Economia de Francisco e Economia de Missões: encarnação e transdisciplinaridade na construção de políticas públicas

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

04 Outubro 2022

 

Em 1º de maio de 2019, o Papa Francisco convocou jovens acadêmicos, ativistas e empreendedores para buscarem caminhos na direção de uma nova economia em torno da mesa comum de Assis. A pandemia acabou postergando o primeiro evento presencial, originalmente agendado para março de 2020.

 

No entanto, o processo tomou corpo de forma online (incluindo as duas primeiras edições do evento – em 2020 e 2021), e, há dois anos atrás, na véspera do dia de São Francisco, foi lançada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU a Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

 

Neste dia 04 de outubro (dia de São Francisco), ao celebrarmos os dois anos dessa iniciativa motivada pela Economia de Francisco com apoio do IHU, e com o recém realizado primeiro presencial (nos últimos dias 22 a 24 de setembro), entrevistamos o grupo coordenador da Coluna, que acabou de lançar em Assis o projeto “Mission Economy” (Economia de Missões).

 

O grupo faz um balanço do processo da Economia de Francisco a nível mundial, os projetos que derivam dessas articulações e analisa que diretrizes o Papa Francisco continua manifestando para a construção efetiva de uma nova economia.

 

A entrevista coletiva foi realizada com Klaus da Silva Raupp, Tatiana Vasconcelos Fleming Machado, Lucas Prata Feres, Mariana Reis, Claudia de Andrade Silva e Roberto Jefferson Normando.

 

Eis a entrevista.

 

Como os debates acerca da Economia de Francisco tem se desenvolvido? Que insights (acadêmicos, pastorais e políticos) tem suscitado nos grupos interessados?

 

A Economia de Francisco é um conjunto muito diverso e complexo de ideias, culturas, visões de mundo, áreas acadêmicas, religiões, realidades socioeconômicas, entre outros. Essa característica bastante rica é também bastante desafiadora e, desde o começo, enfrentamos o desafio de juntar toda essa diversidade e complexidade num espaço no qual seja possível respeitar e se sentir respeitado ao compartilhar propostas e sonhos.

 

Esse espaço de debate se desenvolve com o tempo, ainda é um processo que requer muito aprendizado. Entretanto, um objetivo muito caro e que nos leva à unidade é à construção de uma Nova Economia que preze pela dignidade humana e também por toda a vida da nossa Casa Comum.

 

Como chegaremos nessa Nova Economia realmada? Ainda não temos resposta, mas temos propostas diversas, vindas de jovens de toda a parte do mundo que atenderam ao chamado do Papa e que têm esse objetivo e sonho em comum. Nessa perspectiva, muitos insights têm nascido das discussões.

 

Em termos acadêmicos, podemos dizer que a Economia de Francisco acolheu diversas correntes teóricas marginalizadas no mainstream econômico. Inspirações vêm das mais diversas fontes como a teoria da complexidade, economia ecológica, economia civil, economia feminista, entre muitas outras.

 

Em termos pastorais, a Economia de Francisco têm reforçado e feito nascer novos movimentos nas comunidades católicas, especialmente nas periféricas. Na América Latina, pelo menos, podemos constatar o interesse de muitos dentro das comunidades pela profecia da Economia de Francisco, além da atuação dos hubs locais/regionais que estão mais próximos das pastorais.

 

Devemos lembrar também que a Economia de Francisco engloba outras orientações religiosas que têm construído junto conosco uma abordagem espiritualizada, porém inter-religiosa e ecumênica que possa ser acessível a todas as confissões, e mesmo para quem não as tem.

 

Politicamente, a Economia de Francisco tem o intuito de inspirar o debate político e mesmo propor políticas públicas condizentes com uma economia mais humana. Contudo, assim como no debate acadêmico e teórico, o campo político é desafiador, diverso e ainda dominado por uma parcela não representativa da sociedade, o que faz com que traduzir a Economia de Francisco para ações políticas concretas seja um processo de longo prazo, que sim, vem sendo construído há três anos e, provavelmente, ainda exija muito trabalho e diálogo.

 

Qual foi a importância do último encontro mundial para a construção de uma nova Economia?

 

Como qualquer transformação social significativa, a proposta da Economia de Francisco depende da criação de uma força política organizada, ancorada em um diagnóstico do mundo contemporâneo e em princípios de mudança legítimos para seus membros.

 

A reunião de economistas, ativistas políticos e empreendedores sociais, proposta no âmbito da Economia de Francisco, significou a criação de grupos temáticos muito diversos, com a representação de diferentes perspectivas, áreas de atuação e interesses.

 

O encontro, pela primeira vez presencial, foi e seguirá sendo – enquanto processo – uma oportunidade de agregação da diversidade nele presente, e de constituição de um entendimento comum mínimo a partir do qual seus desdobramentos (acadêmicos, políticos, sociais, empresariais) possam ser viabilizados.

 

Para o mundo, o encontro representou um símbolo de união em torno do projeto da Economia de Francisco. Assim como o neoliberalismo remonta, de alguma forma, à reunião de Mont-Pelerin, a Economia de Francisco remonta a Assis, a pequena vila onde viveu São Francisco e onde jovens do mundo todo decidiram se encontrar para demonstrar sua insatisfação com o sistema econômico atual e construir ideias para uma nova economia. É uma mensagem de união e vontade diante de um mundo que perdeu a esperança, de uma política de indiferentes, de líderes econômicos que não têm mais respostas para os problemas globais.

 

Completam-se dois anos do início da Coluna Rumo a Assis neste início de outubro. Como esse projeto de debate evoluiu e que iniciativas se constituem a partir do encontro mundial?

 

Antes de mencionar as iniciativas específicas, cabe apresentar algumas premissas importantes:

 

- muitas questões foram levantadas nas reuniões preparatórias do comitê ampliado (internacional), tais como o evento alcançar a comunidade global, buscar respostas na Doutrina Social Católica, e fomentar a subsidiariedade;

 

- como grupo coordenador da Coluna, percebemos a necessidade de criar espaço para a transversalidade (entre e fora dos temas das vilas), ao lado da noção de processo (e continuidade – antes, durante e depois do evento), a qual é muito destacada pelo Papa Francisco desde a Evangelii gaudium, bem como da noção do todo como maior que a parte (ambas dentro dos “quatro princípios bergoglianos” – vide a mesma exortação apostólica);

 

- da mesma forma, a importância de ter presente a componente “de Francisco”, a dizer, inserir as discussões e contribuições realmente dentro de uma Economia que se afirma “de Francisco” (e a necessária construção de pontes entre a Doutrina Social da Igreja e um debate econômico mais aprofundado);

 

- com isso, pensamos num espaço de criação real de oportunidades para que mais vozes sejam ouvidas, incluindo o contato constante com potenciais participantes em todo o mundo (principalmente entre os inscritos, mas também em diálogo com outras pessoas e instituições em áreas afins), e estimulando contribuições da Economia de Francisco mais originais para o mundo.

 

A partir dessas premissas, lançamos no evento o projeto de um grupo de pesquisa transversal sobre o papel do Estado a partir da Doutrina Social da Igreja (e principalmente com os documentos e ações do atual pontificado), e através de políticas de inovação orientadas para a missão. Na esfera econômica, o ponto de partida seriam os estudos e publicações da economista Mariana Mazzucatto (principalmente seu último livro – Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism). O próprio Papa Francisco a citou em seu livro Vamos Sonhar Juntos enquanto refletia sobre uma economia mais equitativa.

 

O formato básico do projeto Mission Economy inclui um foco maior (não único) na dimensão acadêmica, entre os três grupos convidados pelo Papa Francisco em sua carta de 1º de maio de 2019. Durante o evento, realizamos o seu lançamento, com comunicações de futuros papers paralelamente às conferências e demais atividades (ao todo, em torno de 160 pessoas participaram das quatro sessões oferecidas).

