31 Março 2022
Sem saída por meio da negociação, a guerra só pode se endurecer até perigos extremos. A repressão só pode se acentuar, o nacionalismo de apoio ao regime só pode se inflamar.
A opinião é de Stefano Levi Della Torre, pintor e ensaísta italiano, e professor da Faculdade de Arquitetura do Politécnico de Milão. O artigo foi publicado em Il Fatto Quotidiano, 30-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O presidente estadunidense, Joe Biden, repete que o presidente russo, Vladimir Putin, é um criminoso que deve ser abatido, e, enquanto isso, os Estados Unidos e a Inglaterra estão perseguindo Julian Assange por ter documentado sistemáticos crimes de guerra estadunidenses no mundo.
Mas Biden, acima de tudo, sugere que seu objetivo é abater Putin, enquanto o interesse da Europa e da Ucrânia é acabar com a guerra. Para isto, seriam úteis a iniciativa diplomática e a negociação, enquanto a acusação de “criminoso” (embora totalmente fundamentada) é especificamente prejudicial. Os estadunidenses se aproveitam dos erros de Putin para repropor o seu jugo aos europeus. Também em relação à energia.
Seria hora de a União Europeia, ou algum governo, incluindo o italiano, tentar frear Biden e tomar a iniciativa de propostas diplomáticas, oferecendo a Putin saídas do atoleiro sangrento em que se encontra, perigosíssimo para todos. Desde a guerra no Iraque de Bush Jr., os estadunidenses não fizeram nada além de derrubar ditadores para substituí-los pelo caos ingovernável e sangrento.
O risco é que queiram instrumentalizar a justa resistência ucraniana para fazer a mesma coisa com a Rússia: derrubar Putin com sangue ucraniano e reduzir a Rússia ao caos e talvez à guerra civil.
É preciso se distanciar dos Estados Unidos, aumentar a autonomia e forçar as iniciativas diplomáticas europeias, que acompanhem a resistência ucraniana e favoreçam uma saída para a negociação e o compromisso.
Continuo considerando justo enviar instrumentos militares à resistência; mas muito equivocado o repentino aumento das despesas militares, por vassalagem aos Estados Unidos e à Otan, em vez de elaborar um plano da União Europeia para uma autonomia de defesa.
Em um primeiro artigo meu no Il Fatto Quotidiano, eu defendi que não se devia repetir o erro da paz depois da Primeira Guerra Mundial. Na época, não foi o fato de vencer, mas sim a pretensão de vencer demais que impôs à Alemanha a mais profunda humilhação, favorecendo a ascensão do nazismo e do seu consenso de massa.
Assim, agora, Putin certamente merece a humilhação mais profunda possível, mas seria um erro muito grave. O fim da URSS e do império já foi uma derrota da Rússia, no nível geopolítico, econômico, tecnológico e cultural.
Na Ucrânia, Putin parece agora politicamente derrotado, talvez até militarmente (mas sobre isso há versões discordantes). A sua agressão é um espasmo, uma sangrenta tentativa de recuperação, a fim de reagir à competição e à pressão que vem do Ocidente.
Certamente, não é o juízo intransigente sobre o regime e sobre a ideologia de Putin que nos divide, mas por si só a sua derrota ou o seu fracasso torna essa situação terrivelmente perigosa: muitas armas catastróficas estão em alerta. Trata-se de focar no desenvolvimento de uma oposição e de uma alternativa na Rússia (há muitos sintomas disso), e é preciso tempo para que se desenvolvam.
Os estadunidenses, por outro lado, têm a pressa idiota de derrubar regimes para substituí-los pelo caos. Sem saída por meio da negociação, a guerra só pode se endurecer até perigos extremos. A repressão só pode se acentuar, o nacionalismo de apoio ao regime só pode se inflamar.
E tudo isso atrasa em um longo período de tempo a possibilidade de desenvolvimento de uma alternativa, não de importação, mas de dentro e por necessidade.
A perspectiva desejável não é que a Rússia se feche por muito tempo, derrotada, em um nacionalismo ressentido, mas que, ao invés disso, se abra a relações positivas com o restante da Europa e do mundo. Portanto, é melhor que o regime de Putin ferva no seu fracasso e se desgaste nisso do que a Rússia gangrene em um ressentimento humilhado e xenófobo, talvez com o objetivo de se tornar uma referência ideológica (segundo as doutrinas do filósofo Aleksandr Dugin e do patriarca ortodoxo russo Kirill) das tendências autocráticas e reacionárias que cercam aquilo que resta das democracias no mundo.
Por todas essas razões, eu defendo a necessidade de uma iniciativa diplomática que ofereça a Putin alguma saída, que lhe permita se gabar no fracasso de algum resultado, que afaste o perigo extremo, que dê tempo ao seu regime para se desgastar sem golpes atômicos ou químicos exasperantes e que dê tempo para que uma alternativa se desenvolva dentro da Rússia.
Acredito que a China possa estar seriamente interessada em ser mediada de tal processo, cujo resultado não está assegurado, mas que seria irresponsável não buscar.
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A idiotice de Biden e a possível saída de Putin. Artigo de Stefano Levi Della Torre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU