06 Julho 2022
Negacionismo, trolls na internet, ideologia do empreendedorismo e polarização política. Rodrigo Nunes, filósofo e professor da PUC-Rio, estudou nos últimos anos as condições que permitiram o surgimento do bolsonarismo e a ascensão da extrema-direita, estabelecendo uma conexão entre ambos os fenômenos com acontecimentos políticos anteriores – como Junho de 2013, Maio de 1968, a Primavera Árabe de 2011 e a crise financeira de 2008. Recentemente entrevistado pelo projeto Resgate, Nunes acaba de lançar Do transe à vertigem: Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição,pela Ubu Editora, parceira editorial de Outras Palavras.
A partir de textos escritos entre setembro de 2019 e fevereiro de 2022 — alguns com versões prévias publicadas em veículos como Piauí, Folha de S.Paulo e Radical Philosophy —, os capítulos iniciais do livro propõem simultaneamente um estudo das características gerais do bolsonarismo e de suas manifestações específicas no empreendedorismo e na cultura.
Além disso, Nunes também aborda a reação da esquerda ao processo de impeachment em 2016 e ao golpe militar de 1964, localizando a conjuntura política atual em um processo histórico mais amplo que de costume.
Publicamos abaixo um trecho do último capítulo da obra, intitulado Como chegamos aqui? De Junho de 2013 a Bolsonaro. Boa leitura!
A introdução ao texto é de Ana Sarabia. O trecho foi reproduzido por Outras Palavras, 04-07-2022.
Há um grande enigma na política brasileira da última década.
Durante um breve intervalo, Junho de 2013 foi o maior movimento de massas ocorrido no país desde as Diretas Já. Não só uma sequência de manifestações gigantescas, mas a experiência de uma súbita, “imensa e prolífera criticabilidade das coisas, das instituições, das práticas, dos discursos”, como se o brasileiro – que costuma dizer de si mesmo que é passivo e aceita as coisas calado – tivesse repentinamente descoberto um gosto pela “inservidão involuntária” e pela “indocilidade refletida”.
Era um período em que todos falavam de política e muitos se sentiam chamados a participar dela pela primeira vez. A base em que essa interpelação se dava era uma crise aguda do poder constituído e das instituições em geral: a desconfiança instintiva da população em relação à classe política parecia ter escapado à resignação das conversas privadas e extravasado por ruas e redes sociais, onde se expressava como demanda por qualidade de vida (o que passava pela qualificação dos serviços públicos) e responsividade institucional (o que passava pelas questões da violência policial e da corrupção). Antes ou independentemente de sua diferenciação em orientações políticas, direita ou esquerda, Junho foi uma revolta dos governados contra os governantes.
E, no entanto, o que se seguiu foi uma acachapante contraofensiva das elites econômica e política contra as poucas conquistas que os governados lograram obter na Nova República; uma blitz de manobras e reformas testemunhada praticamente sem reação por uma população que via o sistema responder ao choque de 2013 reforçando ainda mais sua autonomia em relação à sociedade. Mais estranho ainda, aquele momento de máxima excitabilidade crítica acabaria, por caminhos inusitados, desaguando na formação de uma base social ativamente mobilizada em favor de medidas que reduzem direitos, eliminam pesos e contrapesos e afastam ainda mais a possibilidade de controle social sobre o Estado. Como explicar isso? Como as coisas puderam andar tão errado entre um início confuso, mas ainda promissor, e um desenlace que, sob a maior parte dos aspectos, parece ser seu exato contrário?
Quem sabe possamos encontrar pistas num outro momento histórico, cujo cinquentenário foi celebrado no mesmo ano em que os protestos brasileiros chegavam a seu quinto aniversário. Para comparar Junho de 2013 com Maio de 1968, porém, o ponto por onde começar talvez seja o início dos anos 1980, quando a derrota dos movimentos das décadas anteriores já estava plenamente consolidada. Em 1984, Gilles Deleuze e Félix Guattari publicaram um texto cujo título pode ser traduzido tanto como “Maio de 68 não aconteceu” como “Maio de 68 não teve lugar”. Trata-se de um jogo de palavras. Eles queriam dizer justamente que 1968 acontecera, mas não tivera lugar; isto é, que a transformação que aquele acontecimento incluíra no rol dos possíveis não lograra se inscrever na realidade, ou se inscrevera de maneira amputada, distorcida, de certa forma até contra ela mesma.
O que a distinção entre “acontecer” e “ter lugar” dá a ver é que há algo num acontecimento que não é redutível a seus resultados. Isso é porque resultados são objeto de disputas em torno do que se inscreverá nas instituições, nas práticas, nas formas de vida; e disputas podem ser vencidas ou perdidas, pois são justamente o ponto por onde a contingência entra na história. Já o acontecimento é aquilo que abre a possibilidade dessas disputas, ou seja, que permite que coisas anteriormente impensáveis ou impossíveis entrem em jogo – seja para vencer, seja para perder.
Com isso em mente, é perfeitamente razoável que possamos ao mesmo tempo reconhecer o relativo fracasso de acontecimentos como Maio de 1968 ou Junho de 2013 e fazer justiça a sua importância. “Fazer justiça” não implica romantizar, tentar isolar um núcleo ideal puro no meio da impureza dos eventos, ou dizer que o sonho importa mais do que aquilo que efetivamente se soube realizar. Significa apenas reconhecer o que há de irredutível no acontecimento: que um momento como aquele não é trivial; que um novo momento político, para o bem e para o mal, se abre ali; que o potencial contido naquele instante é maior que todos os seus desdobramentos posteriores e não se esgota em nenhum deles.
Isso, claro, se supormos que havia outros potenciais ali que não aqueles que acabaram por se atualizar. Para tanto, é preciso superar alguns obstáculos conceituais que nos impedem de pensar o acontecimento em sua chave própria. Estes consistem em, onde a causalidade do acontecimento é complexa (um efeito resulta de uma composição de causas e se ramifica em múltiplas direções), procurar o simples (para cada efeito, uma só causa); onde ela é não linear (uma causa pode disparar um efeito muito superior a si mesma se age sobre um sistema fora de equilíbrio), procurar a linearidade (para cada efeito, uma causa de igual grandeza e natureza); onde ela é da ordem da emergência, dos efeitos de escala ou da reação em cadeia, procurar o esquematismo mecânico das bolas de bilhar.
Dessas premissas inadequadas segue uma cadeia de erros. Como a todo efeito deve corresponder uma e só uma causa, toma-se um processo complexo, abstrai-se toda sua contingência e multiplicidade causal, e declara-se A (o início do processo) a causa de B (seu ponto final). Como se supõe que a causa deve ser da mesma grandeza e natureza do efeito, conclui-se que A já era B em germe. Assim, o resultado não é o caminho que vingou entre diversos outros que foram possíveis em diferentes instantes, mas a expressão de uma essência que já estava dada na origem: Junho de 2013 não podia não ter levado a Bolsonaro porque já era Bolsonaro desde o início.
Por último, como por trás de toda causa pode-se intuir um agente, não é preciso muito para concluir que A foi o instrumento pelo qual X causou B. Assim se desliza facilmente em direção àquilo que os italianos chamam de dietrologia: a obsessão, tristemente comum na esquerda, por identificar quem está por trás de cada coisa que acontece (dietro, em italiano, quer dizer “atrás”).
Para que fique claro, não se trata de sugerir aqui que não haja, em qualquer momento dado, uma pluralidade de agentes buscando produzir efeitos determinados, alguns deles com mais poder que outros, e que muitos deles não busquem ocultar os esforços pelos quais pretendem atingir seus objetivos. É óbvio que todos conspiram o tempo todo; isso é justamente uma das coisas que caracterizam uma situação em disputa. Mas dizer isso é dizer exatamente o oposto daquilo que afirmam as teorias da conspiração. O que caracteriza o conspiracionismo não é a crença de que o mundo é a cada instante o resultado instável de múltiplas estratégias que convergem, se chocam ou se sobrepõem; mas, ao contrário, a fé na existência de agentes capazes não apenas de manipular todos os outros segundo sua vontade como de ocultar tão bem os traços de sua ação que a própria ausência de provas de sua influência deve ser tomada como evidência de seu poder.
O que a dietrologia faz é sempre acrescentar uma dimensão extra àquilo que existe, submetendo a complexidade que se pode observar na superfície das coisas (múltiplos agentes, projetos, alianças, conflitos) à simplicidade de uma causa profunda da qual a desordem do real não passa de um disfarce ou jogo de espelhos. Em vez de tramas em fluxo e conflito, um só Plano que abarca tudo; em vez de golpes e contragolpes, um só Golpe que se desdobra na geometria infinitamente expansiva dos “golpes dentro do golpe”. É assim que Junho de 2013, a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro podem ser sintetizados numa narrativa unilinear, reduzidos a meras etapas na execução rigorosa de uma “guerra híbrida” coordenada pela CIA ou de uma estratégia traçada há muito pelos militares.
Em todas essas tendências de leitura, o problema é sempre o mesmo: tenta-se contar uma história eliminando dela tudo que aconteceu no meio – ou seja, exatamente o que decidiu como ela acabava. Ora, é evidente que existe uma relação entre as manifestações de 2013 e a eleição de Bolsonaro; negá-lo seria tão absurdo quanto afirmar de maneira simplista que uma coisa é a causa da outra. A questão é entender que relação é essa, e para isso só há um lugar onde procurar: é precisamente para aquilo que aconteceu no meio que devemos olhar.
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O Brasil do transe à vertigem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU