O Direito Constitucional à Alimentação Adequada e a Alimentação como vetor de “tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura” no sistema penitenciário brasileiro.
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília, Brasília: 2022, 1788 p., de José Geraldo de Sousa Junior, publicado por Redação Jornal Estado de Direito, 29-06-2022.
Perante a Banca Examinadora da pesquisa do estudante José de Ribamar de Araújo e Silva, que presidi na qualidade de Orientador e que foi constituída pelos professores Alexandre Bernardino Costa, Membro interno – Universidade de Brasília e Luciano Mariz Maia, Membro externo – Universidade Federal da Paraíba, foi apresentada, defendida e aprovada a dissertação tema deste Lido para Você.
O Autor, um experiente pesquisador engajado de longa data no serviço pastoral de Justiça e Paz e, na ação política se afirmou em atuação no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e a partir desse organismo, mediante processo seletivo, passando a integrar já na primeira composição e depois reconduzido, como Perito no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Muito dessa experiência foi carreada para o estudo contido na Dissertação que, como indica o Resumo: “busca retratar a caminhada de um estudante que sucessivamente pode interagir com pessoas privadas de liberdade, sobretudo no sistema penitenciário. Essa interação ocorreu a partir de diferentes atuações: desde 1984, como agente da Pastoral Carcerária no Carandiru, como agente de outras pastorais sociais, como militante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Luis, como Ouvidor dos sistemas penitenciário e de segurança pública do Maranhão e, posteriormente, como Perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Numa perspectiva inversa dos estudos doutrinários e acadêmicos juridicistas, este trabalho apresenta um debate teórico e conceitual a partir das experiências vividas e problematiza como a mobilização contra a fome e a conquista tardia do preceito legal do Direito Humano à Alimentação Adequada não superaram a negação histórica desse direito. Seja pela acessibilidade, quantidade, qualidade ou até regularidade, ele é sistematicamente violado, o que lhe converte em vetor de tratamento cruel, desumano, degradante e tortura dentro do sistema penitenciário”.
O Resumo, aliás, exibe uma combinação entre existência e consciência. É pois, biografia e conhecimento de uma realidade dramática que e desnuda a dimensão do não ser, para usar uma categoria de Fanon, que não fique reduzida à exclusão pela negritude, mas que abra uma perspectiva de resgate teórico-político, dos que sejam alienados do humano em face da perversa divisão maniqueísta imposta pelo colonialismo.
O Autor, declaradamente, se diz intonizado com a perspectiva de “O Direito Achado na Rua – Experiências Populares de Criação de Direito”, por sua própria natureza que “articula nos planos teórico e prático o potencial emancipatório do direito, tomado como expressão da liberdade e da igualdade que são constitutivas da sociedade plural e democrática”. E para tanto, contar com a possibilidade de se inserir, e poder ter uma oportunidade de intercambiar experiências, aprofundar estudos, sistematizar conhecimentos e oferecer uma contribuição para a sociedade sobre tão relevante tema. E dentro do universo plural e diante do paradoxo dialético proposto dialogar com o “Direito achado nas celas”.
Daí ele orienta essa experiência e motivação na busca do aprofundamento do conhecimento sobre processo de construção do direito constitucional a alimentação e nutrição adequada, consagrado no Capítulo 6º da Constituição Federal e a sua sucessiva violação, sobretudo nos espaços de privação de liberdade prisional, onde se converte em vetor de tratamentos cruéis, desumanos, degradantes e tortura, ferindo a um só tempo a Lei de Execução Penal (LEP), o preceito constitucional e o compromisso internacional assumido quando da ratificação do OPCAT/ONU.
O paradoxo – diz ele – entre a mobilização contra a fome, a conquista do consagrado preceito legal do Direito Humano à Alimentação Adequada e a negação histórica desse direito lhe converte em vetor de tratamento cruel, desumano e degradante, violando um preceito constitucional, é a principal questão a ser analisada em nossa proposta e se constitui em objeto de estudo da presente dissertação de mestrado.
Por isso que, nessa perspectiva, quer contribuir com a investigação social e a formulação teórica e capacidade de diálogo cooperativo e articulação com os diferentes interlocutores, do sistema de justiça, e as entidades de defesa dos direitos humanos, familiares e vítimas das violações, com foco específico no sistema penitenciário visitado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura nas 27 unidades da Federação do Brasil, bem como dialogar com aqueles segmentos que trabalham na gestão dessa política nos diferentes níveis. Numa amostra significativa dos presídios estaduais, masculinos e femininos, considerando a população LGBTI+, nas cinco unidades dos presídios federais. E o faço sobre diferente locus, de Perito com sete anos de mandato a se completarem agora em junho, próximo, como Coordenador adjunto em dois mandatos, dois anos e Coordenador Geral, do MNPCT, por um ano. Em pleno contexto de pandemia da Covid-19 e do Estado de exceção que se pretende implantar no Brasil.
Esse objetivo se desdobra nos campos descritivo-analíticos de seu estudo, conforme sumaria, discorrendo sobre A Construção do Ordenamento Legal do Direito Humano à Alimentação Adequada; O Direito Achado na Rua e o Direito Achado nas Celas: um Salto Epistemológico; O Mapa da Fome: a Fome tem Cor, Endereço e Classe Social – Dos navios negreiros às novas senzalas: a seletividade penal como estratégia de segregação; DHANA – Da Caridade a Exigibilidade; O Estado Provedor é o Estado Violador; As Múltiplas Violações e a Fome: o ‘Estado de Coisas Inconstitucionais’ e a Falência múltipla dos órgãos; A Responsabilidade do Estado Brasileiro ‘Sem Reparação não Existe Abolição e sem Abolição não Existe Nação”.
Com uma boa bibliografia de apoio, o Autor ainda que subjetivamente, tanto por ofício quanto por engajamento missionário, logra prevenir a objetividade apta com um distanciamento analítico possível mesmo quando opte por metodologia na forma de observação participante.
E mais que isso, logra inserir seu estudo na oferta de avaliações urgentes para uma realidade de exclusão que revela o desprezo das políticas para o humano, assumindo deliberadamente a opção do descarte de marginalizados que o econômico empurra para a zona do não ser.
De fato, conforme procurei chamar a atenção em artigo recente – O Direito de não Passar Fome, publicado em minha coluna no Jornal Brasil Popular, atravessamos um tempo em nosso País de exacerbada afronta à cidadania e à dignidade humanas. Um tempo tanático, necropolítico. Terrível porque amolda o fazer política, governar. A vida é banalizada e se torna cálculo dos objetivos de negócios. Vida mercadoria, carne barata se se é negro, indígena, mulher, pobre. A marca da conjuntura, na política, é o fascismo (em quase todas as formas do que Umberto Eco caracterizou como fascismo eterno); no social, a fome. Uma dramática violação do mais fundamental dos direitos.
Em 1941, na efervescência de uma época mundial conturbada, o Presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt, num discurso sobre o Estado da União, no que ficou conhecido como Four Freedoms speech (Discurso das Quatro Liberdades) como objetivos para assegurar a todos os seres humanos o patamar de realização da dignidade.
Ainda que o discurso partisse de uma motivação para designar o papel dos Estados Unidos no balanço de poder que começava a se desenhar no ambiente conflagrado daquela conjuntura, ele procurava apoiar-se em princípios éticos arguidos para o fim de estabelecer um grande arsenal da democracia.
Como quer que seja, depois da morte de Roosevelt, contando com forte protagonismo de sua viúva Eleanor, o conceito das “quatro liberdades” influenciou a redação da Carta das Nações Unidas, aprovada em 1945, e, de modo muito explícito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948, cujo comité de redação foi presidido pela própria Eleanor Roosevelt.
As quatro liberdades fundamentais assim designadas são a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade de viver sem medo e a liberdade de viver sem penúria, de ter um nível de vida adequado, de não passar fome.
Quatro carências que caracterizam o Brasil atual, epicentro de uma investida canibalizadora do sistema mundo neoliberal que exaure o povo devorando sua economia e interditando seu futuro, porque sufoca a sua esperança de bem viver, sem medo e sem passar fome.
Por isso que o Papa Francisco no discurso que proferiu no 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, no dia 09-07-2015, admoestou declaradamente o capitalismo no que produz uma “realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata”, ao mesmo tempo que exortou para uma mobilização transformadora ética, democrática, solidária e fraterna, dessa realidade: “Queremos uma mudança nas nossas vidas, nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta globalização da exclusão e da indiferença”.
No Brasil, conforme dados recém divulgados, 33 milhões de pessoas passam fome, numa situação que faz retroceder o nível de penúria para o mesmo patamar de 30 anos atrás; 6 em cada 10 convivem com insegurança alimentar hoje. Esse dado cruel consta do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e executado pelo Instituto Vox Populi.
Na interpretação dos dados, em 2022, 1 de cada 3 brasileiros já fez alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento. Para Francisco Menezes, consultor da ONG internacional ActionAid e ex-presidente do Consea (2004-2007), três das principais causas do aumento da fome no país são o empobrecimento da população, o desmonte de políticas sociais e de abastecimento, e a crise climática.
Também em meu espaço do Jornal Brasil Popular, em texto de agosto de 2021, eu já chamara a atenção para essa condição, de crescente, violação dos direitos fundamentais e da escalada de exclusão. Na pandemia de coronavírus o desemprego aumentou, os preços subiram e a fome explodiu. São mais de 19 milhões de brasileiros passando fome, segundo a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Em 2018, eram 10,3 milhões. A perda de poder aquisitivo deixou, ainda, mais da metade do Brasil sem acesso pleno e permanente a alimentos. São 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da população) que não necessariamente comem as três refeições por dia (insegurança alimentar). Três anos atrás, o IBGE registrava 36,7% da população nesse status, o que já era alto em comparação com 2013: 22,9%.
O dado trazido por essa pesquisa é especialmente preocupante porque aponta para danos futuros. Estudos sugerem que o impacto da fome entre crianças e adolescentes tem efeitos deletérios imediatos na saúde e no bem-estar, com potencial comprometimento das potencialidades desses indivíduos.
Comentando a pesquisa, conforme depoimentos em matéria publicada pelo sítio do Instituto Humanitas da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, os especialistas ouvidos advertem para o fato de que já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros (tirando o País do mapa da fome mundial)”, e que “as medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis”.
Conforme diz o jornalista argentino Martín Caparrós, num sistema que expande a exclusão “a fome é a metáfora mais brutal da desigualdade e sua causa não é a pobreza, mas a riqueza de uns poucos”, uma forma de gestão de governos que servem a esse modelo perverso de produção de desigualdades.
Realmente, não só o contexto adverso agudizado pela pandemia pode explicar a tragédia em curso. Há muito desgoverno e mesmo uma intencionalidade administrativa necropolítica, ressalvadas as iniciativas positivas locais. O resultado é que com o “agravamento da pobreza o estado não [têm] mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram ‘sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento” por terem sido obrigadas a usar de meios “social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos’”.
Em O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, já procuramos resgatar essa dimensão humanizadora da alimentação e da nutrição como direitos humanos. Esse texto, aliás, foi judiciosamente examinado pelo Autor na Dissertação.
O Autor junta à Dissertação, como apêndice, um Quadro-Síntese do Diagnóstico e das Recomendações do MNPCT referentes a alimentação no sistema penitenciário do Brasil, por unidade federativa (Excertos dos Relatórios de Visitas a Unidades). Seu valor descritivo se acentua pelo horror que revela. Vale como explicação, lembrando o relatório de Engels sobre o problema da habitação na Inglaterra, indicando que “a descrição verdadeira do objeto é simultaneamente a sua explicação”.
Por essa razão, talvez, o Autor pontifique, em conclusão: “Pelo que se reafirma não haverá um autêntico projeto de nação se não for garantida a obrigação do Estado de prover o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada, sobretudo do custodiado. Isso nos desafia a ficar sempre mais atentos e mobilizados para reverter politicamente esse cenário que nos condena a ser um dos países que mais mata de fome ou extermina, quando não encarcera condenando a ‘Pena de Fome’.”