“Eu procurei entender
qual a receita da fome,
quais são seus ingredientes,
a origem do seu nome.
Entender também por que
falta tanto o “de comê”,
se todo mundo é igual,
chega a dar um calafrio
saber que o prato vazio
é o prato principal.”
– Fome, de Braúlio Bessa
A fome voltou e requer medidas urgentes para os 33,1 milhões de brasileiros e brasileiras que hoje vivem esta realidade, segundo o levantamento do Vigisan 2022 (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia do Covid-19). O retrato atual da falta de alimentos na mesa dos brasileiros é alarmante. O direito básico e universal de todo ser humano ter alimento, garantido pela Constituição Federal (CF) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos vem sendo violada de forma contínua.
Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - ODMs apontaram como desafio o enfrentamento a fome, que seguem sendo pautados pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS. Os dados indicam que a segurança alimentar no mundo e no Brasil não será alcançada até 2030, como previa a agenda.
Os impactos sociais e econômicos, também reflexos da pandemia, revelados nos índices econômicos, no desemprego, nas desigualdades, na falta de investimentos em políticas públicas: educação, saúde, assistência social e apoio à agricultura família/produção de alimentos, tem levado milhões de brasileiros e brasileiras para a insegurança alimentar.
A nota é de Arthur R. Lazzarotto e da Profa. Dra. Marilene Maia, do Observatório da Realidade e das Políticas Públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos.
A Constituição Federal brasileira de 88 coloca a alimentação como direito social no artigo 6°. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos está posto em seu 25 artigo que “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação...”. Estas afirmações, no entanto, não estão sendo garantidas, já que em 2020 o VIGISAN I detectou um aumento de 70% de brasileiros em insegurança alimentar. Ou seja, um grupo cada vez maior de brasileiros e brasileiros tem tido seus direitos violados. O país que tinha saído do Mapa da Fome no relatório produzido pela Organização das Nações Unidas – ONU, passa a retornar com sinais de constante piora. Durante o século XXI mais dois movimentos globais dos quais o Brasil foi signatário tentam assegurar o direito à alimentação digna. Os Objetivos do Milênio (ODM) tinha como seu primeiro item erradicar a fome e a pobreza extrema até 2015. Os ODM foram sucedidos pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) composto por 17 objetivos sendo que o de número dois assume o compromisso com a “Fome Zero e Agricultura Sustentável”.
Ao longo das últimas décadas, o Brasil desenvolveu diversas políticas públicas para lidar com a fome, a insegurança alimentar e a desproteção social. Este quadro histórico está apresentado pelo Nexo, tendo destaque o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional desenvolvido em 1985. Em 1988 a Seguridade Social estabelece a sustentação para a área social, com as políticas de Saúde, Assistência Social e Previdência Social. Dez anos depois, em 1998, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional é instituído. Na década de 90 o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) é criado, sendo extinto em 1996, recriado em 2003 junto ao programa Fome Zero, e, novamente extinto em 2019. Ao longo desta história, o Brasil deixa o Mapa da Fome, voltando novamente em 2018. Entre as regulações importantes está a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, que refere as obrigações do Estado em relação à garantia do direito adequado à alimentação e cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). No período de implementação dessas políticas públicas, foram sendo visibilizadas melhores indicadores de Segurança Alimentar, conforme dados do VIGISAN II:
Fonte da tabela: VIGISAN II
Entretanto, este quadro vem mudando e reapresentando a fome nos diferentes cenários e territórios no mundo e, também, no Brasil.
Fonte da tabela: VIGISAN II
A fome no Brasil se apresenta como uma das expressões das desigualdades. Ela possui recortes de gênero e raça e afeta de forma mais forte os grupos sociais mais vulneráveis. De acordo com os dados produzidos pelo Observatório das Metrópoles, estamos no pior momento da série histórica que teve início em 2012. O Observatório indica:
Antes de adentrar no detalhe dos dados específicos do Brasil e da Região Metropolitana de Porto Alegre, seguem as definições e Insegurança Alimentar Leve, Moderada e Grave de acordo com o VIGISAN II:
Como podemos observar nos gráficos extraídos do VIGISAN II (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil). Em relação à Segurança Alimentar, mais de 50% da população branca alcança esta condição, enquanto que, apenas 35% preta/parda tem está condição garantida.
Fonte da tabela: VIGISAN II
A fome também é desigual entre homens e mulheres, como podemos observar no gráfico abaixo também produzido pelo VIGISAN II. Quase o dobro de mulheres vivem em Insegurança Alimentar Grave em relação aos homens:
Fonte da tabela: VIGISAN II
A inflação tem afetado o preço dos alimentos de forma significativa desde o início da pandemia de Covid-19. Se no início a disrupção global das cadeias de suplementos causaram aumento do preço dos alimentos, outras dinâmicas se somaram ao longo de 2021 e 2022. As três principais que hoje afetam o Brasil, conforme a conversa dos Professores Marcelo Ribeiro e Rudá Ricci são: a alta de preço das commodities globais e do dólar, além da guerra da Ucrânia a qual os diversos embargos e a guerra em sí afetaram o fluxo global de alimentos (a Ucrânia é um dos 5 maiores exportadores de trigo do mundo segundo a FAO) e de outros países; a descontinuação de politicas públicas no governo Temer e Bolsonaro de armazéns reguladores, a estimulação de exportações e fim de projetos e auxílios a pequena agricultura e soberania alimentar; a diminuição de poder de compra e da renda das famílias causada pela alta da inflação de bens e serviços, precarização e questões macroeconômicas.
A inflação, que nos últimos 12 meses soma quase 12% de acordo com o IBGE, e, por consequência a compressão da renda das famílias brasileiras. Frente ao poder de compra cada vez menor os brasileiros e brasileiras precisam fazer escolhas e para muitos o dinheiro acaba antes do final do mês, deixando-os sem comida na mesa. Na tabela abaixo podemos observar que a renda domiciliar de todos os grupos vem diminuindo:
Tabela elaborada pelo ObservaSinos para o artigo com base nos dados acima citados do Observatório das Metrópoles.
A menor renda soma-se a um endividamento recorde. Cerca de 77% das famílias brasileiras têm dívidas. De acordo com com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioconômicos (Dieese, o salário-mínimo em Porto Alegre deveria ser de R$6.535,40 para que o trabalhador conseguisse arcar com o acesso à alimentação, transporte, moradia, educação, saúde e lazer. Segundo o estudo, o poder de compra de alimentos é o menor dos últimos 17 anos, e o valor de uma cesta básica na capital é de R$768,76, mais da metade de um salário-mínimo.
Como demonstra a série histórica do IBGE por meio do PNAD – Pesquisa nacional por amostra de Domicílios, POF – Pesquisa de Orçamento Familiar e agora continuada pelo VIGISAN I e II - Vigilância da Segurança Alimentar e Nutricional, menos de uma década atrás 77% dos brasileiros viviam em Segurança Alimentar, hoje esse número beira aos 40%:
Fonte da tabela: VIGISAN II
Essa tendência de aumento da fome é presente na última década, tendo se intensificado nos últimos anos com a crise econômica, o fim de diversas políticas públicas e, como um super intensificador, desde 2020 com a Pandemia de Covid-19 e seus desdobramentos na saúde e economia. A fome, embora em níveis diferentes, assola todas as regiões do Brasil. Na região Sul são 48,2% vivendo em insegurança alimentar ou, em número de habitantes proporcionalmente, 8 milhões em leve, 3,5 milhões em moderada e 3 milhões em grave:
Fonte da tabela: VIGISAN II
No contexto da Região Metropolitana de Porto Alegre, podemos observar essas estimativas em números totais de habitantes vivendo em cada categoria:
Tabela elaborada pelo ObservaSinos para o artigo com base nos dados acima citados do VIGISAN II e IBGE.
Embora as proporções da pesquisa não se modifiquem para cada município tendo em vista sua generalização por região, buscamos montar a tabela anterior e seguinte para ilustrar como esses dados se expressam dentro da realidade da Região Metropolitana. Podemos observar a quantidade de pessoas em Insegurança Alimentar em cada município, permitindo a melhor tomada de decisão:
Tabela elaborada pelo ObservaSinos para o artigo com base nos dados acima citados do VIGISAN II e IBGE.
O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN criado pela Lei Federal 11.346 é constituída pelos Conselhos e Conferências das diferentes esferas: municipal, estadual e nacional. Além destas duas instâncias, integram o Sistema as Câmaras interministerial e intersecretarias de Segurança Alimentar e Nutricional estaduais e municipais. Em cada esfera estas instâncias têm a responsabilidade de deliberar, planejar, implementar e exercer o controle social da política asseguradora da alimentação para a sociedade brasileira.
Dadas as intermitências do Conselho Nacional, também houve impacto nas esferas estaduais e municipais responsáveis pela Política, tanto é que inúmeros são os municípios e estados brasileiros que não compõem esta instância e todo o Sistema no seu plano do governo.
Importante destacar com isso que o enfrentamento a fome e a garantia da segurança alimentar e nutricional se dá por meio de deliberações políticas, que implicam em uma participação direta do Estado e da sociedade brasileira. Assim, a fome e a pobreza, não podem ser enfrentadas somente com a solidariedade da população e diferentes grupos sociais.
Além disso, cabe destacar que o SISAN aponta a importância do trato desta política por todas as demais políticas, conforme definição das Câmaras Interministerial e intersecretarias.
Inexistem dados sistematizados sobre a realidade atual do SISAN. Esta é uma demanda de interesse do CONSEA do estado do Rio Grande do Sul.
Com o tema A FOME VOLTOU. MEDIDAS JÁ, foi realizada a IV Conferência Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Leopoldo / Rio Grande do Sul. Marilene Maia, pelo Observatório das Realidades e das Políticas do Vale do Rio dos Sinos participou contribuindo na conferência de abertura. Destaques foram dados aos indicadores da realidade da fome e da insegurança alimentar no Brasil, no estado e no município, assim como de alguns dos seus determinantes. Além disso, foram aprofundadas as experiências e os conceitos de Segurança Alimentar e da Insegurança nos seus três níveis. Durante o ato foi assinado o decreto que institui a Câmara Intersecretarias Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Município de São Leopoldo (CAISAN) que integra o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Sua finalidade é promover a articulação dos órgãos e entidades da administração pública municipal na área de segurança alimentar e a construção do Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan). Trará dados contendo a análise da situação municipal quanto à segurança alimentar, entre outros.
Como abordado anteriormente, o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) foi criado, por decreto da presidência, como parte de uma organização da sociedade civil e do poder executivo para abordar melhor a realidade brasileira e apoiar o desenvolvimento de políticas públicas que buscassem a segurança alimentar e nutricional. Pedimos ao CONSEA-RS, com base nos dados trazidos nesta nota, que escrevesse um panorama da atual situação. Segue a nota enviada pelo conselho:
“Diversas recomendações foram apresentadas pelo CONSEA-RS desde a última Conferência Estadual de SAN ocorrida em 2019, muitas destas, ocorreram a partir do início da pandemia do Covid-19, que agravou ainda mais as situações de insegurança alimentar e nutricional. Dentre as principais recomendações estão a criação de programa de renda básica estadual, o que já foi aprovado no Parlamento e não sancionado pelo governador, além de ampliação de equipamentos públicos como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e solidárias, promoção da agroecologia e das feiras agroecológicas, compras institucionais da agricultura familiar e outras. Um dos instrumentos institucionais estratégicos para o enfrentamento do atual contexto é o fortalecimento do SISAN, por meio de articulação de programas e políticas a partir da soberania dos estados e municípios, dado o atual cenário federal. Porém, no Rio Grande do Sul, apenas 7 municípios aderiram voluntariamente ao SISAN, o que exigirá uma grande campanha de conscientização de gestores municipais para a importância de adesão, o que pressupõe política municipal de SAN e, sobretudo, a existência dos Conselhos Municipais de SAN.
É neste contexto de adversidades que o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul – CONSEA-RS, ousou em convocar a VIII Conferência Estadual de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul – VIII CESSANS-RS, que ocorrerá nos dias 27 e 28 de julho na assembleia legislativa em Porto Alegra, com o tema “A Fome voltou! Medidas já”! O desafio da VIII CESSANS-RS é constituir um diagnóstico participativo na perspectiva das organizações da sociedade civil e apresentar as diretrizes para as políticas públicas necessárias para a garantia do DHAA.
As diretrizes da VIII CESSANS serão entregues também aos candidatos e candidatas que disputarão às eleições de 2022, com o intuito de subsidiar os (as próximos(as) gestores(as) acerca do que deve ser feito pelo poder público. Ao mesmo tempo, dada a urgência do atual momento, será uma forma de prevenir propostas oportunistas para enfrentar a fome.”