na América Latina, após a primeira experiência da “onda rosa”. A linguagem do reformismo é sempre ilusória, mas, em última análise, também é hora de reinventar uma política progressista que alcance o reformismo radical com governabilidade. Em última análise, o desafio geral é alcançar uma nova imaginação política. O que está em jogo é que os cidadãos da Colômbia possam, como diz Francia Márquez, “viver saboroso”.