 

Após o evento, pretende-se a continuidade do processo com discussões mensais sob a dinâmica de seminários/debates/etc., e publicações no portal EoF Preview. Da mesma forma (após o evento), promover publicações (artigos, livros, conferências, etc.) e propostas concretas de incidência junto a agendas locais e globais. Ao final de um ano, volta-se ao próximo evento (como dito, debaixo da noção de um processo contínuo). Como temas, temos como núcleo comum o ensinamento social e econômico da Igreja Católica e mais especificamente do Papa Francisco em vista de “um tipo melhor de política” (cf. Fratelli tutti).

 

Nos temas específicos, as sugestões iniciais são:

 

- Pedagogias de Transformação: Políticas Educacionais para a Justiça Social e o Bem Comum (Desigualdade e Educação);

 

- Novo Paradigma Tecnoeconômico: Políticas de Inovação Inclusiva (Desenvolvimento e Indústrias);

 

- Trabalho e Renda: Políticas de Dignidade Social (Futuro do Trabalho);

 

- Economia de Baixo Carbono e Agroecológica: Políticas de Transição (Meio Ambiente e Segurança Alimentar);

 

- Cidades e Democracia: Políticas para a Habitabilidade de Todos (Territórios Urbanos e Existência Humana);

 

- Direitos Constitucionais e Legais: Como tornar os princípios e valores da EoF institucionais? Dentre outros temas (como a inclusão em relação a grupos mais vulneráveis ou historicamente oprimidos – pessoas com deficiência, pessoas de cor, mulheres, LGBTQ+, etc.).

 

Que potenciais de materializar as discussões da Economia de Francisco em políticas públicas podemos vislumbrar? Há propostas sendo desenvolvidas? Quais?

 

Em nossa perspectiva, a visão econômica do Papa Francisco e as discussões que se dão no âmbito da Economia de Francisco apontam para a necessidade de repensar o papel do Estado em um novo sistema econômico. Não pensamos em experiências passadas, nem somos politicamente dogmáticos. Entendemos, porém, que é necessário, na realidade global de início do século XXI, resolver tamanhos desafios econômicos que o mercado por si só não conseguirá fazer.

 

Assim, o projeto de uma economia a partir de Francisco exige que a política econômica e a institucionalidade pública do desenvolvimento econômico sejam colocadas a favor do atendimento das necessidades e objetivos das sociedades. Isso significa, a nosso ver, pelo menos três papéis essenciais para as políticas públicas:

 

- regular a dinâmica financeira, para que esta atue a serviço do desenvolvimento, fomentando a dinâmica econômica de longo prazo ao invés da especulação de curto;

 

- promover investimentos públicos associados à criação dos bens comuns, e àquelas atividades econômicas que produzem ativos de longo prazo para que as sociedades vivam melhor; e

 

- criar oportunidades para que todas as pessoas possam encontrar um espaço no sistema econômico para contribuir com o desenvolvimento da sociedade, o que o desemprego e a precarização do trabalho não permitem no mundo hoje.

 

No grupo Mission Economy, essa iniciativa que geramos no âmbito da Economia de Francisco, pretendemos, inspirados especialmente pelo trabalho da economista italiana Mariana Mazzucato, fortalecer um espaço de reflexão e proposição sobre como essas grandes direções podem guiar o desenho de uma política orientada por missões. Tal política não deveria se limitar a projetos específicos com alcance limitado, mas envolver um amplo portfólio de programas de reforma, baseados nas principais necessidades das sociedades a que se aplicam.

 

Dessa maneira, não pensamos no Estado, como faz certa teoria econômica, como um solucionador de falhas de mercado, mas sim como um espaço criador de riquezas, inovador, empreendedor. Inclusive, entendemos que o Estado deve regular o mercado (mas não somente), e não o contrário. Cremos que a primeira rodada de exposições e discussões, que aconteceu no encontro mundial em Assis, forneceu um belo ponto de partida de diagnósticos e propostas vindas de diversas regiões do mundo e áreas de aplicação, e esperamos que, a partir delas possamos elaborar propostas maduras de políticas públicas orientadas por missões, e fazendo-o de modo contínuo.

 

O Papa Francisco fez um forte discurso no encerramento do encontro de Assis. Quais foram os pontos mais nevrálgicos de sua crítica ao sistema? E que inspirações lhes gerou para a continuidade do projeto?

 

Pela primeira vez, de forma explícita, o Papa mencionou – duas vezes – o capitalismo como gerador da crise socioambiental em que nos situamos, a dizer, da desigualdade gritante e das graves agressões – muitas irreversíveis – à Casa Comum. Cremos que isso é significativo (essa explicitude do pontífice). E aqui destacamos o capitalismo enquanto modo de produção, o que é algo diverso da economia de mercado em si. Em documentos anteriores, como Evangelii gaudium, Laudato si', Fratelli tutti, bem como nos quatro encontros com os movimentos populares e no próprio discurso aos jovens na primeira edição (online, em 2020) do evento, o Papa fez menções a uma “economia que mata e gera exclusão”, abordou a tecnocracia econômica e o dogmatismo do chamado “trickle-down” (teoria neoliberal), e no máximo à ideologia do capital e à globalização capitalista, mas sem tratar o capitalismo em si como o modo econômico de produção que mata e gera exclusão, o que passou a fazer no encontro recém realizado.

 

As inspirações que Francisco nos trouxe, no contexto de uma fala em total sintonia com a doutrina social da Igreja, o seu próprio magistério, e o chamado que fez em 2019, vêm basicamente das três indicações – muito claras – que ele apontou para a Economia de Francisco (a dizer, para todos nós):

 

(1) olhar o mundo com os olhos dos mais pobres; notemos que não é apenas dos pobres, mas dos mais pobres, dos que realmente vivem nas periferias da existência, o que exige, no mínimo, a chamada conversão de interesse, como sempre apontou a teologia da libertação;

 

(2) não esquecer o trabalho e os trabalhadores, a dizer, encarar o trabalho como eixo da (re)construção de uma economia com alma, com pleno respeito à dignidade da pessoa humana, e consequentemente não permitindo que a relação social da mais-valia a reduza ou mesmo destituindo a pessoa humana de sua dignidade intrínseca;

 

(3) a encarnação, o que pressupõe, para além da conversão de interesse, os pés pisando nas realidades dessas mesmas periferias (que é o permite de verdade aquele olhar acima indicado), e a construção da ação transformadora em conjunto com os mais empobrecidos (na lógica freireana de que o processo de emancipação / libertação tem que partir dos próprios oprimidos, e desde a sua própria consciência da necessidade das transformações que uma nova economia requer).

 

Depois do evento de Assis, à luz dos debates e do discurso do Papa Francisco, é possível imaginar uma nova economia? Como se constrói essa nova economia?

 

No chamado para a Economia de Francisco realizado em 2019, o Papa Francisco alertou sobre a necessidade de construção de uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza”. Hoje, passados três anos, ao refletirmos sobre o conteúdo dessa carta, percebemos o quão profético foi esse chamado, especialmente após termos atravessado uma pandemia que escancarou a dinâmicacapitalista – do processo de acumulação do capital. O contexto pandêmico não somente desnudou as extremas assimetrias sociais, como também acelerou esse processo ao aumentar ainda mais os abismos socioeconômicos, chamado inclusive de “vírus da desigualdade”. Ao constatar a raiz econômica das mazelas sociais, entendemos que a Economia de Francisco se faz ainda mais necessária neste mundo pós-pandêmico. Urge a construção de uma nova economia – que faça viver, inclua e humaniza - para um novo mundo em construção.

 

A resposta para a pergunta sobre como se constrói essa nova economia está literalmente em aberto, enquanto processo que já começou. Mas, atendendo o convite do Papa, é um processo que se dá coletivamente, em torno de uma mesa comum (tendo sido a primeira presencial em Assis), e que se dá através da criação de espaços reais para as reflexões pautadas nos princípios que orientam a Economia de Francisco, e também para as ações concretas nos territórios onde estamos. De nossa parte, estamos empenhados na construção de uma práxis (ação refletida) em que se discuta globalmente o papel do Estado a partir desses princípios, e pela qual se proponham agendas concretas de políticas públicas em todo lugar onde consigamos nos fazer presentes.

 

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