21 Junho 2022
"Para todas essas figuras remotas que nos lançam olhares de decepção que amanhã poderiam se tornar olhares de ódio, não há nada nos caixas. Os cofres se escancaram para os caros obuses de 155 milímetros, os autopropulsados capazes de apagar trincheiras e cidades como um jorro de tinta escura, os lançadores de foguetes que pulverizam com hedonista e múltipla eficácia", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 19-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu coloquei lado a lado dois números, o admito quase inconscientemente no deserto deste século negro.
Números de dinheiro. Por um lado, o número que o presidente Biden anunciou para financiar uma nova maciça remessa de armas para a Ucrânia para impedir a "ubris" prometêica dos russos: um bilhão de dólares. Por outro lado, aquela que o Pam, o programa mundial para a alimentação, invoca ansiosamente, sem sucesso, para evitar o desastre humanitário em uma das muitas chagas do mundo que se contorce pela fome, o Sudão do Sul: quatrocentos milhões de dólares.
Eu sei. Levantam-se os indignados: é uma colocação arqueologicamente terceiromundista, não se pode dar luz verde a Putin porque em algum outro lugar, como sempre, há alguém que sofre. Esquece-se que há três meses a guerra dorme com um olho sempre aberto na Europa? Chega dessas litanias de magrezas, de ossos salientes, de contorções de agonia. Afinal, aqueles que têm mais cicatrizes resistem melhor... Em vez disso, eu proponho, aliás, eu imponho, a combinação lado a lado.
Os ucranianos encontram escuta, têm aliados que lhes dão apoio, que já prometem uma perfeita reconstrução. O dinheiro para eles aparece em poucos minutos: queremos mil canhões, mil canhões! Caso contrário, não vencemos no Donbass, não paramos a lúgubre ladainha da carnificina oferecida à maior glória de Putin. Aqui estão! A disposição! A Casa Branca exulta. O cheque está pronto, as fábricas de armas estadunidenses trabalham dia e noite, se lustra, se monta, se junta, se envia. Porque os morteiros que irão parar nas trincheiras ucranianas devem ser trocados, ou melhor ainda, substituídos por dispositivos mais poderosos, nos arsenais estadunidenses. O dinheiro circula, a economia arregaça militarmente as mangas, é o welfare internacional do canhão como nos bons tempos prussianos.
Mas eu sou obrigado à autópsia de todas as vítimas, a cuidar dos outros, dos sudaneses, por exemplo, que não aparecem no noticiário todas as noites e não incentivam e censuram em streaming os parlamentos dos ricos, para eles tão avarentos quanto Arpagone. Sou obrigado pela falta de jeito de populações mal integradas nos tempos modernos, sua incapacidade de entender por que o saco de farinha não chega mais e que não têm como dar a conhecer sua miséria e sua desorientação. Talvez para eles, como para os ucranianos agredidos e torturados, os direitos de sobrevivência não valem, aquelas leis obra imortal dos deuses como Antígona lembrava a Creonte? O bilhão em canhões não é uma blasfêmia? Sim: pão ou canhões. Não é esse o imperativo categórico dos tiranos?
Conheço esses lugares e essas pessoas. A resignação e o silêncio com que suportam as pragas perpétuas do seu martírio, exaustos por secas e inundações, confrontos étnicos, aumentos do preço dos cereais envolvidos como armas na remota guerra europeia, como se uma culpa oculta, imensa e terrível os condenasse a uma perpétua vagabundagem penitencial. Aqueles quatrocentos milhões que não se encontram porque os doadores neste momento estão empenhados a se armar freneticamente, a cimentar sua própria segurança concentrando-se em dois campos irrequietos, porque, é certo, eles serão o próximo alvo de Putin, aqueles quatrocentos milhões lhes ofereciam o consolo mais uma vez renovado para o infortúnio coletivo, constituíam uma esperança recôndita, uma promessa de eternidade na misericórdia entre os povos que resgata.
Em vez disso, se outra desgraça nos afeta diretamente e tem a ver com as contas da nossa geopolítica, que sempre devem ser o espelho de um domínio sem pares e sem apelo, o que fazer?! As malhas da solidariedade encolhem um pouco, as urgências invocadas pelos costumeiros samaritanos tornam-se mais maleáveis, mais esponjosas. Em vez disso, o Pam anuncia que existe um risco concreto de suspender as ajudas alimentares justamente durante a estação de seca para mais da metade da população que já está em uma condição de grave insegurança alimentar. E apresenta outro número, o das duzentas mil crianças que não receberão merenda na escola.
Talvez devêssemos contar aos reticentes doadores o que significa estar com fome, o estafante definhar na carestia. As crianças são as mais frágeis porque têm menos reservas de gordura a que o corpo possa recorrer para sobreviver. O corpo tenta se defender interrompendo as funções mais intensas, como a digestão. Assim como o coração, os pulmões e outros órgãos, o cérebro acaba sendo atacado. Diz-se que o das crianças é mais plástico porque está em formação e por isso tem uma maior capacidade de recuperação se a alimentação voltar ao normal. Mas outros, menos otimistas, o negam: dizem que o cérebro das crianças está mais sujeito a danos permanentes.
Para todas essas figuras remotas que nos lançam olhares de decepção que amanhã poderiam se tornar olhares de ódio, não há nada nos caixas. Os cofres se escancaram para os caros obuses de 155 milímetros, os autopropulsados capazes de apagar trincheiras e cidades como um jorro de tinta escura, os lançadores de foguetes que pulverizam com hedonista e múltipla eficácia.
Mil canhões! É um número que causa calafrios. No entanto, nada menos é necessário para, no mínimo, igualar a artilharia russa, de acordo com os militares ucranianos que dia após dia estão transformando essa necessidade estratégica em uma obsessão do Ocidente. Mas talvez sem mesmo serão suficientes os mil. Os britânicos prometem mais: desenfornar legiões de ucranianos treinados para a guerra mais sofisticada, uma linha de montagem de guerreiros implacáveis. Um dos maiores exportadores de armas do mundo, a Ucrânia, está se tornando um gigantesco arsenal, uma exposição permanente da eficácia das armas ocidentais mais recentes.
Observamos o que acontece nas planícies do Dnipro como se fosse um polígono com alvos vivos em que novas aquisições são testadas. É a Disneylândia do belicista, na qual Putin se refestela. Definha a sedução do drone, encanta o canhão de longo alcance. Até os bálticos liliputianos ficaram tentados: compraram seis supercanhões franceses. Há espaço para todos no grande remake da artilharia.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Pão e canhões. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU