16 Setembro 2022
“O impulso e o desejo de gratuidade são para nós o anjo da anunciação. A gratuidade anuncia a graça, e a graça anuncia outro modo de ser. E, talvez, também outro mundo”, escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele de Milão e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 12-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sinto em mim a necessidade crescente de explicar as palavras, de reconduzir o pensamento aos elementos primordiais. Após a desconstrução do século XX é tempo de reconstrução, e os alicerces desse empreendimento para reconstruir a confiança da nossa mente na vida são as palavras. Também porque não ficou muito claro que nos une. As palavras são o produto do impacto entre a vida e a mente, por isso representam uma revelação genuína da vida. Por isso nós, analisando-as, podemos chegar às experiências originárias da vida e assim compreendê-la um pouco melhor e interpretá-la com mais consciência e mais responsabilidade.
Hoje celebramos a Sra. Maria Franca Ferrero, uma pessoa que ofereceu muitos dons ao seu território e aos seus habitantes e por isso recebe o Prêmio Gratidão, promovido pela Fundação Hospital Alba-Bra em 2016 e agora em sua sétima edição. Graças a ela também celebramos o dom, a generosidade que expressa e a possibilidade de sermos melhores como seres humanos que tudo isso traz consigo. O título que me foi atribuído pelos organizadores para contribuir com esse evento é "O valor do dom", por isso gostaria de analisar a palavra dom e a palavra valor.
Dom não precisa de explicações no significado e também a etimologia pode ser facilmente rastreada até o latim donum, do verbo do, infinitivo dare. O dom é algo dado. Todos nós fizemos e recebemos muitos dons, então tudo parece claro: o dom é a manifestação da capacidade de generosidade da humanidade. Na verdade, sabemos que nem sempre é assim. Sabemos que nem todos os dons são verdadeiros dons, seja em termos de objeto ou intenção. Eles não são dons em relação ao objeto recebido, porque às vezes se ficaria bem sem eles, nem todos os dons são de fato regalos (termo a ser entendido no sentido do adjetivo régio, "digno de um rei"). E, sobretudo, nem todos os dons correspondem à intenção com que são feitos, porque nem sempre são verdadeiramente pensados e gratuitos. A experiência ensina que há dons inúteis que nada têm a ver com quem os recebe, mas que são apenas costumes; que há muitos que são demasiados úteis porque são feitos para se livrar da obrigação ou para adquiri-la; que existem dons incômodos, feitos para marcar o próprio poder; que existem alguns errados, de boas intenções, mas resultados ruins, que acabam por causar desagrado ou até mesmo sendo ofensivos. Mas, apesar de tudo isso, o conceito de dom está claro na mente de todos nós.
O que exatamente significa valor? O campo semântico do conceito é muito amplo: pode indicar preço (o valor de uma casa), habilidade (um poeta de valor), poder (o valor do dinheiro), validade (um documento sem valor), importância (uma questão de imenso valor), idealidade (valores familiares) e outras coisas. O substantivo nominal valor está ligado ao verbo valer, do latim valeo com dois significados fundamentais: "ser forte" e "ser saudável". A etimologia nos ensina assim que o conceito de valor deriva da condição de quem está na plenitude das forças físicas e econômicas, pois tem vigor e pode manifestar essa condição florescente. O valor do dom, portanto (quando se trata de dons significativos) expressa sobretudo o estado do doador: é uma expressão de força e de superioridade, porque poucos podem doar dessa forma.
É claro, porém, que nem todos os que podem permitir-se doar de maneira significativa o fazem, e muito menos todos os que doam sempre o fazem com pura generosidade, sem segundas intenções, sem usar os dons feitos como instrumentos para aumentar o próprio poder. Segue-se que quem doa tanto e sem segundas intenções, mas apenas por pura generosidade e vontade de bem, manifesta a presença de um modo de ser para compreender o qual é preciso convocar outro conceito, um dos mais belos da nossa tradição: o conceito de graça.
A palavra deriva tal e qual do latim apenas com a transformação do t original no atual cê-cedilha e quanto ao significado trata-se de um daqueles conceitos que dominam até que tenham que ser explicados, como dizia Santo Agostinho do tempo: "O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, não sei” (cf. Confissões XI, 14). O que Agostinho diz sobre o tempo se aplica a outros conceitos fundamentais de nossa vida como verdade, beleza, justiça, amor, e isso nos faz entender que nossa linguagem é maior que nossa mente. Nós a recebemos como um dom dos séculos pelo que deveríamos ser muito gratos e a que deveríamos dedicar muito cuidado, porque somos as nossas palavras, as nossas frases, o estilo com que falamos; e somos a capacidade de escutar as palavras dos outros, de apreciar a sua forma de falar, de compreender o que dizem e como o dizem (e o que não dizem e porque não o dizem). Que grande exercício espiritual é o cuidado da linguagem.
Voltando à graça, sua antiga definição escolástica é a seguinte: Gratia quia gratis datur, chama-se graça "porque é dada de graça". A palavra, portanto, evoca uma dimensão em que o interesse econômico não existe mais e o do ut des ("eu dou para que você dê") é superado. No caso da doação autêntica, dou não para que você dê, mas para que você seja: seja feliz, fique bem, e eu me alegro com seu bem-estar e felicidade. Então o doador é um altruísta? É claro. No entanto, ele também pode ser considerado um egoísta inteligente que interpreta o querer bem a si mesmo como querer bem aos outros. E talvez este seja o melhor caminho, porque supera a distinção um tanto artificiosa entre egoísmo e altruísmo.
O dom nos é dado gratuitamente, e quem o recebe sente a necessidade de reconhecer o benefício recebido: daí o agradecimento ou a gratidão. Então, primeiro o dom ou a graça; depois o agradecimento ou a gratidão.
O conceito de graça, no entanto, vai muito além da troca gratuita, graça é muito mais do que de graça. Isso pode ser entendido analisando as três áreas conceituais às quais o conceito se refere: teologia, direito, estética. Na teologia, a graça indica a ação sobrenatural de Deus que salva independentemente do mérito humano. Em direito, a graça é o ato pelo qual o Presidente da República liberta um condenado das consequências da condenação, agraciando-o (o verbo agraciar é usado apenas no contexto jurídico). Na estética, a graça refere-se à forma, mostra a forma elegante com que o conteúdo se apresenta: com graça, ou seja, agraciado; sem graça, ou seja, desgraciado.
Mas, em conclusão, é necessário perguntarmo-nos sobre o significado filosófico e espiritual do dom e da graça, perguntando o que eles manifestam, do que são epifania. Se nem todos os dons são verdadeiros dons, o que o dom demonstra que realmente é? Mostra que também nós, como a jovem mulher do Evangelho saudada pelo anjo muitos séculos atrás, podemos ser "cheios de graça". O anjo a saudou dizendo: Ave gratia plena. Bem, nós também, às vezes, somos gratia pleni. Este é o significado existencial do fato de que podemos dar e receber autênticos dons entrando em uma dimensão diferente das trocas comuns.
O impulso e o desejo de gratuidade são para nós o anjo da anunciação. A gratuidade anuncia a graça, e a graça anuncia outro modo de ser. E, talvez, também outro mundo.
O Prof. Dr. Vito Mancuso participará do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano. Construindo uma geofilosofia de Gaia, promovido pelo IHU durante o segundo semestre de 2022.
Vito Mancuso proferirá a palestra Axis Mundi. Construindo novos sentidos para a vida no Antropoceno, no dia 14 de novembro, às 10h, com transmissão bilíngue pelo Zoom e em português pela homepage, Youtube e Facebook do IHU.
Para fazer sua inscrição acesse a página do evento.
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O dom da gratidão. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU