30 Agosto 2022
"A viagem do papa ao extremo norte da América não foi isenta de riscos, também devido à sua fácil exploração. E terá sido apenas um álibi, e não um símbolo forte, se não for seguida por outros passos", escreve Gilles Routhier, padre, teólogo católico, doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e em História das Religiões e da Antropologia Religiosa pela Universidade Paris-Sorbonne, foi professor de Teologia Prática e Eclesiologia no Instituto Católico de Paris e atualmente ensina na Université Laval, do Canadá, em artigo publicado por Il Mulino, 24-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Faz um mês que o Papa Francisco foi ao Canadá para dar seguimento a um dos pedidos do Relatório, publicado em 2015, pela Comissão para a Verdade e Reconciliação do Canadá, criada em 2008: "Pedimos ao papa que apresentasse desculpas, em nome da Igreja Católica Romana, aos sobreviventes, às suas famílias e às comunidades envolvidas pelos abusos espirituais, culturais, emocionais, físicos e sexuais que as crianças das Primeiras Nações, Inuites e Métis sofreram nas escolas residenciais administradas pela Igreja Católica. Pedimos que essas desculpas sejam semelhantes às feitas em 2010 aos irlandeses que sofreram abusos e que sejam apresentadas pelo papa no Canadá dentro de um ano da publicação deste relatório.”
Se outras Igrejas cristãs que aderiram à Convenção de regulamento sobre as escolas residenciais indígenas já haviam apresentado um pedido de desculpas (por exemplo a anglicana), a Igreja Católica como um todo, apesar de inúmeras iniciativas, ainda não havia formulado nada semelhante.
Ao argumentar que a comunidade católica no Canadá não tinha uma estrutura central e que cada bispo diocesano tinha plena autonomia em sua diocese - que é a estrutura organizacional fundamental da Igreja Católica - a Conferência Episcopal havia afirmado que não havia ninguém no Canadá que poderia pedir desculpas em nome das muitas dioceses ou ordens religiosas que compõem a Igreja Católica canadense (54 entes católicos, representando 17 dioceses e 37 instituições religiosas, estavam envolvidos na gestão e funcionamento de escolas residenciais, que estavam sob a jurisdição do governo canadense).
Além disso, a condenação de Bento XVI aos atos de violência cometidos na Irlanda mostrava uma duplicidade de tratamento que escandalizava a muitos e levantava a questão do porquê as vítimas das Primeiras Nações não tinham igual direito a isso.
Daí o pedido oficial de desculpas de 2015. Entre 2016 e 2022 a pressão não parou de crescer, acompanhada de frustração e, às vezes, raiva. A suspeita crescia: a Igreja Católica estava pronta para reconhecer seus próprios erros e pedir desculpas? Todos os olhos estavam voltados para Roma, dada a consideração da Igreja Católica como organização centralizada sob a autoridade absoluta do papa. O processo se acelera em 2021, com as desculpas formais dos bispos, em setembro, e a previsão de um encontro em Roma entre o papa e algumas delegações das Primeiras Nações, dos Métis e dos Inuites.
Algo precisa ser dito sobre as escolas residenciais aborígines se quisermos entender o mal sofrido pelas crianças que as frequentaram e colocar em perspectiva o pedido de perdão do papa. Em suma, embora algumas escolas tenham sido fundadas antes mesmo da Confederação Canadense (1867), o British North America Act que deu origem ao Canadá e que confiava ao Estado Federal o cuidado da educação da juventude aborígene e sua absorção na sociedade canadense abre uma nova página da história colonial. A expansão do Canadá para o oeste gerou a mesma situação, pois implicou a conquista de novos territórios ocupados pelos Métis e pelos aborígenes (Manitoba e os territórios do Noroeste se juntarão à Confederação em 1870 e 1871, respectivamente).
É nesse contexto que se observa um importante desenvolvimento das escolas residenciais a partir de 1880. Esse sistema, embora um historiador como Roberto Perin, professor emérito da Universidade de York, tenda a excluir o envolvimento direto do Vaticano nos acordos entre governo canadense e ordens religiosas para a gestão das escolas residenciais, contou com a cumplicidade da Igreja Católica no Canadá.
Além disso, ao retirar as crianças de suas famílias e de seus contextos de vida para colocá-las no internato, esse mesmo sistema deu origem a violências físicas e representou um ambiente propício para a propagação de epidemias. O bem-estar das crianças já não era mais garantido: estima-se que pelo menos 6.000 das 150.000 crianças que frequentaram tais estruturas nunca tenham regressado às suas famílias. Pior ainda, muitas foram vítimas de abusos sexuais.
Francisco iniciou uma "peregrinação penitencial", depois de ter recebido as delegações das Primeiras Nações, Métis e Inuítes em Roma no final de março e início de abril.
É nesse quadro que o papa Francisco iniciou o que ele mesmo definiu, com uma categoria medieval, uma "peregrinação penitencial", depois de ter recebido as delegações das Primeiras Nações, Métis e Inuites em Roma no final de março e início de abril. Os pedidos de perdão do papa foram acolhidos de diferentes maneiras. As mídias muitas vezes ecoaram aqueles que lamentavam que as palavras esperadas não tivessem sido ditas: o papa foi convidado a se desculpar pelo que a "Igreja Católica" havia feito e não simplesmente pelo mal cometido por alguns ou mais de seus membros ou pelas culpas cometidas por comunidades religiosas ou várias instituições católicas locais.
O pesar de outros dizia respeito ao fato de o papa não ter revogado, com um ato jurídico formal, as bulas de seus predecessores que, no século XV, estabeleceram as condições para o nascimento da "doutrina do descobrimento" e do conceito de terra nullius, que justificava a expropriação das terras ocupadas pelos aborígenes (pelo princípio segundo o qual um soberano cristão que descobre terras não cristãs pode reivindicá-las como suas). Também teriam apreciado que ele explicitasse os diferentes tipos de abusos - espiritual, cultural, emocional, físico e sexual, em vez de apenas citar alguns ou falar sobre eles em geral.
A visita sofreu de um grave mal-entendido. Esperava-se que o papa se desculpasse, mas veio pedir perdão e sua abordagem foi parte de um processo de reconciliação. São duas perspectivas distintas, ainda que não opostas. E justamente a tal processo de reconciliação e cura aludiu a própria Governadora Geral do Canadá, Mary Simon, ela própria nativa (Inuk).
Pouco eco teve a maior dificuldade, a de imaginar o futuro, de pensar o mundo e a sociedade que pretendemos construir. Da mesma forma, não surgiram as palavras do papa sobre a atual colonização ideológica e sistemas que ainda hoje destroem culturas, apesar de se tratar de uma questão capital, especialmente para as comunidades indígenas, que diz respeito à imposição de modelos culturais dominantes, os quais não pertencem apenas ao passado. Um aspecto que não deve ser subestimado, portanto, não poderia deixar de ser o cuidado com as liturgias, inexplicavelmente pouco aculturadas nesta viagem - em geral dão muito mais espaço às línguas e símbolos das populações indígenas -, em particular a Eucaristia em Edmonton.
Não foi uma visita desprovida de riscos. A principal dificuldade dizia respeito ao fato de que, ao convidar o papa, seria privilegiado um processo de reconciliação de cima. De fato, não basta que o papa peça perdão e que os chefes indígenas ou o primeiro-ministro fiquem satisfeitos. A reconciliação deve ocorrer também a partir de baixo, através do encontro, o conhecimento e a apreciação das tradições e da cultura dos povos indígenas.
A separação imposta pela Lei dos Índios (1876) - lei nuca revogada - não favoreceu o encontro entre os indígenas e as populações estabelecidas no Canadá. Pelo contrário, gerou ignorância, relegando os indígenas a estrangeiros - estrangeiros objeto de preconceitos, medos, incompreensão e desprezo. Nesse sentido, o papa não falou apenas aos nativos.
A viagem do papa não era isenta de riscos também devido à sua fácil exploração. E terá sido apenas um álibi em vez de um símbolo forte se não for seguida por mais passos. Em seu comunicado, a Conferência dos Bispos Católicos do Canadá se comprometeu a dar seguimento por ocasião de sua próxima assembleia plenária no outono. A questão da revogação formal da doutrina do descobrimento por um ato papal também deveria ser abordada (como foi feito, por exemplo, com a remoção da excomunhão de 1054 contra Miguel Cerulário).
Finalmente, alguém também quis comparar essa visita com aquela do Papa João Paulo II em 1984. O objetivo era medir, com o número de pessoas reunidas nos lugares visitados pelo papa, o declínio da Igreja Católica no Canadá nos últimos quarenta anos. Mas esta questão é menos interessante do que parece. Aquela de João Paulo II era a visita de um papa ainda em forma e uma ocasião de celebração. Pretendia marcar o imaginário coletivo e encenar o dinamismo da Igreja Católica e afirmar sua presença. Aquela de Francisco, por sua vez, trouxe consigo uma nota de gravidade.
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Um mês depois da visita de Francisco ao Canadá. Artigo de Gilles Routhier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU